O Arquipélago dos Vinhos

  O arquipélago dos vinhos   Na paisagem estéril e bela dos Açores, vinhedos desafiam a


16.01.23

 

O arquipélago dos vinhos

 

Na paisagem estéril e bela dos Açores, vinhedos desafiam a natureza e dão origem a rótulos que estão conquistando apreciadores em todo o mundo

 

Por Suzana Barelli

 

As nove ilhas do Arquipélago de Açores parecem perdidas no meio do Oceano Atlântico. Fruto de erupções vulcânicas há milhares de anos, elas foram descobertas e conquistadas pelos portugueses na época das Grandes Navegações. E quis o destino – ou melhor, as condições de solo e clima – que uma delas revelasse a sua vocação para os vinhos. É a ilha do Pico, a segunda maior do arquipélago, e que tem em sua principal montanha o ponto mais alto de Portugal. Com 2.351 metros acima do nível do mar, não raro encoberto de nuvens que formam um anel em torno das encostas – quem olha de longe, enxerga o cume sobre elas –, o Pico marca a paisagem local e é orgulho não apenas dos ilhéus como de todos os portugueses, que não deixam de comentar sobre a sua altura.

 

Mas o que impressiona mesmo na paisagem, para quem chega de avião ou de barco à ilha do Pico, são seus vinhedos, que rodeiam a costa de 42 quilômetros de comprimento por 20 quilômetros de largura. As uvas são cultivadas próximas ao Oceano Atlântico e cercadas de muros de pedra vulcânica, que as protegem dos ventos intensos que vêm do mar. Apelidados de currais, estes muros compõem um cenário meio rústico, de beleza única – as vinhas, aproveitando, se tornaram patrimônio mundial pela Unesco em 2004.

 

É neste cenário árido que as uvas lutam para sobreviver. Com o vento e a brisa salina, não é fácil dar frutos. Plantadas muito rentes ao chão, as vinhas crescem rasteiras, retorcidas, sem nenhuma condução, o que torna o seu cultivo bem mais trabalhoso. Vale lembrar que são plantas trepadeiras, que pedem um amparo para serem conduzidas e crescerem. E nem adianta afastar os vinhedos do litoral e ir em direção ao Pico. Como toda grande montanha sozinha na paisagem, ele “segura” as nuvens que se formam nesta região do Atlântico Norte. Ao seu redor, o clima é muito chuvoso, o que atrapalha o cultivo das videiras, mas cria diversas lagoas que encantam os turistas. Perto da montanha chove inacreditáveis 5 mil milímetros por ano; no litoral, menos de 1 mil milímetros. Em anos clássicos, Bordeaux, na França, conhecida pelas chuvas, tem um índice pluviométrico, ao redor de 1,8 mil milímetros.

 

Mas o fato é que as dificuldades de clima e o solo vulcânico relativamente jovem acabam por trazer maior complexidade aos vinhos locais. Como ilha mais nova do arquipélago, sua formação data de 270 mil anos atrás. A ilha de São Miguel, não muito distante dali, tem 5 milhões de anos e a famosa ilha da Madeira, mais de 7 milhões de anos. Isso faz com que o solo do Pico tenha mais pedras, já que ainda não houve tempo geológico para uma decomposição das lavas vulcânicas. Cabe às videiras vencerem este solo e encontrarem seu alimento no subsolo. Não é fácil.

 

Três variedades marcam os vinhos do Pico, todas brancas: a verdelho, a Arinto dos Açores e a Terrantez do Pico. A Verdelho é a mais tradicional da região e a mais cultivada. A Arinto é autóctone da ilha e a mais resistente ao clima local. Sabe-se que não é a mesma da Arinto que faz sucesso nos vinhos portugueses do continente. E a Terrantez é a mais emblemática. A uva quase foi extinta, já que é mais vulnerável às doenças e nem todos os produtores gostam de cultivá-la. Mas resulta em um branco de boa mineralidade, às vezes com um toque salino característico.

 

Muito do trabalho de sua recuperação e valorização se deve ao intrépido e muitas vezes polêmico enólogo António Maçanita, sócio da Azores Wine Company. Nascido em Lisboa, de pai açoriano e mãe alentejana, Maçanita se encantou pelo Pico e é um dos grandes nomes da enologia portuguesa – é dele o projeto Fita Preta, no Alentejo, por exemplo. Maçanita integra o time de profissionais do vinho, em sua maioria portugueses, que está colocando o Açores novamente no mapa dos bons vinhos. No passado distante, a ilha do Pico fazia sucesso com os seus vinhos e, dizem, competia com a Madeira como melhor morada para os vinhos ilhéus de Portugal. Mas as pragas, principalmente o oídio, tiraram o atrativo da ilha. 

 

Maçanita, no entanto, não reina sozinho na ilha do Pico. Paulo Laureano foi o primeiro dos grandes enólogos portugueses a apostar na ilha. Desde 1998, ele é consultor e tem uma parceria com a vinícola Curral Atlântis, e fica no Lajido da Criação Velha, onde nasceu a viticultura local e estão algumas de suas vinhas mais antigas. E o mais recente é Dirk Niepoort, referência nos vinhos continentais, como Douro, Porto e Bairrada, que também elabora um branco no Pico, com primeira safra em 2022. Niepoort tem uma parceria com o enólogo Paulo Machado, que decidiu fixar residência na ilha, tem seu próprio projeto e também dá consultorias por lá. Suas uvas vêm dos vinhedos de A Cerca dos Frades, do empreendedor Tito Silva, que conseguiu financiamento da comunidade europeia para recuperar vinhedos e, assim, manter a cultura dos vinhos do Pico viva.

 

Interessado na ilha há também o italiano Alberto Antonini, conhecido por trabalhar em vinícolas como a uruguaia Garzón, a argentina Zuccardi, aqui na América do Sul. Antonini é consultor da Adega do Vulcão, um pequeno projeto da também italiana Cinzia Caiazzo, que mora na ilha do Faial, que fica em frente ao Pico, que mescla uvas das duas ilhas. O interesse dos enólogos mostra o potencial dos vinhos locais. Agora só há uma questão para resolver: com todas essas tipicidades e adversidades, os vinhos dos Açores são também mais caros do que os demais rótulos portugueses. E isso explica por que há, ainda, poucos destes brancos no Brasil. Em breve, os vinhos de Maçanita devem chegar por aqui, mas não há previsão para os demais rótulos. É esperar e torcer.