O CLIMA ESQUENTOU

Estiagem severa no Rio Grande do Sul obriga produtores a criar estratégias para aliviar os efeitos


Edição 36 - 18.05.23

Estiagem severa no Rio Grande do Sul obriga produtores a criar estratégias para aliviar os efeitos negativos das mudanças climáticas

Por Patrícia Lima 

 

O pesadelo do produtor rural Roberto Ghigino, que planta 250 hectares de arroz em Uruguaiana, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, começou na virada de 2021 para 2022, quando a escassez de chuvas impediu que os reservatórios de água da propriedade atingissem o nível desejado. Naquele período, as precipitações já estavam abaixo da média, mas o que se seguiu entre 2022 e 2023 teve ares de tragédia. Desde o plantio até a colheita do grão, uma sucessão de problemas ocasionados pela estiagem forte e prolongada foi minando a produtividade. A seca mais severa em 40 anos, na percepção de Ghigino, deixou um rastro de prejuízos: quebra de 25 a 30% na safra, no mínimo. 

Não se trata de um caso isolado. Os produtores da fronteira oeste do Rio Grande do Sul estiveram no epicentro de um fenômeno meteorológico extremo: chuvas abaixo da média nos últimos três anos, escassez hídrica total nos últimos oito meses e calor acima da média, com temperaturas que ultrapassaram os 40 ºC com frequência, o que acelerou o ressecamento do solo. Dados do Instituto Rio-Grandense do Arroz (Irga) demonstram que, em fevereiro de 2023, a evaporação foi maior que o volume de precipitação. Nas regiões da fronteira oeste e Campanha, ela ficou entre 180 e 210 milímetros, enquanto o volume de chuva foi menor do que 90. “Tive de replantar um terço do arroz e a produtividade e a qualidade da safra não estão satisfatórias”, lamenta Ghigino. 

Cerca de 70% de todo o arroz produzido no Brasil sai das lavouras gaúchas, sendo que 30% da produção do Rio Grande do Sul está justamente na fronteira oeste, região mais afetada pelos efeitos da estiagem. São cerca de 840 mil hectares dedicados à cultura em todo o estado atingidos de forma intensa pelo evento climático – o arroz, afinal, depende mais da umidade e do regime regular de chuvas do que outros grãos. Segundo o presidente da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz), Alexandre Velho, a seca reduz drasticamente a rentabilidade das lavouras de arroz. Nos últimos dois anos, lembra o executivo, o custo de produção saltou 60%. 

A consequência imediata dos efeitos climáticos é a redução na área plantada de arroz e sua substituição por culturas menos exigentes e mais rentáveis, como a soja. Segundo Velho, a tendência que se verifica é o aumento da área plantada de soja e a consequente diminuição na rizicultura – somente na metade sul do RS já são 500 mil hectares de soja em áreas tradicionalmente ocupadas por arroz. “Os produtores estão olhando cada vez mais para a relação toneladas por metro cúbico”, diz o presidente da Federação. “O resultado é sempre favorável à soja, que requer menos água para atingir boa produtividade.” Não significa, contudo, que os produtores irão abandonar por completo o cultivo de arroz, que alterna com eficiência a rotação com outras culturas, especialmente milho e soja. Mas as desvantagens ficam evidentes em períodos críticos, como as estiagens. 

Apesar de ter provocado estragos de grande proporção na produção do arroz, as demais culturas gaúchas também tiveram seu desempenho prejudicado pela estiagem. Dados divulgados pela Emater, o serviço de extensão rural do estado, estimam que a safra de verão – arroz, feijão, milho e soja – terá uma queda de 27% na produção. Somente a soja deverá apresentar pelo menos 30% de redução da produtividade, enquanto o milho amargará quase 40%. 

Os produtores de milho conhecem bem o estrago que uma estiagem como a observada nos últimos meses pode provocar. Segundo o presidente da Associação dos Produtores de Milho do Rio Grande do Sul (Apromilho-RS), Ricardo Meneghetti, vai faltar o insumo para atender a demanda do estado, especialmente a indústria de produção de proteínas. “Vamos colher um pouco mais do que a safra passada, mas mesmo assim será uma quebra significativa”, diz. “O cenário climático precisa melhorar para que o produtor tome coragem para correr mais riscos.” Para o milho, uma das principais consequências da falta de água e de umidade é a redução do tamanho e do peso do grão. Ou seja, perde-se em produtividade.  

