Edição 25 - 16.06.21
Por Luiz Fernando Sá
O mundo conhece por Veja, em português. No Brasil, é Vert, verde em francês. A ideia é francesa, a produção, em fábricas do Rio Grande do Sul e do Ceará. Os consumidores estão em mais de 40 países, mas quem procura a origem certificada da matéria-prima tem de mergulhar em histórias de pequenos produtores do sertão nordestino, dos seringais amazônicos e dos pampas gaúchos. Assim, com vários sotaques nacionais e internacionais, se conta a história da marca de tênis mais badalada do momento – e sua relação direta com o agronegócio brasileiro.
O algodão, a borracha e o couro transformados em calçados com a marca de um V estampado são parte central da narrativa que transformou a Veja em grife valorizada pelos chamados consumidores conscientes de todo o mundo – a começar por celebridades como as atrizes Meghan Markle, esposa do príncipe Harry, da família real britânica, e Reese Witherspoon. Foi a partir deles que os franceses Sébastien Kopp e François-Ghislain Morillion desenvolveram um modelo de negócios único no setor, depois de abandonarem uma curta carreira no mundo corporativo.
Ainda na faixa dos 25 anos, os jovens viajaram o mundo – sobretudo países em desenvolvimento – em busca de um propósito e mapeando oportunidades de negócios. Visitaram fábricas e avaliaram as cadeias de fornecimento de grandes empresas, tentando entender o que estava certo e o que estava errado. “Ficamos muito desapontados com o que vimos”, conta Kopp em um vídeo postado no site da empresa. “Esses grandes grupos falavam muito, mas não faziam muito. E muitos deles resistiam às mudanças.”
DESCOBERTA DO BRASIL
A procura da dupla acabou quando eles chegaram ao Brasil. Em Tauá, no interior do Ceará, eles conheceram uma comunidade de produtores familiares de algodão orgânico. Diferentemente do modelo industrial adotado nas principais regiões produtoras, eles faziam o manejo sem o uso de pesticidas, de forma praticamente artesanal, e mal conseguiam sobreviver do cultivo. Morillion ficou vários dias na região. Mesmo sem falar português, observou a produção, negociou preços e adquiriu um pequeno lote de algodão. Foi o ponto de partida para o negócio que buscavam. Apaixonados por calçados, decidiram investir nos tênis – mas tênis com propósito.
A opção foi baseada no estudo da manufatura do produto. Com apenas três matérias-primas básicas – justamente algodão (para a lona), borracha e couro – poderiam desenvolver seus calçados e, ao mesmo tempo, causar impacto promovendo a valorização de fornecedores com o mesmo histórico que encontraram no Ceará. Assim, seguiram para o Acre à procura de grupos de seringueiros de quem pudessem obter borracha natural.
Os primeiros tênis Veja foram para as ruas em 2005, já embalados na bela história de seus componentes: algodão agroecológico e borracha nativa da Amazônia. E uma receita bem diferente de um mercado baseado em publicidade agressiva. “Até hoje pensamos da mesma forma”, diz Beto Bina, responsável pela cadeia de fornecimento da Veja no Brasil. “Ao invés de patrocinar um jogador de futebol gastando milhões, decidimos colocar o dinheiro numa cadeia produtiva que conte uma história bonita e em um produto de qualidade. E, então, deixar que as pessoas propaguem essa história. Isso é uma coisa muito poderosa para a gente. Quando vemos um influenciador, como a Meghan Markle, usando a marca, o mercado sabe que é porque eles gostaram da história e do produto.”
ALÉM DO MERCADO
Até hoje a relação com as cadeias produtivas é o coração da marca. Tanto no algodão como na borracha, a Veja montou estruturas de fornecimento através de cooperativas de pequenos produtores familiares que preservam modelos tradicionais de cultivo ou de extração. Os seringueiros, por exemplo, atuam da mesma forma que se fazia no antigo ciclo da borracha, entrando na mata e fazendo o extrativismo clássico a partir de uma seringueira por hectare. Por prestarem também serviços de preservação ambiental, a Veja paga a eles três vezes o valor de mercado da commodity.
