Nem plantas, nem planos

Não há sementes sendo jogadas sobre o rico solo da Ucrânia, onde a guerra interrompeu um históri


Edição 30 - 25.07.22

Não há sementes sendo jogadas sobre o rico solo da Ucrânia, onde a guerra interrompeu um histórico processo de transformação no modelo fundiário que poderia injetar bilhões na produção local.

Roman Neyter sorri, vira a câmera do celular e mostra a bucólica cena do campo próximo a Kiev. Ele fala da parte externa da casa, o rosto iluminado pelo sol da tarde na Ucrânia. Em alguns momentos, a esposa e a filha surgem no fundo da cena, que seria corriqueira na Ucrânia em tempos normais. Não é esse o caso, embora o jovem especialista em Agricultura da Escola de Economia de Kiev faça tudo para demonstrar tranquilidade. Em alguns momentos, porém, os novos hábitos o traem. O ruído de um avião sobrevoando a área, algo antes corriqueiro para quem vive nas grandes cidades, logo chama a sua atenção. Em seguida, outra aeronave cruza o céu e a conversa para por alguns segundos. Esse não é mais um som de normalidade por lá.

“Eu tive de fazer a opção de vir para cá. Eu costumava viver em Kiev, mas tive de mudar”, explica, em uma chamada por vídeo com a reportagem da PLANT, realizada no início de abril. Neyter fala em inglês. Sua dificuldade não é o idioma, mas traduzir em palavras as incertezas sobre o presente e o futuro do seu país. Neste início de primavera, sua rotina deveria ser acompanhar uma intensa atividade de plantio nas férteis lavouras ucranianas, fazer análises e previsões. Hoje ele se empenha em coletar informações fragmentadas para tentar montar um cenário que, assim como muitas vidas e construções em seu país, pode não existir amanhã.

“É muito difícil saber de quanta terra poderemos dispor. Acredito que pelo menos um terço da área produtiva esteja sofrendo por conta de combates e não é seguro iniciar o plantio por lá”, afirma. “Isso muda todo dia. Muita gente deveria estar plantando, sobretudo na parte mais ao Sul do país, mas não tem conseguido trabalhar. Nas partes mais a leste e no centro do país, as temperaturas ainda estão muito baixas.”

Assim como Neyter, o mundo busca informações sobre o que acontece nos 42 milhões de hectares que fazem da Ucrânia um dos principais produtores e exportadores de grãos do mundo. Um levantamento do Ukrainian Nature Conservation Group aponta para um número semelhante ao citado pelo especialista, estimando em 34% a parcela do território considerada como zona de risco para agricultores em função da ocupação por tropas russas ou na contaminação por produtos explosivos.

“A maior dificuldade para que as campanhas de plantio se iniciem é a falta de combustível. Esse é hoje o maior problema da maioria das fazendas. Mas não é o único. Em algumas regiões, há batalhas nos campos, soldados e tanques, o risco de mísseis. Além disso, em algumas áreas há minas no terreno”, afirma Neyter. O relatório da entidade ambientalista confirma: “Sabemos que as tropas de ocupação russas estão destruindo deliberadamente equipamentos agrícolas dos ucranianos, exacerbando a esperada escassez de alimentos. Enfatizamos que mesmo após a liberação desse território ocupado, não será possível cultivar ali até que seja feita uma operação completa de limpeza de minas terrestres”.

Não será, infelizmente, a primeira. A presença de armas e explosivos nos locais onde deveriam ser lançadas sementes é uma triste sina das férteis terras ucranianas. Rico em matéria orgânica, o solo negro conhecido como “chernozem” – que se expande por parte do Leste Europeu até o Cazaquistão – é frequentemente cobiçado por governantes vizinhos ávidos por ter sob o seu domínio grandes áreas capazes de garantir suprimentos em abundância para suas populações e suas tropas. Nos tempos da União Soviética, há quase um século, Josef Stalin tomou as terras dos agricultores ucranianos, transformando-os em trabalhadores forçados. Toda a produção ficava na mão dos soviéticos e cerca de 6 milhões de ucranianos morreram de inanição.

Graças à riqueza do chernozem, a Ucrânia produziu no ano passado mais de 75 milhões de toneladas de grãos. O país tem mais terras cultiváveis que França e Alemanha juntas e é conhecida como celeiro da Europa por sua importância no mercado global de commodities agrícolas. É a maior produtora mundial de óleo de girassol e está entre as principais exportadoras de trigo, milho e cevada. Um quinto de seu PIB depende do campo. “A região mais ao norte, semiocupada pelos russos, e a região central são as mais produtivas”, diz Neyter.

“É muito difícil falar em reconstrução do setor. Ainda que a guerra terminasse hoje, há muitas coisas que não estão claras. Uma delas é o estado das instalações que foram alvos dos russos. Eles atacaram sobretudo os estoques de combustíveis e o armazenamento de grãos. Uma boa parte da geração de energia usada nos armazéns está destruída e pelo menos um quarto dos elevadores usados para o transporte dos grãos também foram atingidos pelas batalhas. Ainda não sabemos exatamente o impacto dos ataques na infraestrutura. Outro grande problema é o fato de todos os nossos portos estarem bloqueados. Cerca de 95% do que exportamos passa por eles e isso inviabiliza a nossa agricultura. Mesmo que tivéssemos a produção a pleno vapor, qual seria a razão para produzir tanto?”, questiona Neyter.

