Os jardins esotéricos da Weleda

Por Karina Pastore   Os cuidados parecem inspirados em rituais do misticismo pagão. Quando o i


13.01.23

Por Karina Pastore

 

Os cuidados parecem inspirados em rituais do misticismo pagão. Quando o inverno chega, chifres de vacas com esterco dentro são enterrados a meio metro de profundidade. Ficam lá até a primavera, época em que são resgatados. Misturado à água da chuva, em temperatura ambiente, o estrume vira adubo e é respingado nas raízes da plantação com um pincel. Flores de mil folhas secam ao sol do verão, em trouxinhas feitas com bexiga de animal macho. No início do outono, são jogadas em buracos de, no máximo, 30 centímetros, de onde também só saem na primavera. 

E por aí vai… Camomila, dente-de-leão, valeriana, urtiga, carvalho, cavalinha, quartzo moído… Tripa de boi, crânio de bicho doméstico, mesentério bovino… Nove preparados, usados em doses homeopáticas, mediadores das energias intercambiadas entre a Terra e o Cosmo – segundo prega a filosofia. Da semeadura à colheita, a lavoura deve obedecer aos movimentos da lua e dos planetas. Uma cabeça de repolho com mais folhas? Uma espiga de milho com mais grãos? As constelações do Zodíaco indicam o momento mais adequado para o cultivo. 

Homem, animais, plantas, terra, água e ar – cada fazenda é força de vida, um organismo pulsante, no qual todos os seus elementos estão em equilíbrio. Cabe ao produtor mantê-los em harmonia, da maneira mais natural possível. Aliás, agricultor não é apenas uma profissão, e, sim, uma vocação. Bem-vindos ao universo holístico da agricultura biodinâmica.

O método agrícola foi idealizado pelo controverso filósofo e professor austríaco Rudolf Steiner. Em 1924, um ano antes de morrer, ele foi convidado para um ciclo de oito palestras, na cidade polonesa de Koberwitz (hoje, Breslávia). O aceno partiu de fazendeiros locais, preocupados com a queda na qualidade das colheitas, o empobrecimento do solo e a deterioração da saúde dos animais. Cento e onze pessoas, de seis países, foram ouvir o filósofo condenar o uso de fertilizantes e pesticidas sintéticos e exaltar o poder da espiritualidade para a prosperidade da lavoura. 

Àquela altura, Steiner já era famoso. No início da década de 1910, ele havia estabelecido os preceitos da antroposofia. Tudo na natureza, pregava o professor, está interligado e conectado ao Cosmo. Definida como “ciência espiritual”, por seus seguidores, e pseudociência, pelos acadêmicos mais céticos, a antroposofia foi aplicada em várias áreas do conhecimento. Na educação, inspirou a pedagogia Waldorf – Steiner abriu sua primeira escola em 1919, na cidade alemã de Stuttgart. Na saúde, embasou o surgimento da medicina antroposófica. Em 1921, com a ginecologista holandesa Ita Wegman, o filósofo fundou a Weleda – hoje, uma gigante do setor de medicamentos e cosméticos naturais. 

A matéria-prima para a fabricação dos produtos da marca sai de oito fazendas (ou jardins, como a empresa as denomina), na Alemanha, Inglaterra, França, Suíça, Holanda, Nova Zelândia, Argentina e Brasil – mais especificamente na cidade de São Roque, a 50 quilômetros de São Paulo. Cerca de 50 agricultores credenciados cuidam de 23 hectares de campos de plantas e ervas medicinais, 50 espécies de pássaros e 30 de abelhas. Alguns fazendeiros seguem à risca as orientações esotéricas de Steiner. E todos partilham da devoção do filósofo ao solo – “nossa terra”, como chamam. Como receptáculo das energias cósmicas, o solo deixa de ser um mero substrato. A adubação é mais (muito mais) do que apenas nutrir a plantação. É vivificá-la. Só assim é possível, segundo as diretrizes biodinâmicas, desenvolver uma agricultura verdadeiramente sustentável e regenerativa. 

Alfazema, nenúfares, carvalhais, bétulas, malvas, calêndulas, malmequeres, camomila, mil-folhas, amor-perfeito selvagem, prímulas… os jardins da Weleda são coloridos e perfumados. O maior deles fica na Alemanha, em Schwäbisch Gmünd, nos Alpes Orientais, onde se cultivam nada menos do que 260 espécies de plantas medicinais. “Nosso jardim é um lugar feliz”, costuma dizer Michel Straub, diretor do lugar.

Nos oito jardins, a colheita é manual e as culturas são consorciadas e/ou alternadas. Em média, de três a dez espécies compartilham o mesmo espaço do terreno. Em comparação à monocultura, o cultivo simultâneo preserva a saúde do solo, depende menos clima, é menos suscetível ao ataque de pragas e aumenta o rendimento da lavoura, entre outras benesses. Já a troca de cultura a cada novo plantio exige tipos diferentes de adubo, o que mantém preservadas as características físicas, químicas e biológicas da terra e, consequentemente, evita a sua exaustão. 

Tais técnicas agrícolas favorecem a biodiversidade do ecossistema local, no qual todos têm o que fazer, disse o argentino Jorge Giusto, em entrevista ao jornal La Nación. Passarinhos, abelhas e borboletas ajudam na polinização, enquanto espantam invasores indesejáveis. “A natureza faz o que quer e o homem administra”, define. Giusto é o responsável pelas 70 espécies de plantas medicinais, da fazenda de Córdoba, a noroeste de Buenos Aires. 

Na Inglaterra, lê-se em material produzido pela Weleda que os campos de calêndula, geridos segundo os princípios da agricultura biodinâmica, recuperaram o solo nos arredores de Ilkeston, no condado de Derbyshire, uma região tradicionalmente ligada à mineração de carvão. No jardim de Havelock, aos pés de Te Mata Peak, no norte da Nova Zelândia, três vacas fornecem o estrume necessário para a produção de adubo, os tais preparados.

No ano passado, a Weleda recebeu o atestado de Empresa B. Criada em 2006, pela organização sem fins lucrativos B Lab, sediada em Berwyn, na Pensilvânia (EUA), a certificação é dada às companhias alinhadas aos mais altos padrões de desempenho social e ambiental, transparência e responsabilidade legal. A empresa também tem o reconhecimento da Union for Ethical BioTrade, uma ONG global de avaliação das melhores práticas no fornecimento de ingredientes naturais. Os jardins da Weleda têm também, claro, o aval da Demeter International, entidade de observação do cumprimento das normas biodinâmicas. 

A agricultura biodinâmica ocupa hoje 230 mil hectares de terra, em 65 países. “Os fazendeiros podem ser encontrados em todos os cantos do globo, com sucesso em todos os continentes, em diversas condições climáticas”, lê-se em relatório da Demeter International. “Sejam bananas na República Dominicana, chá na Índia, ervas medicinais no Egito e carne e lã na Nova Zelândia.” Ah, e queijo, na França, e seda, na China.

Isso, no entanto, não significa que a filosofia agrícola de Steiner seja amplamente aceita. Ao contrário. Muitos acadêmicos, estudiosos da agricultura e da ecologia, dizem que essa história de influência cósmica é uma patacoada. Garantem que, desconsiderando os conceitos esotéricos, os resultados da agricultura biodinâmica são muito semelhantes aos da agricultura orgânica. Que a troca de aditivos e defensivos sintéticos por insumos naturais, o consórcio e a rotação de culturas, essas, sim, são alternativas sustentáveis, bem-vindas em tempos de emergência climática e devastação das terras aráveis.