Pecuária no laboratório

Por Daiany Andrade    Tem cara de bife, textura de bife e DNA de bife. Mas sua produção come


08.09.22

Por Daiany Andrade 

 

Tem cara de bife, textura de bife e DNA de bife. Mas sua produção começou bem longe das pastagens e dos confinamentos que fornecem seus animais para os frigoríficos. Desenvolvida a partir do cultivo, em laboratório, de células de animais, uma nova alternativa às carnes tradicionais está movimentando bilhões em investimentos ao redor do mundo. Inclusive no Brasil, onde estão as maiores empresas de proteína animal do mundo.

JBS e BRF, gigantes do setor, já fizeram suas apostas nas chamadas lab grow meats, as carnes produzidas em laboratório, ambas em parceria com startups estrangeiras. A primeira acaba de anunciar a abertura de um laboratório exclusivo para desenvolvimento nessa área, após assumir o controle da espanhola Biotech Foods, parte de um plano de investir US$ 100 milhões na área. O local escolhido foi Florianópolis. Já a BRF optou por investir na Aleph Farms, empresa israelense pioneira no setor.

Entram, assim, numa disputa que promete se tornar intensa entre as potências globais da indústria de alimentos. Segundo um relatório do Good Food Institute (GFI), especializado em análises das tendências no universo da comida, entre 2016 e 2019 foram investidos US$ 166 milhões em startups voltadas para o desenvolvimento de carnes de laboratório (incluindo espécies bovinas, suínas, aves, peixes e até crustáceos). No ano passado, esse volume já estava em US$ 1,38 bilhões, com sucessivos recordes de captações feitas por novas companhias. Em dezembro passado, a também israelense Future Meat Technologies levantou US$ 347 milhões em investimentos, numa rodada em que participaram pesos-pesados como a Tyson, uma das maiores indústrias de carnes dos Estados Unidos, e a ADM, gigante do setor de grãos e nutrientes.

A Tyson também está no grupo de investidores que, em abril deste ano, bateu o recorde da Future Meat e aportou US$ 400 milhões na americana Upside Foods. Também participou dessa rodada a Cargill. Em ambos os casos, os planos são ambiciosos. A Future Meat anunciou que usará os recursos para identificar locais para construir laboratórios nos Estados Unidos para escalar a produção e, assim, cortar pela metade o custo de seus peitos de frango cultivados. A Upside também pretende construir plantas capazes de produzir milhares de toneladas de carne por ano.

Ainda segundo o relatório do GFI, 21 novas empresas de carnes cultivadas foram criadas em 2021 em todo o mundo, elevando o total para 107, inclusive no Brasil, no México e na África. Há diversidade de abordagens e de mercados entre elas. A japonesa BlueNalu, por exemplo, focou em cultivar células de frutos do mar e, de acordo com reportagem do site SmartBrief, anunciou uma parceria com a rede de restaurantes de sushi Food & Life para produzir e colocar no mercado uma série de produtos, a começar por uma versão cultivada de carne do valioso atum azul.

 

PROCESSO COMPLEXO

A produção de carnes em laboratório é complexa e ainda bastante cara. Ela começa com a obtenção de células de alta qualidade de animais, porém sem a necessidade de abate. Essas células são cultivadas fora do corpo do animal com o fornecimento de nutrientes e ambiente propício para o seu desenvolvimento. O processo automatizado e o ambiente estéril eliminam a necessidade de antibióticos e reduz muito o risco de qualquer tipo de contaminação. 

Estudos atuais mostram que o cultivo de proteína animal tem potencial para reduzir expressivamente a emissão de gases de efeito estufa, diminuir em mais de 90% o uso de terras para a criação de animais e em até 50% o consumo de água. São resultados como estes que têm atraído a atenção dos principais grupos que atuam na produção de proteína animal. 

“Globalmente, relatórios de mercado para carne cultivada sinalizam para um mercado com taxa de crescimento anual composta (CAGR) acima de 15% ao ano, até 2032”, destaca Rafael Vivian, chefe de Transferência de Tecnologia da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. O instituto de pesquisas de mercado americano Polaris Market Research estima que o mercado global da categoria deve atingir US$ 499 milhões em 2030, três vezes o valor negociado no ano passado.

