Edição 30 - 29.07.22
Projetos de novos resorts provoca debate sobre modelo de exploração da terra no Vale dos Vinhedos
O enoturismo chegou com força à Serra Gaúcha, a principal e mais conhecida região vinícola do Brasil. Mais de 1 milhão de turistas devem passear pelos seus vinhedos e degustar os brancos, tintos e, principalmente, os espumantes durante todo o ano de 2022. Esse interesse crescente também se traduz em novos e imponentes empreendimentos imobiliários em sua paisagem. O melhor exemplo é o Bewine Resort, que promete ser o maior parque temático de vinho do mundo, ter a maior adega vertical também do mundo, com 11 andares, e também a piscina com maior borda infinita do mundo, com 190 metros. O complexo ocupará um terreno de 60 mil hectares em pleno Vale dos Vinhedos – deste total, apenas 3,1 hectares serão de vinhas. Terá 421 unidades habitacionais em um investimento estimado de R$ 300 milhões.
Poucos meses após o lançamento do Bewine, em dezembro do ano passado, a centenária vinícola Salton também anunciou o seu megainvestimento turístico na região, a Gramado Parks, que, além das habitações e do parque aquático, deve contar até com um centro comercial. Em um primeiro momento, os dois novos projetos e as informações, ainda desencontradas, de outras construtoras interessadas em investir na região, mostram um interesse crescente pelo enoturismo e encontram eco no crescimento do consumo de vinho pelo brasileiro registrado durante toda a pandemia.
Mas não tardou para os dois novos empreendimentos se tornarem também polêmicos, recebendo críticas dos donos das vinícolas no próprio Vale dos Vinhedos, que é também a primeira Denominação de Origem para os vinhos brasileiros. “São projetos enormes, desproporcionais. A nossa região não quer estas obras, que vão distorcer a nossa paisagem. Precisamos destas áreas para os novos vinhedos”, afirma Sandro Valduga, presidente da Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (Aprovale) e representante da quarta geração da Terragnolo, pequena vinícola de 10 hectares de vinhas na região.
Não é apenas o tamanho das obras que assusta, mas também o seu propósito. Em meados de fevereiro, em reunião no Conselho Distrital de Planejamento do Vale dos Vinhedos, órgão que funciona há mais de 15 anos e tem o poder de veto nos projetos, as duas obras não foram aprovadas, o que vem gerando manifestações acaloradas dos dois lados. Atualmente, os empreendimentos estão no prazo de prestar explicações sobre os pontos levantados pelo conselho distrital. Procuradas, tanto a Salton como a Bewine informaram que só se manifestarão em momento oportuno, depois de o projeto passar pela Câmara dos Vereadores de Bento Gonçalves.
Nas entrelinhas da aprovação ou não destes investimentos está a discussão de qual o futuro do Vale dos Vinhedos. Para aqueles que são contra as megaconstruções, a ideia é que o vale deve se guiar em modelos de sucesso do enoturismo mundial, como as regiões de Bordeaux, de Mendoza ou do Napa Valley. Nesses destinos, os vinhedos estão em primeiro lugar e a maioria dos serviços turísticos podem estar longe das áreas de cultivo, até para evitar que a presença humana, com suas piscinas com água com cloro, os seus lixos e tudo o mais, contamine o solo.
Com uma área de quase 2 mil hectares de terra, sendo 400 hectares de vinhedos classificados dentro da Denominação de Origem (em 2010, eram 700), o temor dos membros da Aprovale é que essas construções se tornem moradias definitivas e não as hospedagens, mudando o perfil da região. Mais que isso: a urbanização gerada por essas construções pode acabar tirando o produtor da terra. “Com a exploração imobiliária, o produtor não consegue manter o seu vinhedo”, afirma Sandro Valduga. Atualmente, o valor do hectare na região está ao redor de R$ 500 mil, com tendência de valorização, o que já dificulta manter o viticultor no campo.
Os investidores seguem outro caminho. Charles Tonet, um dos quatro sócios do Bewine, conta que o projeto aposta no enoturismo de lazer. “Houve aumento significativo por parte dos turistas em busca de experiências culturais e históricas, muito relacionadas à imigração italiana”, afirma. A ideia é trazer várias opções de lazer no vale. A diversificação de opções, digamos assim, é visível já na extensão dos terrenos. No Spa do Vinho, o primeiro hotel cinco estrelas inaugurado no vale 15 anos atrás, tem uma área construída de 3 mil metros quadrados para 18 hectares de vinhedos, além do projeto de vinho próprio. Nos novos projetos, a relação entre vinhedos e área construída é bem menor.
Outro ponto é o perfil de moradia dos novos empreendimentos. As novas construções preveem a multipropriedade, com os proprietários comprando o local por uma ou mais semanas no ano. “Não é um hotel, é uma moradia, com escrituras”, alerta Deborah Villas-Bôas Dadalt, sócia do Spa do Vinho. Com a experiência de gerir o Spa do Vinho, ela contesta os dados de carência de vagas na rede hoteleira local como justificativa para o investimento. Nos finais de semana, diz ela, vários hotéis ficam com a sua lotação máxima, mas durante a semana são poucos os hóspedes. “A nossa média de ocupação é de 50% das vagas, em nossos 128 apartamentos”, afirma Deborah.
A discussão passa também pelo tamanho das construções e aqui, outro resort já aprovado e com obras previstas para começar em abril entra como exemplo. O Castelo do Vale ocupará uma área de 4,9 mil metros quadrados e será erguido dentro da vinícola Dom Cândido. “Era um sonho do meu pai, que estamos realizando. A ideia é que o turista possa se hospedar no coração do Vale dos Vinhedos, usufruir da estrutura de lazer e apreciar os nossos vinhos sem a preocupação com o deslocamento”, conta Marcos Valduga. Para comparar, a Gramado Parks deve ocupar uma área entre 60 mil e 90 mil metros quadrados.