Gado high-tech

Exigências cada vez maiores do mercado internacional levam pecuaristas brasileiros a modernizar a g


Edição 38 - 07.08.23

Exigências cada vez maiores do mercado internacional levam pecuaristas brasileiros a modernizar a gestão das fazendas, introduzir tecnologias na produção e buscar caminhos mais sustentáveis 

Por Ronaldo Luiz 

Potência do agronegócio, a pecuária dá ao Brasil a liderança global na exportação de carne in natura e processada desde 2004. Na véspera de completar 20 anos, esse ciclo representou vendas externas totais de cerca de US$ 17 bilhões, com mais de 6 milhões de toneladas vendidas para todas as partes do mundo. Um verdadeiro colosso, gerador de cerca de 3 milhões de postos de trabalho. No entanto, a pecuária é o setor sobre o qual piscam todas as luzes de alerta a respeito de riscos à sustentabilidade ambiental em sua cadeia produtiva.

Novas legislações internacionais surgem regularmente, sempre no sentido de cobrar transparência e procedimentos à atividade. É certo que, mesmo entre nuvens de desconfiança e aumento da vigilância, essa pressão tem sido muito favorável à criação de gado no País. “O pecuarista brasileiro foi praticamente intimado pelo mercado internacional a se modernizar”, resume Luiz Roberto Zillo, zootecnista e consultor de Pecuária da Datagro. “Para ganhar em vendas e assegurar sua competitividade, o produtor precisou avançar nos métodos de criação e enxergar sua atividade como um negócio sujeito a regras e envolvido em competição.” 

Nos últimos anos, uma mudança de patamar se deu com o aumento de compras pela China, hoje destino de praticamente 50% de todos os embarques de carne brasileira para o exterior. “Requisitos como o abate entre os 30 e os 32 meses, por exemplo, fizeram o setor investir em precocidade, o que, por sua vez, levou a uma série de mudanças em toda a logística e na cadeia produtiva da criação”, diz Zillo. “A régua de exigências do mercado aumentou, e o produtor soube corresponder a essas novas demandas.”

Presidente da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), Paulo Mustefaga concorda com a análise. “Essas exigências obrigaram o setor a investir em precocidade, viabilizando para o abate animais mais jovens, o que se consegue somente com mais tecnologia”, diz. “Como efeito colateral, o padrão como um todo dos rebanhos melhorou, ficou mais homogêneo, o que se refletiu na qualidade da carne em geral.” 

Um ponto de muita preocupação no mercado internacional é a ocupação, pelo gado, de terras que sofreram efeitos de queimadas ou desmatamento. O Atlas das Pastagens, publicação do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás, traz a boa notícia de que essa realidade está ficando para trás. No intervalo entre os anos 2000 e 2020, o percentual de áreas de pastagem de gado classificadas como severamente degradadas diminuiu de 30,15% para 15,78%, representando uma área reduzida de 50,2 milhões para 25,7 milhões de hectares, quase 50% menor.

“A redução da presença do gado em áreas degradadas indica que a pecuária vem melhorando seus índices de uma maneira geral”, afirma Roberto Giolo, pesquisador da Embrapa Gado de Corte. Ele concorda com a interpretação de que as exigências de mercado têm correspondido a uma nova postura dos produtores. “A tendência é de que as demandas ambientais sejam cada vez maiores, estimulando as cadeias produtivas a utilizarem tecnologias e boas práticas agropecuárias que proporcionem maior produtividade e menor impacto ambiental dos sistemas de produção.” 

O advento dos sistemas integrados de produção, em especial o de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF), com a rotação de lavouras e gado no mesmo terreno, acelerou o processo de modernização da pecuária. Os criadores passaram a ser fortemente exigidos na organização geral da atividade.

