Edição 24 - 03.04.21
Aficionados de máquinas antigas recuperam tratores e, com eles, a memória de outras eras do agronegócio brasileiro
atual BR-290, que divide o estado do Rio Grande do Sul ao meio, de leste a oeste, nem era asfaltada em 1951 quando o jovem Telmo Armindo Wollmann, de 18 anos, pegou um ônibus em Cachoeira do Sul e viajou à capital gaúcha para buscar o trator John Deere R Diesel importado dos Estados Unidos que o seu pai, o produtor de arroz e grande fã de máquinas Colecionáveis Ricardo Wollmann, havia adquirido na concessionária Figueiras, de Porto Alegre.
O transporte de um trator de quase 4 toneladas e mais um arado de discos por si só já seria uma operação logística complicada naquela época, em razão da distância de mais de 200 quilômetros que separa as duas cidades e daFoto: Eduardo Scaravaglione precariedade das estradas de chão batido. Mas tornou-se uma aventura ainda mais ousada a partir do momento em que a família Wollmann decidiu levar o John Deere R…rodando!
Com o arado acomodado sobre um reboque, a viagem de trator entre a capital gaúcha e Cachoeira do Sul demorou dois dias. Telmo saiu bem cedo de Porto Alegre. Ao anoitecer, precisou pernoitar em uma pousada à beira do caminho. Ainda dirigiu por muitas horas para chegar à fazenda da família, no final da tarde do segundo dia. Mas tudo correu bem na viagem e o valente John Deere serviria aos Wollmann por muitas décadas, até ser recolhido a um galpão da fazenda.
Quem relembra essa proeza é o especialista em desenvolvimento de produtos Telmo Ricardo Wollmann, filho de Telmo Armindo, que após a aposentadoria decidiu recuperar o velho John Deere e trazê-lo de volta a Porto Alegre, onde reside (desta vez, porém, em cima de um caminhão). Telmo é um antigomobilista que costuma desfilar nos encontros do Veteran Car Club do Brasil/RS com uma impecável picape Ford F-100 1962. Não se conformava com a ideia de ver o velho JD R ser consumido pela ferrugem.
Reativar a máquina que serviu por tanto tempo ao avô e ao pai foi mais fácil do que ele imaginava.Mesmo após 15 anos de imobilidade, bastou uma limpeza de magnetos para que o propulsor Diesel de 48 HP (acionado por um pequeno motor boxer a gasolina) voltasse a girar. “O motor pegou na hora. Foi emocionante”, relembra Telmo, que optou por não restaurar o trator. Para ele, a “pátina do tempo”ajuda a contar a história da máquina – que ele conserva em uma garagem e agora também já é cuidada pelo filho Ricardo. Só lamenta que as autoridades de trânsito da capital não permitam que o trator rode pelas ruas até os locais de encontro de veículos antigos… No final de 2018,quando foi exibido no 27º Encontro Sul-Brasileiro de Veículos Antigos, o John Deere R precisou ser transportado por um caminhão guincho.O colecionismo de veículos antigos congrega diversas categorias além dos clássicos automóveis esportivos, sedãs e cupês, que vão de viaturas militares a carros funerários, passando por picapes, ônibus, motocicletas e caminhões. Bastante difundido nos Estados
Unidos, no Canadá e na Europa, o hobby de garimpar, restaurar e colecionar tratores começa a atrair um número cada vez maior de aficionados brasileiros – principalmente produtores rurais e empresários do interior do País.
Pelo menos é o que acredita um dos maiores colecionadores de veículos antigos do Brasil, dono de máquinas de sonho como Ferrari, Porsche ou Corvette, que prefere não ser identificado. Com mais de 100 automóveis clássicos de alto valor alojados em um prédio de três andares construído especialmente para o acervo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, recentemente o colecionador gaúcho começou a se interessar também por tratores.
Adquiriu, primeiro, um Ford dos anos 1960, movido a gasolina, em um leilão. Logo depois, um International Harvester Farmall Cub americano, ainda mais antigo. E agora restaura outros quatro tratores de diferentes fabricantes. Sua nova coleção inclui até um trator usado para manobrar aviões (pushback) da antiga Varig, que também foi comprado em péssimo estado e restaurado. “O Ford estava todo modificado, com rodas dianteiras e pneus de Fusca. Felizmente, existe um grande catálogo de peças novas para ele nos Estados Unidos. Não foi difícil deixá-lo completamente original”, diz. Detalhe: o colecionador nunca teve nenhuma ligação com o campo e jamais dirigiu algum de seus tratores.
A relação entre tratores e automóveis é mais antiga do que se imagina. Marca lendária no mundo dos carros esportivos, a italiana Lamborghini começou fabricando tratores. Quando já havia ganhado bastante dinheiro com suas máquinas agrícolas, o ex-fazendeiro Ferruccio Lamborghini comprou uma Ferrari. Não gostou do câmbio e reclamou diretamente ao comendador Enzo Ferrari – que se irritou com a crítica do rude fabricante de tratores e o desafiou: “Por que você não faz um carro melhor?”. Assim nasceu a principal rival da Ferrari na Itália. Ferdinand Porsche, o gênio austríaco por trás da criação do Volkswagen Sedan e do esportivo icônico Porsche 356, também fabricou tratores – mais admirados pelo design do que propriamente pela performance.
Um Porsche Junior 1965 com motor monocilíndrico diesel é uma das atrações do Museu Agromen de Máquinas Agrícolas, de Orlândia (SP), a 361 quilômetros da capital. Maior do Brasil, e um dos maiores do mundo nessa categoria, o museu de Orlândia reúne mais de 200 tratores e quase uma centena de colheitadeiras e implementos agrícolas tão bem restaurados e conservados que parecem recém-saídos da linha de montagem. Distribuído em dois enormes pavilhões, esse magnífico acervo convive com a coleção de cerca de 200 automóveis clássicos do produtor rural José Ribeiro de Mendonça.
O “museu do trator” de Orlândia, como é conhecido por aficionados de todo o País, começou com a restauração de um velho Ferguson 35, que serviu à fazenda Agromen a partir de 1953. Por meio de doações e aquisições, no Brasil e no exterior, o acervo multiplicou-se rapidamente nos últimos 15 anos e hoje exibe raridades como um International Harvester Titan, construído em 1912 em Chicago, nos EUA; um Lanz Bulldog 1949 alemão; ou um FG-ZM5 713, fabricado pela Case americana no ano de 1919 em madeira e aço – sem banco para o operador, que o conduzia em pé.
Os tratores aparecem com frequência cada vez maior nos encontros de antigomobilismo, em passeios organizados por proprietários e em grupos de entusiastas nas redes sociais. Vendidos como sucata ao fim de sua vida útil até bem pouco tempo, hoje são disputados em leilões da internet a preços crescentes. Num país em que o agronegócio responde por cerca de um terço do PIB, o reconhecimento desses veículos como objetos de valor histórico até que demorou – mas, pelo jeito, veio para ficar. A história da mecanização agrícola no Brasil não está mais condenada ao esquecimento
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