Pampa em transição

A cultura da soja ganha espaço na porção meridional do Rio Grande do Sul, ocupando o lugar de ati


Edição 29 - 18.05.22

A cultura da soja ganha espaço na porção meridional do Rio Grande do Sul, ocupando o lugar de atividades tradicionais que forjaram a imagem do gaúcho.

O Pampa não é mais o mesmo. A imagem da Campanha Gaúcha – a metade sul do Rio Grande do Sul – com suas grandes planícies onduladas, coxilhas, pastagens naturais e rebanhos de gado bovino, ovinos e de cavalos pastando está ficando no passado. Essa conhecida e difundida paisagem vem sendo substituída, há cerca de 20 anos, por lavouras de soja. Os gaúchos mais tradicionais, que há gerações cresceram montados em um cavalo, cuidando dos rebanhos, criadosextensivamente em grandes propriedades, costumam dizer, em tom de lamento ou blague, que não há mais estâncias (grandes fazendas), mas só granjas (propriedades rurais dedicadas à agricultura).

Nas últimas duas décadas, a área plantada com soja praticamente triplicou na região, promovendo transformações econômicas, sociais e ambientais que alimentam debates no estado. Ao mesmo tempo que promove ganhos de renda para um grupo de produtores, a mudança, em larga escala, do modelo produtivo local traz impactos nem sempre positivos para a população e para o bioma pampeiro.

DO SUL AO SUL

A história da soja é antiga no estado. No Brasil, foi no Rio Grande do Sul que primeiro ela se estabeleceu e se expandiu como cultura comercial. “A oleaginosa foi introduzida no País no fim do século 19, e chegou por meio de uma variedade trazida dos Estados Unidos”, conta o geógrafo Felipe Leindecker Monteblanco, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSul), campus Santana do Livramento. “Ocorre que esse cultivar americano, adaptado a altas e médias latitudes, ficou restrito, não por acaso, ao clima subtropical da Região Sul, tendo como berço e celeiro o noroeste gaúcho, sobre terrenos ondulados de solos profundos, típicos do Planalto rio-grandense.”

Por causa dessa característica da variedade importada, a soja permaneceu circunscrita a essa região no Rio Grande do Sul enquanto teve importância, digamos, secundária. Era cultivada por agricultores familiares visando, por exemplo, a obtenção de forragem e grãos para produzir ração para criações de aves e suínos do mercado interno. “A partir dos anos 1970, no entanto, uma grande pressão de demanda no mercado internacional começou a levar a uma extraordinária valorização do produto, iniciando um processo de expansão a partir dessa zona pioneira e que segue, entre oscilações, até hoje”, diz Monteblanco.

De acordo com ele, com essa demanda global crescente, o cultivo foi se tornando cada vez mais atrativo a agricultores e investidores e considerado estratégico pelo governo brasileiro . A expansão em extensão e em produtividade foi se tornando imperativa. Uma miríade de atores públicos e privados, tais como Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), institutos estaduais de pesquisa, universidades, além de fundações, empresas e corporações do agronegócio movimentaram significativos processos de pesquisa, desenvolvimento e inovação com o intuito de expandir a soja sobre variadas condições de clima e solo.

Com isso, a ciência conseguiu “tropicalizar” a oleaginosa, e as antigas cultivares de latitudes médias e altas vindas dos Estados Unidos, que não possibilitariam a pretendida expansão às vastidões de baixas latitudes do Cerrado, foram sendo substituídas. “Ao mesmo tempo, foram sendo desenvolvidas tecnologias para a correção das características químicas dos solos e construção de fertilidade, a fim de produzir as condições nutricionais ideais para o cultivo em diferentes geografias”, explica Monteblanco.

Nas décadas de 1980 e 1990, continua ele, inovações como a substituição do revolvimento do solo com o arado pelo sistema de plantio direto, além da transgenia e da evolução das técnicas de manejo, foram tornando o cultivo viável em parcela cada vez maior da diversidade de solos e climas do Brasil, abrindo novas fronteiras ao mesmo tempo que possibilitaram maior produtividade por área. Primeiro, ela se expandiu para o Centro-Oeste, principalmente no Cerrado, e depois chegou ao Norte e Nordeste.

