Gaúcho com sotaque europeu

Como o enólogo Edegar Scortegagna realizou o sonho de produzir no Rio Grande do Sul um presunto cru


Edição 28 - 21.03.22

Como o enólogo Edegar Scortegagna realizou o sonho de produzir no Rio Grande do Sul um presunto cru brasileiro de padrão internacional 

O presunto cru é uma das iguarias mais apreciadas – e de maior valor agregado – da gastronomia mundial. Um derivado nobre da carne de porco. Como acontece com o vinho, o azeite e o queijo, as gôndolas dos supermercados brasileiros estão repletas de presuntos crus genéricos importados ou similares nacionais com preços relativamente acessíveis. Mas os presuntos crus mais tradicionais do mundo, como o Parma e o San Daniele, da Itália, ou o Serrano e o Ibérico, da Espanha, são considerados produtos de luxo – e uma peça de sete quilos de uma dessas delícias pode custar mais de R$ 15 mil.

Elaborar um presunto cru comparável em qualidade aos italianos e espanhóis, mas com sabor autenticamente brasileiro, era um sonho cultivado pelo enólogo gaúcho Edegar Scortegagna havia pelo menos 20 anos. Recém-formado em Bento Gonçalves (RS), no final dos anos 1990, Scortegagna foi completar seus estudos na Itália, em 2000, e na cidade de Verona experimentou pela primeira vez a especialidade da charcuteria italiana. Familiarizado com a ciência dos aromas e sabores, encantou-se à primeira prova pelo gosto levemente amendoado e quase doce do alimento.

De volta ao Brasil, tentou reproduzir na casa dos pais, na localidade de Travessão Alfredo Chaves, em Flores da Cunha, algo que lembrasse o presunto que se habituara a consumir na Itália. A primeira experiência, feita com um pernil suíno comprado em um frigorífico e salgado em um freezer doméstico, com a temperatura controlada manualmente pela irmã, resultou em prejuízo para a família: o sal grosso utilizado no processo de salga corroeu as paredes metálicas do freezer.

Mas nem por isso o jovem enólogo desistiu do seu projeto. Pelo contrário, a partir do experimento malsucedido passou a estudar o assunto com o mesmo afinco que dedicava à enologia quando retornou à Itália, em 2004, onde permaneceu até 2008. Em viagens à Espanha, conheceu de perto os sistemas de produção de outros tipos de presuntos nobres, como o famoso Pata Negra, os diferentes modos de salgar a carne para desidratá-la e conservá-la e as nuances de gosto resultantes das raças e do tipo de alimentação dos animais. Agora, sim, estava pronto para dar início ao seu negócio.

Em uma parceria público-privada com a Embrapa Suínos e Aves, de Concórdia, Santa Catarina, desenvolveu uma raça suína apropriada para esta finalidade – cruzamento de Landrace, Large White e Moura (o porco preto do Sul do Brasil, dotado de mais gordura). A alimentação dos animais também foi exaustivamente testada. A princípio, com bagaço de uva e pinhão, até que se chegou a um mix de linhaça, canola e sementes de girassol incorporado à ração tradicional, à base de soja e milho. Era importante que os animais acumulassem gordura, porque é onde se concentra boa parte do sabor. O processo de seleção racial e a composição de uma ração específica para este projeto durou sete anos. Uma cooperativa gaúcha parceira foi encarregada de criar, abater os animais e fornecer os pernis.

A sociedade com o empresário Elton Antunes (ex-aluno de um dos cursos de sommelier ministrado pelo enólogo) resultou na empresa Antunes & Scortegagna, que, em julho do ano passado, começou a receber os primeiros pernis em sua pequena mas moderna fábrica, na zona rural de Flores da Cunha, equipada com a mais avançada tecnologia do setor.

Em julho deste ano, depois de 12 meses de cura, o primeiro lote do brasileiríssimo presunto cru Gran Nero chegou finalmente ao mercado. “Não queríamos copiar os espanhóis e italianos. Não se pode fazer um Romanée-Conti ou um Champagne no Brasil. A ideia era fazer um presunto cru brasileiro”, diz Scortegagna. Com preços inferiores aos dos importados top e apenas um pouco acima dos genéricos, o produto – vendido em peças de 8 quilos, de 1 quilo e fatiado – vem obtendo boa aceitação. “Chegamos ao mercado num momento de valorização dos produtos nacionais pelos melhores chefs”, comemora o empreendedor. O Gran Nero já está, por exemplo, no cardápio de restaurantes brasileiros do chef britânico Jamie Oliver, após passar pela aprovação do próprio cozinheiro televisivo, em Londres. E em receitas do prestigiado chef gaúcho Rodrigo Bellora.

A empresa produz atualmente 2,3 mil quilos do produto por mês, mas a meta para 2020 é alcançar a cota de 11 mil quilos (ou 25 mil pernis por ano). São números de um empreendimento do tipo boutique, se comparados à produção de mais de 9 milhões de coxas por ano do Parma ou de 9 milhões do Ibérico. Mas o plano dos sócios é se manter nesta categoria, para não perderem o controle praticamente artesanal da produção. Na sequência, chegarão ao mercado presuntos com 18, 24 e 36 meses de cura. E, mais adiante, outros subprodutos do porco, como a bochecha curada e a pancetta (parte da barriga).

A intenção dos sócios é aproveitar ao máximo possível a carne diferenciada dos animais criados sob demanda. “Queremos usar todo o porco em produtos premiumda marca Gran Nero”, diz Scortegagna. Mas existe mercado, no País, para um alimento que pode custar entre R$ 100 e R$ 1,5 mil o quilo (o Gran Nero sai por R$ 175 o quilo)? Scortegagna acredita que sim. “O paladar do brasileiro evoluiu muito nos últimos dez anos. As pessoas viajaram e viram muita coisa boa lá fora.”

Enólogo por formação e paixão, Scortegagna continua sendo o responsável pelos vinhos da luxuosa vinícola gaúcha Luiz Argenta, pois acredita que as duas atividades são compatíveis e complementares, e que os produtos se destinam ao mesmo público. Ele lembra que existem diversos pontos em comum entre a elaboração da bebida e do presunto. “Para se fazer um bom vinho ou um bom presunto são necessários matéria-prima de alta qualidade, processos adequados e, principalmente, tempo e paciência.”

As semelhanças não ficam por aí. A carne curada reage com o oxigênio e com as leveduras do ambiente, tal como o vinho. Há notas de aromas e sabores que podem ser percebidas durante uma degustação, como o gosto de amêndoas ou traços oxidativos. Embora a carne passe por um tipo especial de sal grosso, a gordura também aporta um leve sabor adocicado aos melhores presuntos. E, assim como acontece com o vinho, também há uma temperatura ideal para o consumo: entre 20 e 23 C°. Quanto à harmonização com vinhos, o professor de sommeliersEdegar Scortegagna é categórico: o par ideal para o presunto cru é um bom espumante. De preferência, da Luiz Argenta Vinhos Finos.