No algodão, por sua vez, as compras são feitas de 18 cooperativas de pequenas propriedades que produzem no modelo agroecológico, plantando algodão consorciado com feijão, arroz, gergelim, que garantem a segurança alimentar das comunidades, propiciam a cobertura do solo e protegem a biodiversidade local. Com o aumento da produção, hoje a rede de fornecedores está presente em todos os estados do Nordeste, menos na Bahia. Também nesse caso, pagam o dobro do valor de mercado.
Com as histórias bem contadas no algodão e na borracha, a Veja ainda precisava preencher lacunas em outros capítulos da sua narrativa. Nos últimos dois anos, a empresa decidiu se aprofundar na formação de cadeias de fornecimento para outros insumos fundamentais, mas que ainda não estavam adequados aos parâmetros exigidos pela marca e seus clientes. Um deles é o plástico obtido com a reciclagem de embalagens PET.
“Nosso modelo é entrar na cadeia, mapeá-la e ter um relacionamento o mais justo possível com os fornecedores e muitas vezes a melhor forma de fazer é através das cooperativas, sempre tendo como critérios os valores ambientais, a preservação de biomas e os valores sociais para promover o desenvolvimento dessas famílias envolvidas”, explica Beto Bina. Funcionou bem com borracha e algodão e deve funcionar também com o PET.
O DESAFIO DO COURO
Com o couro, porém, a complexidade é maior. Durante vários anos a Veja comprou o material de curtumes do Rio Grande do Sul e da região Centro-Oeste. Mas a pressão internacional em torno da pecuária brasileira acendeu uma luz de alerta na empresa. Isso porque é praticamente impossível garantir a origem do couro. A empresa se baseava nas informações dos frigoríficos que faziam o abate dos animais, mas não tinha como rastrear a sua procedência.
“Sentimos a necessidade de ouvir mais do que o frigorífico nos falava, de ir mais a fundo”, explica Bina. “Ainda estamos muito às cegas sobre origem e manejo sustentável do gado. Quando tentamos rastrear desde a fazenda de origem, descobrimos coisas que precisam ser mudadas. Quanto mais a gente investiga, mais problemas a gente encontra. Seria negligência não ir atrás.”
A complexidade da cadeia do couro começa na própria estrutura da pecuária e se expande quando o boi deixa a fazenda e segue para a indústria. A grande maioria do gado de corte passa por várias propriedades em sua vida, até o abate. Em uma é feita a cria e a recria, em outra a engorda e em uma terceira, o acabamento. Uma vez embarcado no caminhão, segue para o frigorífico, onde o couro, geralmente, não é uma preocupação em virtude de seu baixo preço. Todo o material é misturado, sem preocupação com a sua procedência. Depois, é leiloado e geralmente arrematado por atravessadores, que vendem esse material para os curtumes, onde é finalmente tratado e transformado em matéria-prima para as indústrias de calçados, roupas e outros artigos.
A dificuldade de seguir esses passos é enorme. Ao longo dos anos, a Veja vinha tentando fazer um trabalho junto aos frigoríficos, num esforço para convencê-los a verificar a origem do animal e, uma vez recebido, separar o couro dos animais produzidos dentro das suas exigências – entre elas a de não vir de área de desmatamento.
A escala da pecuária e da indústria da carne, no entanto, praticamente inviabilizou esse plano. A opção da empresa, então, foi acessar diretamente criadores de gado que fazem o ciclo completo, da cria ao acabamento. “Mas no centro do Brasil esse é um universo complicado e fica muito difícil fazer essa curadoria e convencer esses produtores a vender para um frigorífico específico”, explica Bina. “O couro representa apenas 5% do valor do animal e, assim, o produtor não está pensando na receita através do couro. Tínhamos a garantia do frigorífico, mas sabíamos que existe uma margem de erro. Não podíamos correr esse risco reputacional.”
A CAMINHO DO SUL
A Veja, então, deu uma guinada para o Sul, afastando-se das polêmicas que envolvem biomas como o Cerrado e a Amazônia. E descobriu que poderia desenvolver um modelo de sucesso no Pampa. Lá, em parceria com o engenheiro agrônomo Marcelo Fett Pinto, coordenador do programa Estâncias Gaúchas, a ideia de fazer a curadoria de criadores com todo o rebanho rastreado começou a dar bons resultados no ano passado, quando foi iniciado um projeto-piloto que envolveu cerca de 40 propriedades rurais do Rio Grande do Sul. “Conseguimos dar à Veja uma opção que atende ao desejo de substituir o couro vindo da Amazônia por outro oriundo de sistemas de produção mais responsáveis”, afirma Marcelo.