O uso mais racional da terra tem resultado em maior produtividade, com mais cabeças de gado sendo criadas em espaços cada vez menores. “O ILPF ajudou muito no desenvolvimento de variedades forrageiras melhoradas, no uso mais científico de fertilizantes e defensivos e, em consequência, na melhoria da qualidade do solo”, aponta Júlia Zenatti Ferrenha, médica-veterinária e coordenadora da expedição Confina Brasil. “O sistema de rodízio entre lavoura e gado também fez avançar o reaproveitamento de dejetos bovinos na adubação, o que também contribui para o avanço da preservação da terra e aumento de produtividade.” 

Incipientes há 20 anos, os sistemas integrados de produção estão presentes atualmente em 17 milhões de hectares do campo brasileiro. “Bem tratado para o cultivo de grãos, o terreno entregue ao gado tem um pasto de melhor qualidade, comparável ao dos períodos de águas”, indica Sergio Raposo Medeiros, pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste.

Ele destaca que a prática contribuiu para a preservação de áreas florestais, em razão do alinhamento obrigatório às normas do Código Florestal brasileiro. “A preservação obrigatória de áreas de vegetação nativa traz bem-estar aos animais, reciclagem mais profunda de nutrientes e, nos modelos mais intensos, promove sequestro de carbono, neutralizando as críticas europeias à temida devastação provocada pelo gado.” 

As novas práticas têm gerado um ganho de rendimento na pecuária que encontra respaldo na mais recente edição do Rally da Pecuária. Pecuaristas que participaram da pesquisa registraram crescimento de produtividade de 5,4% ao ano desde 2011, considerando o ciclo completo, que inclui da produção dos bezerros até a terminação, atingindo em 2023 o patamar de 12,88 arrobas por hectare/ano. “Sabemos que cerca de 93% de toda a carne produzida no Brasil é a pasto, e que esse é exatamente o nosso grande diferencial competitivo, tanto em rentabilidade da atividade quanto em qualidade da carne produzida”, diz o engenheiro agrônomo Guilherme Moraes, gerente do segmento de pastagem da Ihara. “Ter disponibilidade de pasto, com abundância e qualidade, faz com que, no final do dia, o pecuarista brasileiro precise ser também um bom agricultor.” 

Outro fator que tem contribuído para a modernização do setor é o aumento do número de criadores. “Os pecuaristas vêm crescendo cada vez mais”, atesta Fábio Pizzamiglio, diretor da Efficienza, empresa especializada em comércio exterior. “No Brasil, o setor já conta com aproximadamente 700 mil produtores de todos os portes. A tendência é de que essa evolução continue tornando-o cada vez mais tecnológico.” É um grupo de 5 mil pecuaristas, porém, que produz quase metade da carne bovina do País. “Eles são altamente tecnificados e servem de exemplo para os produtores menores e para os entrantes no mercado”, analisa o consultor internacional Francisco Vila. “A estratificação é uma garantia de avanços tecnológicos, pois quem ficar para trás nessa corrida, simplesmente vai ser excluído do mercado.” 

Entre as grandes companhias do setor, a Marfrig está entre as que mais investem em tecnologia e inovação para se adequar às regras internacionais e, ainda, às exigências dos próprios consumidores de carne, que têm sido cada vez mais críticos aos antigos modelos de produção.

“Cada vez mais os consumidores desejam saber a procedência dos produtos que adquirem e os mercados globais também são cada vez mais exigentes nesse sentido”, observa Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade da Marfrig. “Entre os desafios mais urgentes do setor está a rastreabilidade completa da cadeia de valor da pecuária, a fim de comprovar que a produção de proteína animal acontece em áreas regulares”, indica ele. O executivo prossegue: “Na Marfrig, alcançamos a taxa de identificação, via satélite, de 100% das fazendas fornecedoras diretas”. O rastreamento da cadeia do gado inclui a utilização de satélites e drones. A saúde dos animais, por outro lado, é monitorada com o apoio de softwares, dispositivos de internet das coisas e telemetria de monitoramento. 

