O fruto da conservação

  O fruto da conservação Cultura do cacau é vetor de preservação da floresta e pode ser a


14.10.22

 

O fruto da conservação

Cultura do cacau é vetor de preservação da floresta e pode ser a alavanca para melhorar a renda do agricultor familiar

 

Lívia Andrade, de Altamira (PA)

 

Do espaço ou do chão é possível enxergar um horizonte positivo para regiões inteiras da Amazônia. E quem olha com atenção identifica claramente um fruto bastante popular nesta imagem. Um estudo da Embrapa chancela o cultivo do cacau como vetor de preservação da Amazônia. Fruto do cruzamento de imagens de satélite com dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e pesquisas de campo, o mapeamento feito por Adriano Venturieri, pesquisador da Embrapa, cobriu 70 mil hectares em 26 municípios paraenses. O trabalho resultou no artigo “A expansão sustentável da cultura de cacau no estado do Pará e a sua contribuição para a recuperação de áreas alteradas e redução de incêndios”, que – recentemente – foi publicado no Journal of Geographic Information System. “Estes 70 mil hectares foram até 2019, mas continuamos o monitoramento e hoje estamos com 90 mil hectares mapeados”, diz Venturieri.

 

A pesquisa lança os holofotes para os cacauais do Pará, cultivados majoritariamente por agricultores familiares em SAF, sistema agroflorestal que integra o cacau com espécies frutíferas (açaí é um exemplo), árvores provedoras de óleos e sementes e outras com fins madeireiros. O trabalho mostrou que 70% da expansão cacaueira tem ocorrido em áreas anteriormente degradadas. E mais: aonde a cultura chega, as queimadas e o desmatamento diminuem. “99,54% das áreas mapeadas não apresentam problemas em relação a áreas protegidas. Apenas 0,46% se encontra em área de preservação ambiental (APA), que permite atividades produtivas”, relata o pesquisador.

 

Outro estímulo à expansão do cacau na região vem da Instrução Normativa nº 33.993/2019 do Governo do Estado do Pará, que dispõe sobre os critérios para recomposição de Reserva Legal com o plantio de cacau em sistemas agroflorestais. Segundo órgãos do Pará, o agronegócio cacau no estado engloba 28,7 mil produtores rurais, com uma média de 5 hectares cada. A maioria dessas propriedades rurais (80%) está situada na região da Transamazônica e mais de 70% dos produtores vendem suas amêndoas para atravessadores devido às dificuldades logísticas. No entanto, de acordo com a Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), ano após ano as moageiras estão aumentando a quantidade de amêndoas compradas diretamente dos produtores. “Este índice saiu de zero para algo em torno de 15% a 25% no ano passado”, diz Anna Paula Losi, diretora- executiva da AIPC.

 

A sede da indústria por matéria-prima é facilmente explicada. O Brasil é um lugar ímpar no mundo, reúne características, que nenhuma outra nação possui: 1) produz cacau; 2) tem parque moageiro; 3) indústrias chocolateiras; e 4) mercado consumidor. “Fechamos 2021 com um crescimento de 35,9% na produção de chocolate”, diz Ubiracy Fonsêca, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab). E, mesmo em 2020, com o boom da pandemia no paísPaís, que prejudicou muito o segmento de Food Service (alimentação fora do lar), o setor fechou o ano com um crescimento de 0,5% no número de vendas.

 

No entanto, segundo a AIPC, nos últimos cinco anos, a produção média nacional de cacau ficou em torno de 170 mil toneladas de amêndoas por ano. “Este volume está muito aquém da capacidade instalada da indústria, que é de 275 mil toneladas e distante do que temos processado anualmente, cerca de 220 mil toneladas”, explica Anna. 

 

Um dos entraves para o aumento da produção brasileira de cacau era a desunião do setor, que mudou com a chegada do CocoaAction, em 2018. Trata-se de uma iniciativa da Fundação Mundial do Cacau (WCF, na sigla em inglês) para promover o desenvolvimento sustentável da cadeia cacaueira. “Atuamos com parcerias público-privadas e pré-competitivas, em que empresas competidoras no mercado se unem para trabalhar por objetivos comuns”, diz Pedro Ronca, coordenador do CocoaAction Brasil, que em território nacional reúne as moageiras Barry Callebaut, Cargill e Ofi e cinco chocolateiras, Dengo, Harold, Nestlé, Mondelez e Mars.