“O Estâncias Gaúchas nos apresentou os argumentos essenciais que necessitávamos, como a garantia de não haver desmatamento e também de controle total do ciclo de produção”, afirma Bina. “E o que é mais legal é que o bioma Pampa parece que foi desenhado para a criação de gado, sem precisar ser adaptado para isso.”
A biodiversidade da região, de fato, não é impactada pela presença do boi. “Nossos campos são como uma Amazônia em miniatura, com dezenas de espécies nativas por metro quadrado”, afirma o gaúcho Marcelo. A grande riqueza está nas gramíneas que brotam naturalmente nos Pampas e dispensam a necessidade de derrubada de matas para a implantação de pastagens. Como vantagem adicional, afirma Bina, a Embrapa já demonstrou que, naquele bioma, a manutenção de pastagens nativas com altura acima de 12 cm e uma densidade de uma cabeça de gado por hectare, o sequestro de carbono é maior que as emissões de metano pelo gado.
É mais uma boa história para a Veja contar, mas antes disso o modelo precisa ser consolidado – e os desafios ainda estão presentes. O Estâncias Gaúchas conseguiu, no primeiro ano de projeto, montar uma plataforma auditável de fornecedores, onde são registradas as propriedades, os animais e toda a sua movimentação, com a inclusão de documentos como notas fiscais e guias de trânsito animal. Marcelo também fortaleceu a relação com frigoríficos e tem tido sucesso no convencimento de produtores para que vendam seus animais para aqueles que se comprometem a não misturar os couros com os provenientes de outras propriedades.
Há um ponto sensível, porém, a ser resolvido: o pagamento adicional aos fornecedores ativos no programa. Diferentemente do que acontece no algodão e na borracha, os criadores vendem seu gado às indústrias e não diretamente à Veja. Além disso, como o valor do couro representa muito pouco do valor do animal, o simples pagamento de um valor extra pela peça também não seria um benefício suficientemente relevante para impactar uma cadeia com tantos elos diferentes. “Se um dos elos se sentir prejudicado, o programa não roda”, afirma Marcelo.
Uma das soluções que estão sendo desenhadas é a criação de um canal direto para que a Veja faça o pagamento por serviços ambientais aos pecuaristas valorizando a preservação dos chamados ambientes pastoris nativos. “Hoje eles sofrem uma pressão grande da agricultura, para que façam a conversão das pastagens em lavouras. Se arrendarem a terra para a produção de soja, ganham quatro vezes mais sem ter nenhum trabalho”, diz o agrônomo. “A pecuária é a essência dele, ele nasceu no meio do boi e da natureza. Mas às vezes ele não suporta se manter na atividade.”
DORES DO CRESCIMENTO
Ao mesmo tempo em que faz os ajustes necessários junto ao Estâncias Gaúchas, a Veja precisa pensar na sua expansão. A demanda pelo couro gaúcho – produzido a partir de animais de raças britânicas, como Angus e Hereford, bem adaptadas ao Sul do Brasil – cresce aceleradamente em função do sucesso da linha Campo, que utiliza peças curtidas sem cromo. Mas há ainda as outras linhas e, com isso, muito mais matéria prima é necessária. As compras em curtumes de São Paulo e Goiás ainda são feitas no modelo antigo, com base nas informações dos frigoríficos, e representam 50% da produção da Veja.
“A gente está trabalhando para mudar isso tudo até o fim de 2021”, afirma Bina. “Precisamos disso. Nenhuma marca faz o que a gente faz.” O sucesso das histórias contadas pela empresa exige pressa. As vendas da marca crescem de 30 a 40% por coleção. São duas coleções por ano e, com isso, a empresa dobra seu faturamento a cada ano. Segundo a revista Fast Company, são cerca de meio milhão de pares de tênis por ano, garantindo uma receita de cerca de US$ 20 milhões. É pouco perto de uma Nike ou de uma Adidas, mas Kopp e Morillion não se preocupam com isso. Sabem que o crescimento desenfreado tem muitas dores e, por isso, preferem caminhar em um ritmo que lhes permita manter a narrativa coerente. Para ser sustentável, acreditam, é preciso dar um passo de cada vez.
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