Giolo, da Embrapa, pondera que a temática da sustentabilidade na pecuária é muito ampla, com as maiores demandas envolvendo as questões sobre o desmatamento ilegal, biodiversidade e emissões de gases de efeito estufa. “Neste contexto, a Embrapa desenvolve um forte programa de pesquisa sobre sistemas pecuários mais produtivos e menos impactantes”, diz ele. 

O rebanho brasileiro é formado por aproximadamente 224,6 milhões de cabeças, segundo a mais recente Pesquisa da Pecuária Municipal (PPM), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre os estados, Mato Grosso é o líder na criação de gado, com 32,4 milhões de cabeças, o que equivale a 14,4% do plantel nacional. Em seguida vem Goiás (10,8%).

Entre os municípios, a liderança é de São Félix do Xingu, no Pará, com 2,5 milhões de cabeças. No primeiro semestre, o Brasil exportou 1,076 milhão de toneladas de carne bovina (in natura e processada), de acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). Registre-se que o montante nos seis primeiros meses do ano é quase o total do que foi embarcado em 2012, que chegou a 1,134 milhão de toneladas. No ano passado, o volume exportado foi de 2,344 milhões de toneladas, mais do que o dobro do registrado há dez anos. 

A produtora Chris Morais, que trabalha com cria e terminação da raça Nelore, na propriedade Aerorancho, no município de Barretos, interior de São Paulo, é exemplo real da expansão da tecnologia na bovinocultura de corte por meio do seu projeto “Mega Lavoura de Arroba”, que tem como proposta o abate precoce de animais com até dois dentes, ou seja, até 18 meses. “Fazemos a pecuária de precisão digital, desde a análise de solo georreferenciada da pastagem até o planejamento rotacional dos pastos, passando por suplementação nutricional, softwares para uso racional dos insumos, identificação individual do gado, bem-estar animal e muito mais”, afirma. “Temos o controle de cada animal e de cada perímetro do pasto, o que nos permitiu conseguir aumentar em seis vezes a taxa de lotação na recria, saltando de 30 para 200 cabeças distribuídas em 24 hectares.” 

A expansão da tecnologia não ocorre apenas nas fazendas, mas também no elo industrial, com foco em melhorar os níveis de eficiência. Tamara Lopes, gerente executiva de Sustentabilidade da Minerva Foods, menciona, por exemplo, a utilização de inteligência artificial (IA) na tipificação de carcaças, com o objetivo de automatizar o processo, potencializando a capacidade e o rendimento da produção.

“Com o uso de IA, o processo de classificação é capaz de analisar imagens específicas, coletadas por meio de câmeras especiais instaladas dentro das unidades produtivas, e reproduzir em tempo real o padrão de corte em todas as carcaças trabalhadas, de maneira mais ágil e precisa”, diz. “Dessa forma, a companhia potencializa a padronização de tipificação de carcaças, além de aumentar a precisão dos dados sobre a produção. Com essa tecnologia, cada imagem de meia carcaça está sendo avaliada e classificada, em média, a cada 0,8 segundo.” 

Francisco Beduschi Neto, líder da National Wildlife Federation NWF no Brasil, também pontua o progresso da pecuária no âmbito da gestão financeira do negócio. Atualmente, diz, é muito mais comum ver produtores adotando técnicas de gestão há muito conhecidas na indústria e outras atividades econômicas, como o PDCA – Planejamento, Desenvolvimento, Checagem e Ação.

“Pode até ser que não conheça por esse nome, mas está fazendo isso porque é importante para sobreviver como empresário da pecuária.” Beduschi acrescenta que há uma geração de produtores que cresceu com computadores e smartphones e tem acesso a ferramentas digitais de gestão de rebanho. “A digitalização na pecuária deixou de ser escolha e passou a ser indispensável para a sobrevivência da atividade”, afirma Maurício Velloso, presidente da Associação Nacional dos Confinadores (Assocon). Como se vê, a Pecuária 2.0, já faz tempo, é uma realidade no campo brasileiro.