A reinvenção do queijo

Num movimento semelhante ao que aconteceu com as cervejas artesanais, a arte de produzir queijos esp


27.02.23

Num movimento semelhante ao que aconteceu com as cervejas artesanais, a arte de produzir queijos especiais ganha espaço no Brasil – e os resultados são surpreendentes


Por Irineu Guarnier Filho
Fotos: Isadora Guarnier

As origens do queijo – que alimenta a humanidade há mais de 10 mil anos – se perdem nas sendas tortuosas da história da gastronomia. A documentação mais antiga de que se tem notícia data de 2 mil anos antes de Cristo, no Egito. Mas países da Ásia e da Europa também conheciam esta iguaria desde tempos imemoriais. Como outro alimento fermentado, o vinho, é possível que o primeiro queijo também tenha surgido de uma fermentação espontânea – no caso, do leite de cabras ou ovelhas transportado em odres. O certo é que, desde que se descobriu que poderia ser um alimento nutritivo e de fácil conservação, o queijo se incorporou à dieta de proteínas de quase todos os povos da Antiguidade e da Idade Média – e chegou aos nossos dias como uma iguaria cada vez mais apreciada.
Se a França possui mais de 600 tipos de queijo com denominação de origem, e outros países europeus como a Itália, a Suíça ou Portugal não ficam atrás, o Brasil só recentemente despertou para a valorização e certificação de seus queijos mais autênticos – Minas Gerais à frente, com seu insuperável Canastra. Da mussarela industrializada das gôndolas dos supermercados, o gosto do brasileiro de maior poder aquisitivo evoluiu para a apreciação de queijos artesanais, elaborados com leite cru de vaca, de ovelha ou de cabra. A “gourmetização” da culinária brasileira ajudou. O fenômeno é semelhante ao que ocorreu com as cervejas artesanais. Na verdade, uma volta às origens desses dois alimentos.
O queijo artesanal entrou para o cardápio dos melhores restaurantes brasileiros e virou queridinho de chefs pop. Ganhou programas exclusivos na TV, perfis e seguidores nas redes sociais, e clubes que vendem o produto por assinatura. Embora ainda seja um alimento indiscutivelmente elitizado, para dar conta da nova demanda a produção se espalhou pelo País. E, agora, o reconhecimento internacional está chegando.
No célebre Mondial du Fromage et des Produits Laitiers, maior e mais prestigiado concurso de queijos do mundo, que acontece de dois em dois anos na França, os queijos brasileiros têm feito bonito. Em 2019, ano particularmente favorável aos nossos produtores, dos 137 queijos verde-amarelos inscritos, 56 conquistaram medalhas: quatro na categoria Super Ouro; seis na Ouro; 23 na Prata e 23 na categoria Bronze. Minas Gerais ficou com 50 medalhas. Mas produtores de outros estados estão resgatando antigas receitas e métodos de produção para elaborar queijos únicos, já visando a uma Indicação de Procedência (IP) ou até a uma Denominação de Origem (DO) do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). O modelo europeu de Indicações Geográficas (IGs), adotado pelos produtores brasileiros de vinhos, tem ajudado a valorizar ainda mais a produção artesanal do País.
Sem grande tradição queijeira, embora possua uma indústria de laticínios solidamente instalada há décadas, o Sul do país desperta para essa atividade, até há pouco tempo marginal nas propriedades rurais. Maior produtor de leite do Brasil (tecnicamente empatado com o Paraná), o Rio Grande do Sul possui mais de 40 mil pecuaristas leiteiros em atividade – quase todos integrados a alguma agroindústria. Nos últimos tempos, porém, alguns pequenos produtores têm se dedicado a elaborar os próprios queijos. De acordo com a Emater, mais de 6 mil famílias produzem queijos, ainda na informalidade. Apenas 250 queijarias e pequenos laticínios contam com inspeção municipal. Mas pelo menos três queijarias já ostentam o Selo Arte, que lhes permite comercializar seus produtos em outros municípios do estado.