Mais do que a demanda, os desafios enfrentados pelo setor são a capacidade instalada – que exige altos investimentos em equipamentos de última geração – e regulatórios. O primeiro, com o dinheiro dos investidores continuando a alimentar a cadeia, parece até mais simples de superar. Nos Estados Unidos, por exemplo, a empresa Good Meat anunciou que vai construir a maior fábrica de carne cultivada do mundo, que deve entrar em operação em 2024.  “A entrega de biorreatores e outros insumos críticos enfrentou atrasos devido ao aumento da demanda por produção de vacinas do setor farmacêutico, bem como outras carências a montante. No entanto, a categoria de carne cultivada fez um enorme progresso em 2021, atingindo marcos importantes e se aproximando de todo o seu potencial de reimaginar nosso sistema alimentar global ”, diz o relatório do GFI.

Os progressos nos processos regulatórios, porém, não são assim tão rápidos. Autoridades americanas discutem, por exemplo, como a nova categoria deve ser rotulada, numa discussão que começou quando produtores de leite questionaram o uso da palavra por empresas que produzem alternativas à base de plantas. O debate, antes restrito aos concorrentes de origem vegetal, ampliou-se para as carnes resultantes de cultivo de células. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) abriu, em conjunto com o Food and Drugs Administration (FDA) – órgão responsável pelo registro de medicamentos e alimentos no país –, um processo para avaliar como esses produtos devem ser descritos nos rótulos das embalagens, especialmente em comparação com produtos efetivamente derivados de animais. Quais termos funcionam melhor para esse tipo de produto? Quais termos seriam enganosos? 

PESQUISA NO BRASIL

No Brasil, a Embrapa tem alguns projetos relacionados ao tema. A unidade de Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, conta hoje com infraestrutura avançada para biofabricação 3D/4D, incluindo salas de cultivo de células, bioimpressoras 3D, biorreatores, além de know-how de equipe técnica altamente qualificada para o desenvolvimento de projetos de PD&I visando ao desenvolvimento de produtos e processos inovadores na área de agricultura celular, incluindo carne cultivada.

“A unidade tem priorizado trabalhos relacionados aos substituintes proteicos, olhando para o mercado vegano e vegetariano, os quais são crescentes. […] Porém, a produção de proteína a partir do cultivo de células animais ainda é pouco explorada e carente de muitas pesquisas para superar os atuais desafios tecnológicos e regulamentares”, afirma o chefe de Transferência de Tecnologia da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, Rafael Vivian.

Ele acredita que, para o Brasil, com um rebanho bovino maior que a própria população, as pesquisas são sempre importantes para o avanço da ciência e desafio tecnológico. “Contudo, os números quanto aos custos de produção e demanda do mercado são escassos e ainda carecem de muita informação.” 

Para o pesquisador, as expectativas são positivas, mas sem a pretensão de substituir a produção de carne bovina em sistemas produtivos sustentáveis como aqueles recomendados pela Embrapa para a Integração Lavoura Pecuária e Floresta (ILPF). 

“Nossas áreas de pastagem são extensas e, quando bem manejadas, permitem produção de alta qualidade e de custo favorável à margem de receita líquida. Devemos lembrar que nos últimos anos o rebanho brasileiro aumentou cerca de 300%, enquanto a produção de carne ficou acima de 600%, com redução da área de pastagens. Ou seja, a eficiência produtiva tem sido favorável e avança rumo à sustentabilidade”, destaca Rafael Vivian. 

Outro aspecto importante que deve ser considerado é a cultura de consumo do brasileiro, que é apaixonado por um bom churrasco. “São aspectos que transcendem apenas a dieta proteica e estão relacionados aos costumes e preferências da população, sem falar dos aspectos éticos, ainda questionáveis”, justifica o chefe de Transferência de Tecnologia. 

Ele também reconhece que alguns fatores influenciam positivamente este mercado, como a progressiva mudança de hábitos alimentares dos consumidores em prol da saudabilidade. Um exemplo são os que necessitam de dietas proteicas controladas. 

“Dentre as vantagens está a possibilidade de ser um método alternativo para a produção de carne em comparação à forma tradicional de produção animal que muitas vezes necessita de grandes áreas para pastagens, além dos aspectos relacionados às mudanças climáticas, devido à liberação de metano pelos animais”, explica. 

De acordo com a também pesquisadora da Embrapa Daniela Bittencourt, “existe uma preocupação crescente em relação ao bem-estar animal nos ambientes de produção e abate, para a qual a produção em laboratório dispensa questionamentos”. 

Outras vantagens estão relacionadas à segurança alimentar, a diminuição do uso de antibióticos em animais e melhor acesso à carnes exóticas, incluindo canguru, zebra e tartaruga.