 

O CocoaAction é uma espécie de maestro, que rege a cadeia, englobando o setor privado, a esfera pública e o terceiro setor. Entre as diversas ações, destaca-se o “Currículo de Sustentabilidade do Cacau”, fruto de um ano de trabalho de mais de 50 organizações da cadeia, que elencaram 32 boas práticas para o produtor ser considerado sustentável. “A sustentabilidade começa por garantir renda ao produtor. Há muita oportunidade para ele aumentar a produtividade e ficar menos suscetível às oscilações de preço”, diz Ronca. “Ao adotar boas práticas, ele também consegue acessar mercados mais exigentes”, acrescenta.

 

DESAFIOS

Um dos entraves é a falta de Assistência Técnica Rural (ATERAter), problema que não é exclusivo do setor cacaueiro. De acordo com os dados do IBGE, o número de propriedades rurais que declararam possuir ATER Ater despencou de 53% no censo agropecuário de 2006 para 20% em 2017. A história de José Renato Preuss e da esposa, Verônica, produtores de cacau em Brasil Novo (PA), ilustra esta essa realidade.

 

Eles têm 10 mil pés de cacau e, no ano passado, perderam a maior parte da produção em função da podridão podridão-parda, doença fúngica que impacta à a cultura. Mas ficaram sabendo do projeto de Assistência Técnica e Gerencial (ATeG Mais Cacau) do Senar e foram em busca de ajuda. Por sorte, houve uma desistência e eles se encaixaram na primeira turma. O programa, durante dois anos, dá um acompanhamento individualizado com foco não só no manejo agrícola, mas também na gestão da propriedade rural. “No Pará, o projeto começou em 2021 com 250 produtores de cinco cidades. Hoje ampliou para 1.500 agricultores de mais de 15 cidades, incluindo produtores de cacau de várzea”, diz Gleyca Andrade, uma das supervisoras do ATeG Mais Cacau, que conta com 50 técnicos, sendo que cada um cuida de 30 produtores.

 

A produtividade média do cacau no Brasil é baixa, cerca de 300 quilos de amêndoa por hectare hectare/ano. No entanto, quando Fernando Vronski, técnico do Senar, chegou ao sítio da família Preuss, percebeu uma contradição: a lavoura era produtiva, mas as perdas eram elevadas. Com a assistência técnica, o casal passou a fazer análises de solo e aplicar corretamente os agroquímicos. “Eu fazia o tratamento para a podridão podridão-parda, mas não da forma correta. Com a orientação do Fernando, passei a fazer tudo conforme manda a regra e minha perda caiu de 70% para 10%”, diz José Renato Preuss. Hoje, o produtor está com uma produtividade média de 500 quilos por hectare, mas sua meta é alcançar 1.500 quilos por hectare.

 

A família Preuss tem se tornado uma referência no Pará. O casal faz um trabalho diferenciado desde a lavoura até o pós-colheita, com a fermentação das amêndoas, o que lhes garantiu o 3º terceiro lugar no III Concurso Nacional de Qualidade de Cacau Especial do Brasil, na categoria Blend. Eles também são fornecedores “prata” do Nestlé Cocoa Plan (NCP). “É o nosso programa de desenvolvimento de produtores de cacau, que capacita, monitora e certifica os pilares sociais e ambientais de propriedades rurais, pagando um prêmio por tonelada de amêndoa de acordo com o nível do produtor: bronze, prata, ouro ou diamante”, diz Igor Mota, gerente de Agricultura da Nestlé. 

 

O NCP tem 41 itens, sendo 14 essenciais (a linha de corte) para o agricultor participar do programa, que já conta com 1.600 agricultores e tem a meta de chegar em 2025 com 100% das amêndoas provenientes de produtores certificados. “O prêmio varia de US$ 35 por tonelada na categoria bronze Bronze e vai até US$ 100 por tonelada no nível diamanteDiamante”, explica Igor. Para implementar o programa, a Nestlé conta com as moageiras Barry Callebaut, Cargill e Ofi. Estas indústrias aplicam o NPC nos produtores e atravessadores parceiros.

 

“Estes intermediários, muitas vezes, chegam a lugares remotos, que a indústria não consegue chegar. Mas se topam implementar o NPC nos agricultores de quem compram o cacau, tanto eles quanto seus fornecedores recebem um diferencial pela tonelada de amêndoa”, diz Thiago Santos, diretor de Originação & e Sustentabilidade da Barry Callebaut. “É uma forma de organizar a cadeia e manter quem faz um trabalho correto”, acrescenta.

 

 

INCENTIVO À PRODUTIVIDADE

Nos últimos anos, a indústria tem estreitado os laços com os produtores. Todas elas têm seus próprios programas de sustentabilidade, de assistência técnica e a troca de amêndoas por insumos também tem crescido. “No Pará, 25% do volume recebido pela Cargill é através do barter”, diz Laerte Moraes, diretor do Negócio de Cacau & e Chocolate da multinacional no Brasil. Segundo o executivo, o período de compra de fertilizantes para o cacau coincide com o da soja. Conclusão: os produtores do fruto tinham dificuldade em conseguir o adubo e, quando conseguiam, o preço era elevado. Na Cargill, eles adquirem o insumo e têm o prazo de um ano para pagar com as amêndoas.