Casal de advogados largou o Direito para elaborar queijos

Em processo de adequação à legislação municipal de Porto Alegre, o casal de produtores Rodrigo Polidori e Mariana Guarienti produz queijos artesanais – e autorais – na zona rural da capital gaúcha, às margens do Rio Guaíba. Advogados, ambos largaram bons empregos em escritórios conceituados para se dedicarem à queijaria no segundo ano da pandemia. “Torcemos para sermos demitidos, porque queríamos muito viver aqui e produzir nossos queijos”, conta Polidori. Mariana já fazia cursos de especialização e logo tornou-se mestre-queijeira. A pequena propriedade de 2 hectares, onde o casal e a recém-nascida Violeta residem hoje, é também a sede da Queijaria Tempo.
O leite – cerca de 20 litros por dia – vem de duas vacas Jersey, batizadas de Maria e Capela. Este volume é inferior à metade do que os animais poderiam produzir em regime intensivo, mas eles não comem rações industrializadas, só silagem de milho. Com a matéria-prima de alta qualidade, produzida em harmonia com a natureza, Rodrigo e Mariana fazem 90 quilos de queijos artesanais por mês. A ideia é aumentar a produção aos poucos, mas não muito, para não perder a pegada artesanal e, principalmente, o caráter autoral. Mais dedicada à alquimia das leveduras e das fermentações, enquanto o marido cuida principalmente dos animais, Mariana exibe com orgulho a produção da casa: cinco diferentes queijos, cujos nomes estão associados à flora e à tradição cultural gaúchas.
O Tuna (da cor alaranjada da flor de tuna, planta típica do Pampa) é um queijo de casca lavada, massa curada e sabor suave, com dois meses de maturação. O Gravatá (planta nativa de banhados) tem massa semicurada, casca rústica, sabor intenso e seis meses de maturação. O Sete Luas é um queijo de massa mais dura (como a do Parmesão), e casca rústica. Pode ser ralado. A maturação dura exatamente sete meses, daí o nome. O Chiripá (traje típico gaúcho) tem massa “cheddarizada” (inspirada no Cheddar), porém é mais duro e quebradiço. Matura por até nove meses, selado com uma “capa” de gaze e banha de porco (“vestimenta” retirada depois para o consumo). E o Boitatá (nome de uma famosa lenda rio-grandense) é um exemplar de casca lavada e massa macia, mas bastante firme e muito aromático.
Todos os queijos, frisa Mariana, são produtos de terroir, únicos, e não cópias de tipos consagrados europeus, que expressam as características do solo, do clima e da alimentação dos animais da propriedade. Não podem, portanto, ser reproduzidos em outro lugar. A diferença entre queijos artesanais e autorais, explica a mestre-queijeira, é justamente esta: os primeiros estão relacionados principalmente à escala de produção, e os outros, ao terroir. “Um quadro do Picasso pode ser replicado por outro pintor, mas o autor é o Picasso”, exemplifica Mariana.


Legislação azeda o queijo artesanal

Queijo artesanal desde sempre é elaborado com leite cru. E este é o calcanhar de aquiles desta florescente atividade. A legislação sanitária em vigor no País (em três níveis: municipal, estadual e federal) foi concebida para a produção industrial em grande escala de queijos pasteurizados e não contempla a realidade dos pequenos produtores artesanais. Eles dizem que não se pode exigir de um produtor autoral as mesmas condições tecnológicas dos grandes laticínios. Mas ressalvam que isso não significa, de maneira alguma, tolerância com a falta de higiene ou com doenças no rebanho, como tuberculose e brucelose. A propriedade tem de estar livre destas duas enfermidades, principalmente, e os queijos devem ser produzidos em condições adequadas de higiene, porque o leite é um meio de cultura rico para a proliferação de bactérias. Até aí, todos estão de acordo. Menos a fiscalização sanitária, que muitas vezes não compreende a natureza da produção artesanal – e distribui multas a torto e a direito. “O fiscal que fiscaliza a grande indústria não deveria fiscalizar a produção artesanal”, sentencia Rodrigo Polidori.
O médico veterinário Danilo Gomes, diretor da Associação Gaúcha de Laticinistas e Laticínios, é um mineiro de nascimento que há alguns anos vem ensinando os gaúchos a valorizarem a sua produção artesanal de queijos. Já organizou, inclusive, o primeiro concurso do produto no estado, em maio deste ano. Foi um marco na história da queijaria artesanal do Sul do País. Para Gomes, a legislação que rege os pequenos “é bem inclusiva”, mas as inspeções estaduais ainda deixam a desejar, o que leva os poucos produtores que podem a buscar diretamente a Inspeção Federal. “Muitos municípios têm flexibilizado a legislação e aí os produtores conseguem vender em outras cidades com equivalência.” Minas Gerais, de novo, saiu na frente, e alguns queijeiros locais já negociam a sua produção em outros municípios e mesmo em outros estados da federação.