Agora, do início dos 2000 para cá, a soja vem ocupando a Campanha Gaúcha. “Seu avanço no Rio Grande do Sul, especialmente na metade sul, que caracterizamos como bioma Pampa, se deu, especialmente, a partir dos anos 2000, mais precisamente de 2005 para cá”, conta o zootecnista e doutor em Agronegócio, João Garibaldi Viana, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). “Ele tem como motivação diversos fatores. Inicialmente, foi a valorização e a política dos biocombustíveis no Brasil, que alavancou a produção do grão e, depois, a valorização das commodities no mercado internacional, especialmente durante a primeira e segunda década dos anos 2000.”

TERRAS MAIS BARATAS

Aliado a isso, a diminuição de áreas em regiões já tradicionais de soja, na metade norte do Rio Grande do Sul, fez com que muitos produtores buscassem áreas em fronteiras agrícolas, antes destinadas à pecuária, como a metade sul do estado, especialmente terras com menor valor de aquisição e de arrendamento. Também contribui o avanço tecnológico dos cultivares da planta, que favoreceram o seu plantio em áreas com menos recursos hídricos e menor profundidade de solo. Então, todos esses fatores favoreceram um avanço das áreas na metade do sul, que é caracterizado como o bioma Pampa.

Em termos de números, para se ter uma noção da expansão, no ano 2000, a área plantada de soja em municípios da Campanha era de 686.175 hectares. Isso saltou, em 2019, para 2.678.348 hectares, um avanço de 290% no período. “Isso dá uma taxa de crescimento de 6,57% ao ano”, explica Garibaldi. “Em contrapartida, na região norte do estado, o crescimento foi de apenas 1,53% ao ano. Outro dado mostra que 70,8% do crescimento de área plantada no Rio Grande do Sul de 2000 a 2019, ocorreu dentro do Pampa, especialmente avançando sobre áreas de pecuária.”

Há mais dados que mostram a expansão da oleaginosa na Campanha Gaúcha. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2011, os cinco municípios gaúchos com a maior área plantada de soja eram todos do Planalto: Tupanciretã, Palmeira das Missões, Cruz Alta, Júlio de Castilhos e Joia, nessa ordem. Em 2019, no entanto, menos de dez anos depois, três dos cinco municípios com maior área plantada já eram do Pampa, sendo dois deles da Campanha (São Gabriel e Dom Pedrito), empatados na segunda posição, e Cachoeira do Sul, ocupando a quarta.

As causas dessa expansão são tanto internas como externas. No caso do Rio Grande do Sul, não se pode dizer que a soja esteja voltando, porque ela nunca deixou de estar presente. “O que ocorre é uma espécie de transbordamento da tradicional região produtora, ao norte do estado, onde as possibilidades de expansão vão se esgotando, para regiões antes tidas como impróprias ou marginais ao cultivo”, explica Monteblanco. “O caso mais emblemático é o da porção sul do estado, que corresponde ao Pampa brasileiro.”

Além disso, acrescenta ele, a associação entre mercado global, ciência, tecnologia e informação vai tornando cada vez mais diminutas as áreas em que as condições naturais preexistentes ainda impõem barreiras ao plantio da soja a ponto de inviabilizá-lo. “Enquanto as terras com condições mais propícias ao cultivo da oleaginosa vão se esgotando, os incrementos técnicos a estendem a terrenos de segunda ou terceira alternativa”, diz.

Isso ocorre porque os solos superiores dos Cerrados nas áreas mais altas e planas já estão ocupados. No Rio Grande do Sul, por sua vez, as terras elevadas e de solos profundos, com predomínio de texturas argilosas, da tradicional região produtora do Planalto, ao norte, alcançam preços de mercado exorbitantes, expressando a baixa disponibilidade frente à demanda crescente na esteira da valorização do grão.

A consequência desse cenário, de acordo com Monteblanco, é que em todo o Brasil o avanço da soja se volta agora a regiões até então marginais, em movimentos semelhantes ao que inicialmente a levou do Sul para o Centro-Oeste, a partir da década de 1970.  “No Rio Grande do Sul, portanto, o correspondente desse movimento é exatamente a expansão da oleaginosa dos domínios de solos argilosos do norte para os arenosos e franco-arenosos do sul”, explica. Ela chega ao Pampa brasileiro e agora marca presença em quase todo o País.

Também contribui para essa expansão rumo ao sul o alto preço das terras no Planalto, que são melhores e mais produtivas. De acordo o IBGE, o rendimento médio delas chega a ultrapassar os 4 mil kg/ha. Mas por isso são mais escassas e caras. “Nessa região, em zonas com condições de alta produtividade para a soja, o valor médio do hectare ultrapassa os R$ 58 mil, enquanto em municípios como Passo Fundo chega a ultrapassar os R$ 60 mil, segundo dados do Incra”, conta Monteblanco. “Mesmo as áreas aptas de baixa produtividade para o grão rondam, no mínimo, os R$ 30 mil o hectare, de acordo com a mesma fonte.”

