O PREÇO DA RESPONSABILIDADE

Por Felipe Porciúncula Antes vista como um recurso abundante e inesgotável, a água que corria pel


Edição 25 - 23.07.21

Por Felipe Porciúncula

Antes vista como um recurso abundante e inesgotável, a água que corria pelos rios brasileiros era utilizada indiscriminadamente por quem tivesse acesso a ela. Durante séculos, bastava coletá-la, desviá-la e usá-la da forma que se desejasse. Agricultura, pecuária e indústria não se fizeram de rogadas. Abusaram do insumo até que a conta, literalmente, chegou. O que parecia farto passou a ser escasso e de gratuito a oneroso.

Iniciada há quase duas décadas, a cobrança pelo uso da água mudou hábitos e, agora, vem modificando a paisagem de uma das regiões mais emblemáticas da história econômica brasileira, o Vale do Paraíba – onde, durante o período imperial, a produção de café e a pecuária quase levaram à degradação de solos e de cursos de água. Desde o ano passado, diversas fazendas de gado leiteiro e de corte começaram a recompor as matas ciliares em suas propriedades, nas margens paulistas de vários afluentes do Rio Paraíba do Sul, com recursos do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro), nos municípios de Lavrinhas e Cruzeiro. “Como tenho dentro da minha fazenda várias nascentes, hoje me considero um produtor de água, pois além de garantir mais qualidade ao meu gado Nelore (vendo bezerros desmamados), uma parte desses recursos hídricos fica retida nas áreas de proteção permanente (APPs)”, explica o pecuarista Carlos Antônio da Silva, da Fazenda Santana, localizada em Lavrinhas (SP).

Hoje, cerca de 17 propriedades rurais (localizadas às margens dos rios da Água Limpa, do Braço e Jacu, que deságuam no Paraíba do Sul) receberam apoio para recompor as áreas de APPs, que, além de aumentar a disponibilidade da água, cumprem o Código Florestal. “Essa região estava muito desmatada e possuía áreas muito degradadas, favorecendo o assoreamento dos rios, comprometendo seus leitos e causando enchentes. Esperamos que daqui a alguns anos, tenhamos outra situação florestal por aqui”, lembra o engenheiro agrônomo Fabiano Haddad, consultor ambiental do Sindicato Rural de Cruzeiro e responsável pelo projeto. Esse trabalho ajuda não só os fazendeiros como os moradores das cidades próximas, que podem ter uma maior oferta de água em suas torneiras.

O projeto deu tão certo que está sendo articulado mais um grande reflorestamento na bacia hidrográfica do Rio Batedor, principal manancial de abastecimento do município de Cruzeiro, com cerca de 84 hectares de áreas degradadas. O resultado dessa parceria tem sido muito positivo. A ideia é que organizações internacionais financiem a recuperação florestal das APPs e da reserva legal.

Recuperação de mata ciliar nas margens do Paraíba: reflexos positivos na produção agropecuária
Recuperação de mata ciliar nas margens do Paraíba: reflexos positivos na produção agropecuária

“O Sindicato Rural de Cruzeiro, junto com a The Nature Conservancy (TNC) e o Programa Conservador da Mantiqueira, faz uma prospecção em 180 propriedades rurais para apoiar a recuperação de áreas degradadas, além de pagar R$ 300 por hectare/ano aos pecuaristas durante cinco anos através do PSA (Pagamento por Serviços Ambientais) por meio do crédito de carbono”, lembra Wander Bastos, presidente do Sindicato Rural de Cruzeiro e Lavrinhas.

PIONEIRA

A bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul foi a primeira a implementar essa cobrança em rios de domínio da União, em vigor desde 2003. “A participação da sociedade civil, dos usuários e do poder público permite, por meio de decisões descentralizadas, a aplicação dos recursos em prol da bacia”, comenta André Marques, diretor-presidente da Agevap, entidade responsável pelo gerenciamento dos recursos da cobrança na bacia do Rio Paraíba do Sul.

Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a bacia do Rio Paraíba do Sul possui área de drenagem de cerca de 55,5 mil km², distribuída pelos estados de São Paulo (13,9 mil km²), Rio de Janeiro (20,9 mil km²) e Minas Gerais (20,7 mil km²). A extensão do Rio Paraíba do Sul, calculada a partir da nascente do Paraitinga, é superior a 1,1 mil km. A bacia drena uma das regiões mais desenvolvidas do País, abrangendo parte do estado de São Paulo, na região conhecida como Vale do Paraíba Paulista, parte do estado de Minas Gerais, denominada Zona da Mata Mineira, e metade do estado do Rio de Janeiro. Ao longo dessa extensão, há 180 municípios, 36 dos quais estão parcialmente inseridos na bacia.