Terreno fértil para desbravadores da gastronomia

Especializada em queijos artesanais brasileiros e vinhos naturais, a Casa Vivá, instalada no elegante bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, vem se afirmando como vitrine da melhor produção nacional e ponto de encontro de “gourmands” apreciadores da iguaria. Com peças de quase todos os estados brasileiros que produzem queijos em seu portfólio, a ideia dos proprietários era ter um cardápio à altura da “maior carta de vinhos naturais do País”. As harmonizações que a Casa Vivá sugere aos seus frequentadores permitem inúmeras combinações de aromas e sabores. “Os nossos clientes são pessoas que têm grande apreço pelo queijo e um espírito desbravador na gastronomia. Querem provar novidades ou conhecer queijos de outros estados”, revela o queijista Shay Trequesser, que gosta de “garimpar” para o estabelecimento alguns dos expoentes da produção queijeira gaúcha. Queijos que, infelizmente, por causa da complicada legislação sanitária, “não podem ser vendidos para fora do estado e nem exportados”. Trequesser tem esperanças de que, se sair o Selo Artesanal (por enquanto, o estado só possui o Selo Arte), o tráfego do produto vai crescer muito no Brasil. “Só a livre circulação pelo País já seria um grande passo para o nosso queijo artesanal.”
O especialista acredita que este é o momento de “reinvenção do mercado do queijo”. Para que seu consumo se torne menos elitista e mais pessoas possam apreciar os aromas e sabores de um autêntico queijo artesanal será preciso, no entanto, investir bastante em educação gastronômica. O paladar do brasileiro médio, acostumado ao produto industrializado, ainda é considerado infantil pelos conhecedores, e precisa evoluir muito para chegar ao ponto de reconhecer as qualidades próprias de um queijo elaborado com leite cru, como tem sido desde os primórdios da civilização.


Queijo e vinho: casamento que pode terminar em divórcio litigioso

Vinho e queijo parecem ter sido feitos um para o outro, não? Mas não é bem assim. Para que esse casamento não termine em divórcio litigioso, algumas regrinhas precisam ser observadas. A regra básica da harmonização entre queijos e vinhos é o equilíbrio. A complementação de sabores, cores, texturas e consistências. Este equilíbrio pode ser alcançado por composição (afinidade) ou por oposição (contraste).
O que pode dar errado? Queijo forte com vinho leve. Sal em demasia com taninos ásperos. Acidez alta de um com acidez baixa do outro. Muita gordura do queijo com baixa acidez e untuosidade do vinho.
O que geralmente dá certo: vinho branco seco ácido (Sauvignon Blanc) com queijo de massa mole ácido. Vinho branco barricado (Chardonnay) ou tinto leve (Pinot Noir/Gamay) com queijo semimole. Vinho encorpado (Cabernet Sauvignon, Merlot ou Tannat) com queijo duro condimentado. Vinho branco seco (Sauvignon Blanc/Chardonnay sem barrica) com queijos frescos. Vinho branco doce (Colheita Tardia/Moscatel) com queijo de veios azuis – por contraste. Não tem erro.