História interrompida

Quando a guerra começou, o agronegócio ucraniano atravessava um momento histórico. Nos últimos anos o presidente Volodymyr Zelensky enfrentou a oposição – inclusive os partidos com ligações com o Kremlin – para fazer passar no Parlamento local uma lei que reabriu o mercado de terras, que viveu uma moratória de duas décadas. A reabertura da possibilidade de compra e venda de propriedades rurais ocorreu em julho do ano passado. Nos primeiros seis meses de liberalização do mercado, agricultores ucranianos venderam 155 mil hectares de terrenos, por um valor total de US$ 200 milhões, segundo informações divulgadas em janeiro pelo Ministério da Política Agrária.

Parece pouco diante de um universo de mais de 40 milhões de hectares cultiváveis e certamente não dá uma real dimensão da relevância da mudança. A moratória foi imposta no início do século com a justificativa de que era necessário proteger o chernozem e os pequenos produtores ucranianos do imenso apetite de grandes empresas com capital estrangeiro. Ela sucedeu outro processo complexo e traumático: a privatização das kolkhozes, fazendas coletivas implantadas durante o período de dominação soviética. Havia mais de 12 mil delas e sua divisão foi feita, em 1999, entre cerca de 7 milhões de ucranianos. Cada um recebeu em média 4 hectares.

Apenas dois anos depois, em 2001, é que foram emitidos os títulos de propriedade dos imóveis, com a aprovação de um código fundiário. Pouco mais tarde, ainda no mesmo ano, a moratória foi introduzida. Sem a possibilidade de negociar suas propriedades ou mesmo usá-las como garantias para obtenção de crédito, muitos agricultores não tiveram opção a não ser arrendar suas terras às grandes companhias agrícolas que dominam a maior fatia da produção ucraniana.

Oligarcas do campo

Criadas sob a égide do novo código, essas empresas tiveram acesso a grande quantidade de terras por valores muito baixos. Assim, ao invés de proteger os pequenos produtores, a moratória apenas incentivou a formação de uma elite agrária, com pouca tradição no campo, mas muitas ligações políticas.

Nas últimas duas décadas, os oligarcas do campo prosperaram e transformaram a Ucrânia na potência exportadora que era até o início da guerra, sem que os verdadeiros donos da terra tenham, no entanto, se beneficiado da mesma maneira.

O modelo de arrendamento faz com que o tamanho médio das fazendas hoje na Ucrânia esteja em torno de 1 mil hectares. Mas há grupos com mais de 500 mil hectares sob seu controle. Apenas 20 gigantes detêm 14% das terras aráveis (mais de 6 milhões de hectares), quase quatro vezes mais do que possuíam há 15 anos.

Estima-se que a Kernel, maior dessas companhias e principal exportadora de óleo de girassol da Ucrânia, tenha mais de 570 mil hectares sob sua gestão. Com ações negociadas na bolsa de valores de Varsóvia, a empresa foi fundada em 2007 por Andriy Vereyevskiy, ex-membro do Parlamento da facção do ex-presidente Viktor Yanukovych, aliado da Rússia. Próxima a ela no ranking dos latifúndios ucraniano está a UkrLandFarming, também na faixa dos 570 mil hectares. O controlador do grupo é proprietário, Oleg Bakhmatyuk, também com contatos em Moscou e dono da Avangard, uma das maiores produtoras mundiais de ovos e derivados.

Futuro incerto

Zelensky venceu a batalha do fim da moratória, mas não atingiu a oligarquia rural do país. Com contratos de arrendamento valendo em média por quase 50 anos, eles não sofreriam os efeitos da medida. Para os produtores independentes, porém, o impacto poderia ser imenso. Segundo estimativa do Banco Mundial, a abertura do mercado de terras tinha potencial de acrescentar até US$ 15 bilhões à produção anual e aumentando o Produto Interno Bruto (PIB) anual em cerca de 1,5 ponto percentual. E talvez reduzir o desnível tecnológico das pequenas propriedades. “Grandes fazendas têm acesso a recursos e às melhores tecnologias: o estado da arte em máquinas, ferramentas digitais de gestão e agricultura de precisão”, diz Neyter. “Essa realidade não chegou à maioria.”

A guerra parou o mercado e interrompeu outro programa que o governo ucraniano esperava colocar em prática, segundo o especialista da Escola de Economia de Kiev. “Havia a previsão de implantar um programa de crédito diferenciado para propriedades com menos de 500 hectares, mas agora está tudo parado”, afirma. Também havia a perspectiva de que o fim da moratória fosse ampliado, com uma nova medida permitindo a compra de terras ucranianas por estrangeiros, que ainda é proibida. A expectativa é de que isso acontecesse em 2024, com a abertura pelo menos para cidadão da União Europeia. Hoje, no entanto, não se planta nem se faz mais planos sob o solo ucraniano. A não ser ficar a salvo, como desejei a Neyter e à família no fim de nossa conversa.