A sabedoria dos primeiros agricultores

Novos estudos apontam que os povos indígenas que habitaram a Amazônia há mais de 8 mil anos ajuda


Edição 35 - 02.05.23

Novos estudos apontam que os povos indígenas que habitaram a Amazônia há mais de 8 mil anos ajudaram a moldar a floresta por meio do manejo e da domesticação de espécies

 

Por André Solito

 

Há uma antiga crença de que a Amazônia é uma mata virgem, cuja maior parte de seu vasto território foi intocada pelo homem e é uma representação da natureza em estado bruto. A realidade, no entanto, é bastante diferente. De fato, a floresta amazônica abriga a maior biodiversidade do planeta. São mais de 1.294 espécies de aves, 427 de mamíferos, quase 400 de répteis, 3 mil espécies de peixes e 400 de anfíbios, além de mais de 100 mil invertebrados. Somados, representam 20% de toda a fauna da Terra. Não é só isso. Em seus mais de 6,7 milhões de hectares, estão 40 mil espécies vegetais, sendo cerca de 16 mil espécies de árvores. Tudo isso não é ação exclusiva e autônoma da Natureza. A formação dessa floresta é, em grande parte, resultado direto da ação dos humanos que lá viveram há milhares de anos. Apenas 227 espécies, ou 1,4%, correspondem a quase metade de todas as árvores existentes na região. O manejo agrícola de indígenas ajudou a moldar a Amazônia que conhecemos hoje. 

 

Estudos recentes mostram que a região amazônica é habitada há pelo menos 8 mil anos – talvez mais. Ao contrário do que se pensava, os indígenas se estabeleceram em grandes cidades, sem a arquitetura grandiosa de outros povos pré-colombianos, mas em grandes povoados. De acordo com o arqueólogo Eduardo Góes Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e autor do livro Sob os Tempos do Equinócio: Oito Mil Anos de História na Amazônia Central, quando a cidade de Santarém, no Pará, foi fundada, em 1661, já moravam nela 6 mil indígenas – o quádruplo da população do Rio de Janeiro na época. E, também de forma diferente do que se acreditava antes, esses indígenas não dependiam apenas da caça e da coleta para sobreviver, mas já conheciam o manejo agrícola e haviam domesticado algumas espécies vegetais. 

 

Na região próxima a Porto Velho, em Rondônia, há indícios do plantio de feijão, abóbora e mandioca, de acordo com pesquisa da arqueóloga britânica Jennifer Watling publicada no periódico científico Plos One. Os indígenas queimavam algumas árvores para abrir espaço para o manejo e a domesticação de árvores. Vestígios escavados no local indicam o cultivo do tubérculo ariá (Calathea allouia). Foram encontrados também vestígios do cultivo de goiaba (Psidium) e castanhas-do-pará (Bertholletia excelsa), e já se sabia que a mandioca foi domesticada há cerca de 8 mil anos, antes de se espalhar pelo resto do País. 

 

O processo de domesticação era primitivo, feito de forma empírica e lenta. Mas os vestígios encontrados pelos pesquisadores mostram que havia um conhecimento na maneira como espécies de fora da floresta, como o feijão e a abóbora, originalmente domesticadas nas partes baixas da Cordilheira dos Andes e na América Central, foram adaptadas para o clima distinto da Amazônia. Ao longo de milhares de anos, os indígenas foram fazendo experiências que resultaram em características genéticas consideradas superiores, como frutos maiores e mais doces ou árvores mais baixas, que facilitam a colheita. 

 

Além do cultivo, os indígenas manejavam árvores de maior interesse social, como o açaí, o cacau, a castanha, a seringa e o cupuaçu. Por meio do manejo, obtinham densidades muito maiores do que as naturais. Essas plantas não foram domesticadas porque eram encontradas em abundância na floresta. Não havia necessidade de tirá-las de seu habitat natural. Bastava cuidar. E, aos poucos, a floresta foi se transformando. 

 

Essas descobertas só foram possíveis graças à descoberta de novos indícios e vestígios e à aplicação de novas técnicas. As principais revelações vêm sendo feitas graças à análise da chamada “terra preta”. Trata-se de um solo escuro, de cor muito negra, que pode apresentar textura oleosa. São criadas pela ação humana e costumam conter materiais culturais, como restos de cerâmica. Também têm algumas características que os especialistas ainda não sabem explicar totalmente. Mantém a fertilidade mesmo em condições climáticas das zonas tórridas equatoriais, de acordo com o antropólogo Eduardo Góes Neves em seu livro. Por conta dessa fertilidade, é muito procurada pelas populações locais e é muito comum que roças sejam feitas sobre sítios arqueológicos de grande importância. Nela também se encontram restos de animais e plantas. Ainda não se sabe se eram feitas de forma proposital para enriquecer o solo de baixa fertilidade natural da região amazônica. Mas há certo consenso de que a presença da terra preta indica o processo de sedentarização que aconteceu na Amazônia.  

 

A terra preta é uma formação conhecida pela ciência desde o século 19, mas que ficou sem receber a devida atenção durante décadas. A partir de pesquisas feitas nos anos 1980, voltou a ser estudada e hoje representa a melhor evidência para a validação dos princípios da chamada ecologia histórica.  A linha de pesquisa busca compreender as relações das sociedades humanas com o seu ambiente local e os efeitos cumulativos dessas relações.  

 

No caso da Amazônia, é uma forma de compreender como viveram os povos indígenas que a ocuparam inicialmente há milhares de anos. Esses ocupantes deixaram alguns vestígios, como cerâmicas e algumas ferramentas, além das enigmáticas estruturas conhecidas como geoglifos, formações em baixo relevo escavadas usando instrumentos de madeira, com centenas de metros de diâmetro. Aos poucos, os pesquisadores vão desvendando pequenas peças desse extenso quebra-cabeça, mas ainda há muito a descobrir. Novas tecnologias de análise genética devem ser usadas para obter ainda mais informações sobre essas populações. O novo Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva, da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, tem diversas linhas de pesquisa cujo objetivo é estudar os povos indígenas e, a partir deles, compreender muito da história do Brasil antes da chegada dos europeus. 

 

Além de ajudar na compreensão de nosso passado, os estudos podem dar pistas importantes para o futuro. Há uma movimentação crescente para entender de que maneira a sabedoria indígena pode inspirar o manejo responsável das frutas nativas, gerando renda para populações locais sem provocar a destruição do bioma. Enquanto frutas exóticas, como maçã e laranja, estão sendo analisadas e transformadas há muitos séculos, ainda se produz pouco conhecimento sobre as mais de 220 plantas produtoras de frutos comestíveis na região. Algumas, como a pupunha, já foram totalmente domesticadas. Mas outras ainda dependem do extrativismo. Existem iniciativas que são referência mundial, como os Bancos Ativos de Germoplasma (BAGs) mantidos pela Embrapa Amazônia Oriental e pela Embrapa Amazônia Ocidental, com coleções de fruteiras e palmeiras nativas da Amazônia. As pesquisas na região vêm sendo feitas junto com as populações tradicionais, que podem ser beneficiadas pela união entre sabedoria milenar e técnicas modernas de cultivo.