O montante arrecadado também contribui para a melhoria da qualidade ambiental da bacia, possibilitando, por exemplo, o financiamento de projetos de obras de saneamento básico, incluindo ações para o tratamento de esgoto em diversos municípios. Um exemplo bem-sucedido é o Programa Pró-Tratar, cujos investimentos no último ano somam cerca de R$ 21 milhões, conforme dados do Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (Ceivap). Existem dois tipos de pagamento: aquele realizado pelos usuários do Paraíba do Sul, gerenciado pela Agevap; e aquele oriundo dos que usam seus afluentes, administrado pelos comitês estaduais.

Apesar desse esforço, existem produtores rurais que apontam descuido com a poluição do trecho do Paraíba do Sul que passa nas áreas urbanas, além da falta de reciclagem do lixo. “Existem várias cidades da região em que o descarte vai parar no rio. Uma proposta nossa é que parte desses recursos provenientes da cobrança seja usada para isso”, coloca Giani Bresolin, produtora de arroz no Sítio Santa Cruz, em Guaratinguetá.

Giani pertence à terceira geração da família, que produz arroz-agulhinha em uma propriedade de 15 hectares em Guaratinguetá. Por conta do avanço da tecnologia, em 20 anos viu sua produtividade passar de 4 mil para 10 mil toneladas de arroz por hectare. “Por sua natureza, o arroz é uma cultura que precisa de água de muita qualidade e aqui usamos o Rio Piagui, afluente do Paraíba do Sul. A vantagem é que, depois da colheita, a água é absorvida pelo solo e volta ao lençol freático”, afirma Giani.

O setor industrial também colabora com o processo de preservação da bacia. Um exemplo é a unidade de Jacareí da Papel e Celulose Suzano, gigante da área. A empresa conta com uma Estação de Tratamento de Efluentes própria, na qual é utilizada tecnologia de duplo estágio de lodos ativados para o tratamento dos efluentes. Esse método compreende um processo biológico em que microorganismos são utilizados para remoção da carga orgânica do efluente em condições controladas de temperatura, oxigênio e nutrientes. A tecnologia garante mais de 95% de remoção de carga de Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO).

“Hoje, o maior usuário é o setor elétrico, com a destinação de água para geração de energia. Os municípios da parte paulista têm um consumo de 5 m3 /s. Além disso, existe a transposição da represa do Jaguari para a represa Atibainha, do Sistema Cantareira, com uma transferência de 5,13 m3 /s, volume extremamente relevante. A irrigação também responde por 5 m3 /s em todo o trecho paulista”, explica Edilson de Paula Andrade, assessor técnico do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), órgão responsável pelo gerenciamento dos recursos hídricos no estado de São Paulo.

A Basf, uma das maiores Marques, da Agevap; Andrade, do Daee; Mariana, da Basf; e unidade da empresa em Taubaté: esforços públicos e privados pela recuperação do rio Fr Vale do Paraíba PLANT PROJECT Nº25 83 indústrias químicas do mundo, tem investido na redução do consumo. “Desde 2002, aumentamos em 42% os volumes de produtos fabricados na América do Sul, enquanto o volume específico de água utilizada nos processos foi reduzido em 58%. Em Guaratinguetá, nossa maior unidade produtiva da América do Sul, o consumo atual é de 1 milhão de m³ por ano, sendo que em 2002 esse volume era de 3,6 milhões de m³. Nesse mesmo período, nosso volume de produção aumentou cerca de 70%”, enfatiza Mariana Sigrist, consultora de relatórios de proteção ambiental e EHS na Basf América do Sul.

Outro exemplo é a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que intensificou nos últimos 20 anos ações para a redução de captação de água nova. Nesse período, a empresa – cuja principal unidade fica em Volta Redonda (RJ), uma das principais cidades do Vale – diminuiu em 70% o volume de água captada, de 8,8 m³/s para 2,6 m³/s, mesmo com a ampliação do parque fabril, com a instalação da Central Termoelétrica-2, a Fábrica de Aços Longos e a Fábrica de Cimentos. “Em 2020, a empresa, em caráter proativo, reduziu 30% da sua outorga perante a ANA, disponibilizando mais de 2 m³/s de água para os demais usuários da bacia. Essa redução foi viabilizada devido a diversos projetos implantados de reúso de água ao longo dos anos”, afirma Antônio Carlos Simões de Santana Filho, especialista em Meio Ambiente da CSN, com foco em recursos hídricos. Com indústria e agricultura seguindo no mesmo curso, a água ajudará a resgatar a riqueza da terra e da biodiversidade na região. E isso não tem preço.

Basf Planta Guaratinguetá
Basf Planta Guaratinguetá

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