Além de menos burocracia para obter as licenças necessárias para reservar água e irrigar, Meneghetti afirma que é preciso melhorar as condições de contratação do seguro rural, mecanismo que permite ao produtor proteger seus investimentos de eventos climáticos como as estiagens severas ou o excesso de chuvas. “Esses dois fatores dariam maior tranquilidade para investir no milho”, afirma. Não custa lembrar: o milho é a principal cultura de rotação com a soja no Rio Grande do Sul.  

Estiagens no Sul do Brasil são fenômenos recorrentes. Gilberto Cunha, agrometeorologista da Embrapa Trigo, fez um levantamento com os dados acumulados desde os anos 1970 e constatou que o Rio Grande do Sul viveu pelo menos 16 eventos de estiagem nas últimas cinco décadas. “Alguns foram extremamente fortes, como a dos anos 1990-91, além desta que estamos enfrentando agora”, afirma o especialista. “Mesmo as menos severas, porém, causaram impacto na produção agropecuária e no abastecimento de água das cidades”. O pesquisador ressalta que, quanto mais cresce a relevância do agro na matriz econômica do estado, mais abrangentes são os danos causados pelos períodos de seca. 

O principal causador do longo período de estiagem que se arrasta desde 2021 e se intensificou nos últimos oito meses é o fenômeno La Niña, como é o chamado o resfriamento das águas do Oceano Pacífico. Por causa da La Niña, ocorre a redução do volume pluviométrico em todo o Sudeste da América do Sul. “Foram pelo menos oito meses em que o padrão de chuvas foi muito abaixo do normal, o que esgotou o armazenamento de água nos solos”, salienta Cunha. A La Niña oficialmente chegou ao fim no começo de março, o que deverá animar os produtores gaúchos.

Cunha chama a atenção para o fato de a La Niña não explicar por completo a ocorrência das estiagens, já que foram registradas secas em anos em que não houve notícia do fenômeno. “O Sul do Brasil é uma região que não tem estação seca definida, como os demais estados”, lembra o agrometeorologista. “As estiagens fazem parte da variabilidade do clima, que é influenciada por outros fatores como a temperatura do Atlântico Sul e os ciclos da passagem das frentes frias.” Portanto, preparar o estado para eventos semelhantes ao La Niña é um requisito básico para o desenvolvimento da atividade agropecuária. 

Em fevereiro, quando os efeitos da estiagem estavam consolidados e os prejuízos no campo eram um fator inexorável, o governo federal anunciou o repasse de R$ 430 milhões para mitigar os efeitos da seca. Por sua vez, o governo do Rio Grande do Sul também abriu os cofres e liberou R$ 336 milhões por meio do programa Avançar, que tem o objetivo de incentivar projetos de perfuração de poços artesianos e de revitalização de estações meteorológicas. O socorro veio depois que a estiagem colocou em situação de emergência 380 dos 497 municípios gaúchos. A má notícia é que já se sabe de antemão que os recursos liberados pelos governos devem apenas aliviar os estragos já causados. A solução definitiva para o problema está longe de se concretizar. 

A urgência em melhorar as reservas de água é ponto de consenso entre especialistas e produtores. Para o diretor técnico da Emater-RS, Claudinei Baldissera, tanto o poder público quanto a iniciativa privada precisam debater as formas de reservar água, de acordo com as características de cada propriedade e de cada sistema de produção. Ele alerta, porém, que a irrigação não é solução mágica para qualquer caso. O enfrentamento das estiagens deveria ser balizado por um tripé: conservação de solo, ampliação da capacidade de reserva de água e construção de sistemas de irrigação adequados às particularidades da cultura e do local. “Também é fundamental debater a proteção dos mananciais, com a conservação de fontes e matas ciliares”, afirma Baldissera. Só assim será possível proteger uma das regiões do Brasil mais vitais para a produção agrícola.