“A principal desvantagem no momento é o elevado custo de produção devido à necessidade de infraestrutura e meios de cultura específicos para o cultivo de células. Também discute-se a necessidade de melhorias nos utensílios utilizados para sua produção, que muitas vezes são constituídos de plástico, também nocivo ao meio ambiente. Vale lembrar ainda sobre os aspectos regulatórios que devem ser discutidos, não apenas no Brasil, mas globalmente”, concluem os pesquisadores. 

Há muitas perguntas a serem feitas nesse mercado tão novo, mas parece haver pelo menos algumas certezas: a pecuária de laboratório veio para ficar, mas não deve extinguir o trabalho nas fazendas espalhadas pelo mundo. Com uma demanda global crescente por proteínas e uma preocupação cada vez maior com a sustentabilidade na produção, a convivência do modelo tradicional e a inovação na sua produção deve ser complementar. Confira nas entrevistas a visão dos executivos brasileiros envolvidos nesse mercado.

 

 

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“É essencial aumentar a produção de alimentos”

JBS vai instalar primeiro Centro de Pesquisas para produção de proteína cultivada no Brasil 

 

Além de assumir o controle da espanhola Biotech Foods, uma das líderes no desenvolvimento de biotecnologia para a produção de proteína cultivada, em 2021, a JBS também vai instalar o primeiro centro de pesquisas com foco neste segmento no Brasil. Está previsto o investimento de US$ 60 milhões na construção do JBS Biotech Innovation Center, em Florianópolis, Santa Catarina. Somando a aquisição, o aporte da companhia atinge US$ 100 milhões para alcançar a meta de se consolidar como um player relevante neste mercado. 

Na entrevista a seguir, o presidente do futuro JBS Biotech Innovation Center, Luismar Marques Porto, conta detalhes dos investimentos e reforça que o objetivo não é substituir as formas tradicionais de produção de carne, mas sim traçar uma estratégia de complementariedade para atender ao desafio global de alimentar cerca de 10 bilhões de pessoas, até 2050, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU). 

 

Onde será instalado e quais os planos para o JBS Biotech Innovation Center, aqui no Brasil? É o primeiro investimento desse tipo do grupo?  

O JBS Biotech Innovation Center será o primeiro Centro de Pesquisas com foco no desenvolvimento de tecnologia para a produção de proteínas cultivadas do Brasil. Ele chega para consolidar a estratégia da JBS no setor e tem como missão ser um centro de excelência para o desenvolvimento de novas tecnologias na área de biotecnologia de alimentos. O complexo será instalado em um terreno de 40 mil metros quadrados no Sapiens Parque, parque tecnológico localizado em Florianópolis, Santa Catarina.  

No espaço serão construídos laboratórios especializados, parte de um novo centro de PD&I de 10 mil metros quadrados de área construída, com possibilidade de expansão para futuros projetos da JBS. O complexo de PD&I terá uma estrutura inicial com laboratórios especializados para o desenvolvimento de tecnologia 100% nacional para a produção de proteína cultivada.  

A JBS escolheu Florianópolis para construir o Centro de Pesquisas, pois entende que a cidade conta com atributos reconhecidos internacionalmente para ajudar a atrair pesquisadores brasileiros que hoje estejam fora do País e queiram contribuir com o desenvolvimento de tecnologia nacional, e também vem evoluindo como um polo de tecnologia, um verdadeiro hub de inovação.  

 

Quanto o grupo JBS tem investido neste segmento? Há investimentos feitos também com outras empresas que já atuam nesse mercado? 

O investimento da JBS no mercado de proteína cultivada é, de longe, o mais relevante entre as empresas brasileiras. No total, a previsão é de mais de US$ 100 milhões nos próximos anos em aportes para a consolidação da companhia nesse segmento.   

São duas ações complementares: a construção do Centro de Pesquisas em Santa Catarina, no qual a empresa está investindo US$ 60 milhões, e a aquisição do controle da empresa espanhola Biotech Foods, por US$ 41 milhões. A empresa conta com apoio e financiamento do governo espanhol e da União Europeia.  

O aporte da JBS prevê a expansão da Biotech, que já opera uma planta-piloto na cidade de San Sebastián, na Espanha, e tem a expectativa de alcançar a produção comercial em meados de 2024, com a construção de uma unidade fabril com capacidade de 1 mil toneladas por ano.  

 

Qual a expectativa com esse mercado em termos de demanda e negócios?  Quais fatores devem estimular esse segmento? 

Os investimentos da JBS para o desenvolvimento do mercado de proteína cultivada são parte do esforço para garantir a disponibilidade de alimentos para 10 bilhões de pessoas no planeta até 2050. É essencial aumentar a produção de alimentos para dar conta dessa demanda global.   