Na Campanha Gaúcha, as terras são menos produtivas. Por isso, há a necessidade de grandes investimentos em fertilizante e corretivos do solo, material genético e maquinário adaptados e em manejo de proteção, dada sua maior fragilidade. Mesmo assim, sua produtividade é baixa. Apenas uma minoria das terras chega a 2 mil kg/ha. Apesar dos altos gastos necessários e do baixo rendimento, a aquisição delas compensa por seu baixo preço relativo. As melhores valem em média R$ 14,3 mil, e as com aptidão de baixa produtividade, R$ 11,5 mil.

Entre as causas externas da expansão da soja na Campanha Gaúcha, uma das principais é o apetite quase insaciável da China pelo produto. O país asiático absorve a maior fatia da oferta do mercado internacional e impacta na alta dos preços do grão. De acordo com Monteblanco, a China passa por um processo de acréscimo da renda per capita, urbanização e aumento da classe média, que hoje tem a dimensão equivalente a cerca de duas populações brasileiras inteiras.

Esse fenômeno leva a uma importante mudança de hábitos alimentares relacionados à classe social, cuja expressão é o aumento do consumo de carne, neste caso, notadamente a suína. “Essa demanda leva a uma industrialização da produção chinesa de porcos, que, por sua vez, tem no farelo de soja um importante insumo, principal componente da ração dada aos animais”, diz Monteblanco. “Com essa demanda internacional constante, sobretudo a asiática, e com a permanência do valor do grão em um patamar atrativo, ainda que entre oscilações, a expansão em extensão e produtividade segue sua marcha mundial.”

CONFLITO CULTURAL

O avanço da soja no Pampa não está mudando apenas a paisagem local. Ele também tem impactos ambientais, sociais e econômicos, alguns que poderiam ser considerados negativos e outros, positivos. “No primeiro caso, pode-se citar uma especialização produtiva, ou seja, uma tendência de concentração em termos de produção em uma única atividade, reduzindo-se a produção de outros tipos de alimentos”, diz Garibaldi. “A entrada do cultivo da oleaginosa em áreas de agricultura e pecuária familiares leva ao fim outras atividades de produção de alimentos como leite, hortifrutigranjeiros, frutas, legumes, carne ovina e carne bovina, por exemplo.”

Do ponto de vista social, há um esvaziamento dessas regiões, dessas comunidades rurais, devido à menor intensidade de mão de obra na produção de soja em comparação a atividades mais intensivas, como a de leite e arroz, por exemplo. Em razão disso, muitos agricultores e famílias se mudam para a periferia das cidades.

Em relação aos impactos ambientais, Garibaldi ressalta que o bioma Pampa se caracteriza pelas pastagens naturais, que apresentam uma grande biodiversidade de fauna e flora. “De certa forma, a soja contribui para a redução dessa biodiversidade, tanto por causa do manejo do solo, como do uso de agroquímicos nessas regiões”, diz.

Quanto aos impactos positivos da cultura, eles são principalmente econômicos. Segundo Garibaldi, o aumento do valor do grão no mercado internacional fez com que os ganhos por área cultivada aumentassem em relação à pecuária. “É isso que estimulou muitos pecuaristas a arrendarem suas áreas para produtores de soja”, diz. “Ou seja, obtendo o maior ganho por hectare, há uma circulação maior de capital nesses municípios, em atividades de comércio e de serviços vinculados à agropecuária.”

Em alguns casos, a própria pecuária pode se beneficiar do avanço da oleaginosa. Os sistemas de criação extensivos estão se modificando e a integração lavoura pecuária surge como uma alternativa de renda para muitos produtores. “A segunda se intensifica com a chegada da soja, pois esta traz a possibilidade do uso mais intensivo de pastagens cultivadas”, explica Garibaldi. “No verão é a safra do grão e no inverno pastagens cultivadas, especialmente de aveia e azevém. O que amplia e qualifica o manejo nutricional da pecuária, aumentando a sua produtividade e levando a ganhos nesse sentido. Então, de certa forma, tem ocorrido em algumas regiões uma atividade de ganha-ganha entre as duas frentes de exploração, soja e criação de gado.”