Edição 29 - 20.05.22
O chef Alex Atala lidera, em livro luxuoso, o resgate da planta como ingrediente autêntico da culinária brasileira.
No menu de 20 anos do D.O.M., o restaurante estrelado do chefpaulista Alex Atala, a mandioca foi a estrela. Em um dado momento dos jantares, as toalhas eram retiradas da mesa e os garçons colocavam em seu lugar uma esteira de palha com nove preparações diferentes a partir da planta. Bala de cachaça, com uma base tão translúcida de polvilho que tinha até uma formiga içá, com seu gosto de erva-doce, dentro; tapioca frita com queijo da Canastra e beiju de mandioca eram algumas das receitas.
Para quem acompanha a carreira desse cozinheiro, entre os brasileiros mais premiados em sua atividade, criar um menu com muita técnica e pensado em torno de um ingrediente originário do Brasil era o mínimo a se esperar, não apenas no menu especial (esses jantares foram preparados no ano de 2019), mas em toda a sua trajetória. Assim como parece quase óbvio que ele seja o chef a liderar o estudo da mandioca, que ganha história agora nas mais de 400 luxuosas páginas da recém-lançada obra Manihot utilissima Pohl: Mandioca (editora Alaúde).
A proposta do livro se revela já no seu título. Manihot utilissima é como o botânico Johann Baptist Emanuel Pohl classificou o tubérculo, termo considerado pelos autores como mais compatível com a versatilidade do ingrediente, pelo termo utilíssima – mesmo que o nome científico mais referido à mandioca seja Manihot esculenta, do botânico Heinrich von Crantz.
“A culinária brasileira tem a sua espinha dorsal, que é a mandioca. É um ingrediente que esteve presente em todos os momentos do Brasil, desde antes da chegada dos portugueses, e que é onipresente, de norte a sul do país”, defende Atala. O chef não está sozinho nesta homenagem, ou melhor seria, neste resgate da mandioca. A convite de Atala, o livro conta com textos de cozinheiros, historiadores, indigenistas e fotógrafos sobre as histórias ao redor do tubérculo.
Um exemplo vem da polivalente Neide Rigo, nutricionista de formação, que traz diversas histórias sobre sua busca pelas origens das farinhas. “Em cada viagem que faço por estes rincões do Brasil, descubro maravilhada, diferentes subprodutos da mandioca ou nomes regionais para um mesmo produto”, escreve ela. Uma delas é a tentativa, em Nazaré das Farinhas, no Recôncavo Baiano, de descobrir como a baiana faz a farinha de copioba, que todos acham a melhor, mas não sabem explicar exatamente por quais razões.
Há também receitas de chefs que valorizam o ingrediente em criações únicas. O barreado, talvez a mais saborosa receita da chef Mara Salles, do restaurante Tordesilhas, em São Paulo, está lá, assim como os biscoitos de polvilho, que ganharam outro formato e até mais sabor na inquietude de Helena Rizzo, que, não por coincidência, lidera a cozinha do restaurante Maní e do Manioca. Ou as criações do saudoso Paulo Martins (1946-2010), hoje preservadas pela sua mulher e filhas, que fornecem o tucupi para o D.O.M.
Com mais de 150 fotos – com destaque para aquelas tiradas pelo premiado Pedro Martinelli, outro autor da obra –, o livro defende a tese de que a permanência da mandioca, em seus diversos formatos, é um forte fio condutor entre a tradição – e esta raiz é uma herança das nossas tribos indígenas – e os modos atuais de compor os pratos da nossa mesa. A questão é que a raiz vem sendo colocada em segundo plano na valorização da nossa tradição alimentar.
“A mandioca nos desperta um sentimento nativista e foi elevada ao posto de rainha do Brasil por Câmara Cascudo, um dos intelectuais mais importantes da alimentação. Ainda assim, e a despeito de sua relevância histórica, econômica e científica, não foi tratada com a dignidade que merece”, afirma a jornalista e curadora gastronômica Luiza Fecarotta.
Assim, o livro é quase o pagamento de uma dívida histórica com a mandioca. No clássico Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre destaca que, mesmo presente no cotidiano, a mandioca entra na nossa história não como uma iguaria, mas renegada a segundo plano, como comida de pobre, algo que enche a barriga e dá sustância. Por azar talvez, dos quatro ingredientes nativos nas Américas, como milho, batata, tomate e, claro, a mandioca, só os três primeiros foram adotados pelos europeus, o que se traduziu em receitas amplamente divulgadas mundo afora. A mandioca e seus derivados não tiveram essa sorte na história da alimentação do homem moderno.
O resgate da mandioca no livro nos leva ao início da colonização do Brasil, mas pontuando que seu cultivo já existia aqui antes da chegada dos portugueses. Se eles aprovaram suas receitas, então mais rústicas, e levaram as farinhas em suas expedições para a África e a Ásia, a diversidade dos preparos da mandioca começou a ser divulgada com detalhes a partir do século 18, com a chegada dos viajantes e das expedições científicas. E assim as questões da mandioca- brava, venenosa; as farinhas, o tucupi e a maniçoba, para citar algumas faces de sua versatilidade, passaram a ser mais conhecidas.
As tribos indígenas também trouxeram diversas lendas sobre o surgimento dessa raiz. Uma delas, linda, narrada por Rita Carelli, escritora e filha de indigenistas, conta que uma menina indígena, Atoló, pediu para ser enterrada em uma área de terra fofa, fresca e ensolarada (esta terra é um dos segredos para uma mandioca de qualidade, como se aprende no livro). A mãe a enterra e o pai vai ao local lhe dar comida, e o corpo da menina dá origem a ramas verdes, cada uma uma espécie diferente de mandioca.
Independentemente das lendas, são os povos indígenas os principais responsáveis por preservar as variedades e manter os modos de processamento dessa raiz praticamente intactos. É esse saber que o livro recupera. Ou, como diz Luiza Fecarotta, “embora recorra à historiografia e à arqueologia, a obra é fresca, atual e provoca o mercado a um interesse pela importância dessa raiz, que ajuda a contar a história do Brasil”.
Glossário
Aipim: mandioca-mansa, macaxeira, mandioca de mesa.
Goma: fécula ou amido de mandioca, usada para fazer beiju ou tapioca, sagu e para engrossar caldos.
Maniçoba: receita da culinária da região Norte, feito com a maniva, a folha da mandioca moída, que deve ser cozida por longo período para retirar o ácido cianídrico da planta, que é venenoso.
Mandioca-brava: mandioca que possui alto teor de ácido cianídrico, que é tóxico aos homens e aos animais.
Tipiti: cilindro flexível feito do talo vegetal dentro do qual é colocada a massa da mandioca ralada e crua para a retirada do seu sumo tóxico.
Tucupi: caldo amarelo, aromático e ácido, extraído da raiz da mandioca-brava, ralada e espremida. Depois de separado do amido, é cozido com temperos.