Para dar conta de alimentar essa crescente população mundial e atender a essas novas tendências, temos de olhar para opções alternativas de proteínas e entendermos que a proteína cultivada também é uma importante tendência em um futuro próximo. Importante ressaltar que não é um investimento em substituição, mas em complementariedade. A empresa entende que os modos tradicionais de produção de proteínas também são essenciais para o futuro.

 

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“É um mercado em franca expansão”

BRF investe em startup israelense para a produção de carne cultivada 

 

A BRF foi a única empresa brasileira de alimentos a participar da segunda rodada internacional de investimento da Aleph Farms, startup israelense e um dos principais players mundiais em carne cultivada, desenvolvida a partir de células bovinas não geneticamente modificadas. A BRF investiu US$ 2,5 milhões na operação, somando-se a outras corporações e pessoas físicas. “É um mercado em franca expansão e queremos liderar essa transformação na forma de consumir proteínas. Acreditamos que esse investimento e a parceria estratégica com a Aleph Farms representam o futuro da nossa relação com a indústria alimentícia e contribuem para potencializar startups que estão na vanguarda da transformação”, afirmou Marcel Sacco, vice-presidente de Novos Negócios da BRF, na divulgação oficial da empresa sobre o empreendimento. 

 

Em entrevista à PLANT, o gerente executivo de Inovação e Novos Negócios, Demetrio Teodorov, fala sobre os planos da BRF ao investir na empresa israelense, parceria que visa à distribuição de proteínas cultivadas pela startup com exclusividade no Brasil. Ele aponta o potencial desse mercado, que deve representar um terço da demanda global por proteína animal até 2040, e o ciclo produtivo de até quatro semanas, como algumas das principais vantagens do segmento. 

 

Além deste investimento com a israelense Aleph Farms, há outros investimentos nos planos da BRF, no segmento de carne cultivada em laboratório?  

Por enquanto, a BRF está direcionando seus esforços na parceria firmada em março de 2021 com a Aleph Farms, startup israelense que desenvolve proteínas em laboratório a partir das células animais. O acordo visa o desenvolvimento e a produção de carnes cultivadas usando a produção patenteada da Aleph Farms e a distribuição de proteínas cultivadas pela startup com exclusividade no Brasil. 

Em julho de 2021, a BRF aportou US$ 2,5 milhões na segunda rodada internacional de investimento da startup para dar mais um passo em seu plano de atender à crescente demanda dos consumidores por novas e alternativas fontes de proteína, trazendo tecnologias inovadoras para o Brasil. 

Essa parceria fortalecerá a geração e diversificação de negócios para atender às crescentes demandas dos consumidores por uma maior variedade de proteínas alternativas. Além do potencial comercial no mercado brasileiro, essa parceria também reforçará os compromissos de sustentabilidade, inovação e segurança alimentar adotados pelas duas empresas. 

 

Qual a expectativa para esse mercado em termos de demanda e negócios aqui no Brasil?  

Estima-se que o mercado de carne cultivada represente um terço do mercado global de proteínas animais até 2040. Os produtos à base de carnes cultivadas mantêm as qualidades culinárias e sensoriais da carne que sempre amaram, eliminando a necessidade da grande mudança comportamental de remover a carne como parte central de nossas dietas.  

Consideramos a carne cultivada como mais uma alternativa às fontes de proteínas disponíveis, para atender os novos perfis de consumidores que estão cada vez mais engajados em promover mudanças e acreditam na responsabilidade social compartilhada, exigindo uma gestão mais sustentável, transparente e ecossistema equitativo por parte das empresas. Essas gerações são leais às marcas que são engajadas e conscientes.     

A BRF continua trabalhando em três frentes – regulatório, tecnologia, aculturamento do consumidor, e seguimos nosso planejamento conforme nós já apresentamos. Nos próximos anos, poderemos já colocar um produto no mercado, que representaria uma grande evolução.         

 

Quais as vantagens para o mercado ao investir na produção de carne cultivada, tendo em vista a atual agenda ambiental do Brasil e do mundo? 

Segundo a Aleph Farms, o processo de carne cultivada leva de 3-4 semanas para concluir seu ciclo, comparado aos 24 meses do processo natural de pecuária bovina. Do ponto de vista de sustentabilidade: estudos mostram que a carne cultivada reduz o uso da terra em 95% e as emissões de gases em 74 a 87%. Apesar de exigir forte consumo de energia, para aquecimento de biorreatores e instalações operacionais, essa demanda pode ser atendida ou compensada com a utilização de energia renovável.