 

De acordo com os agrônomos que atuam na cadeia, o Brasil pode facilmente dobrar a produtividade do cacau, se os produtores fizerem o básico: análise e correção de solo, podas e manejo de luz. Segundo Luiz Carlos Piacentini, agrônomo do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) à frente de alguns projetos de assistência técnica no Pará, “o sistema agroflorestal (SAF) de cacau ideal deve ter 20% de sombra”.

 

No entanto, muitos SAFs são antigos, com espécies arbóreas não indicadas para o consórcio com o cacau ou por proporcionar muita sombra ou por perder as folhas na época em que o cacaueiro mais precisa de sombreamento. Esta é a realidade do sítio Flor da Amazônia, em Medicilândia (PA), cidade conhecida como a capital nacional do cacau. A propriedade foi herdada por Elisângela Elisangela Trzeciak e tem 45 hectares de cacauais em SAF com 25, 35 e 45 anos de idade. “Algumas áreas produzem 700 quilos de amêndoas por hectare/ano, outras 1.500 quilos por hectare/ano”, diz a produtora, que contratou assistência técnica particular para fazer as adequações necessárias. “Minha meta é ter uma produtividade mínima em SAF de 1.800 quilos por hectare/ano”, esclarece.

 

Há ainda outros obstáculos para o desenvolvimento da cacauicultoracacauicultura. Um deles é a falta de regularização fundiária, que deixa muitos produtores sem acesso às políticas públicas e às linhas de financiamento. Outro empecilho é a informalidade: muitos agricultores nem sequer têm conta bancária, o que impossibilita a venda direta para a indústria.

 

Neste contexto, as moageiras ajudam como podem. Muitas vezes, agem como facilitadores, auxiliando em processos burocráticos para os produtores regularizarem a propriedade. Elas também têm incentivado a formação e o fortalecimento de cooperativas. “Inclusive, com antecipação de pagamento para as cooperativas terem capital de giro e pagar os cooperados no momento da entrega das amêndoas”, diz o indiano Gagandeep Singh, responsável pela Originação de Cacau da Ofi no Brasil.

 

Mas por que a indústria está com foco no Brasil? “Para preparar os produtores para a demanda dos mercados internacionais que exigem sustentabilidade, rastreabilidade e qualidade”, diz Anna, da AIPC. A União Europeia, por exemplo, submeteu ao parlamento Parlamento a proposta de lei, que proíbe a importação de commodities ligadas ao desmatamento. No caso do cacau, o Brasil tem uma posição de destaque. O fruto é vetor de preservação não só no Pará, mas também na Bahia, onde predomina o cacau cabruca, em que os cacauais são sombreados por árvores da Mata Atlântica.

 

Além disso, no lado social, os problemas da cacauicultora cacauicultura nacional são mais fáceis de serem resolvidos do que na África, que abriga os maiores produtores mundiais. “O Brasil tem mais ferramental governamental e institucional e capacidade de implementar mudanças”, diz a diretora- executiva da AIPC. Neste sentido, o CocoaAction Brasil está fazendo um levantamento junto às empresas para saber quanto elas investem em sustentabilidade. Quando finalizado, o material ajudará a nortear as próximas ações da cadeia na agenda ESG, sigla em inglês para melhores práticas ambientais, sociais e de governança.

 

BOX:

O catalisador do cacau no Pará

O Fundo de Apoio à Cacauicultura do Estado do Pará (Funcacau), instituído pela lei Lei estadual Estadual nº 7.079, de 2007, foi criado com a finalidade de incentivar a modernização da cultura do cacau no estado. Anualmente, arrecada cerca de R$ 5 milhões com a taxa cobrada em cima da tonelada de amêndoa que segue para outras unidades federativas. Estes Esses recursos retornam ao produtor, por meio de projetos, que beneficiam a cadeia. O mapeamento da produção de cacau de Adriano Venturieri, pesquisador da Embrapa, é um exemplo. O laboratório de análise sensorial das amêndoas de cacau da Universidade Federal do Pará (UFPA) é outro exemplo. O local foi equipado com recursos do Funcacau. A Assistência Técnica e Gerencial (ATeG Mais Cacau) do Senar-PA também ganhou musculatura com recursos do fundo, que também patrocina festivais locais, nacionais e internacionais, entre outros projetos, desde que sejam aprovados pelo comitê gestor, composto por oito conselheiros.