Edição 21 - 13.10.20
Por Suzana Barelli
Ao reabrir depois da quarentena, o restaurante Noma, em Copenhague, eleito por quatro vezes o melhor do mundo, surpreendeu. Em vez do seu sofisticado menu focado em ingredientes da culinária nórdica, passou a vender apenas duas opções de hambúrguer, um cheesebúrguer e uma versão vegetariana, além de vinhos em seu winebar. Os clientes tinham a opção de comer no local – uma área externa, especialmente preparada para isso, respeitando as distâncias pós-Covid –ou levar o hambúrguer e o vinho para casa. Apenas no primeiro dia, foram vendidos 1.300 sanduíches! E as filas, com o distanciamento entre cada cliente, davam voltas no quarteirão.
Ainda não há previsão de quando o chef René Redzepi abrirá oficialmente o Noma com o menu gastronômico que lhe trouxe fama. No site, a informação é de que a equipe foi surpreendida com o coronavírus, está se adaptando a esta nova realidade e entrará em contato com os clientes que já tinham sua reserva confirmada para remarcar novas datas. Até a chegada da Covid-19, o Noma, atualmente o segundo melhor restaurante do vinho pela publicação The World 50 Best, tinha uma lista de espera de mais de três meses e só funcionava com o sistema de reservas.
Mesmo antes de abrir, uma questão preocupa: haverá clientes? Focado na sustentabilidade – são conhecidas as imagens de Redzepi andando pelas pradarias, colhendo vegetais da época e por seu cardápio sazonal –, o Noma é um exemplo de casa que valoriza os ingredientes locais. Mas a maioria dos seus clientes não são locais, moradores da Dinamarca, muito pelo contrário. O “novo normal” pode trazer a consciência de quanto o deslocamento é realmente necessário. “É quase uma incoerência: os ingredientes vêm da horta ou da fazenda do chef, mas o cliente vem do outro lado do mundo”, questiona Gabriela Mascioli, sócia da vinícola Herdade dos Coelheiros, no Alentejo, em Portugal, e assídua frequentadora de restaurantes.
Ainda é cedo para saber se esse ponto será uma questão. Mas o fato é que o público que paga mais de uma centena de dólares por uma refeição vem de longe, em geral de avião (hoje meio de transporte temido pela Covid-19), para ter o prazer de se deliciar com as criações de Redzepi. E esse é o dilema da grande maioria dos restaurantes estrelados, que vive do turismo, seja o gastronômico, seja o de negócios.
O próprio Ferran Adrià, chef catalão que revolucionou a cozinha espanhola com o seu elBulli, estima que 40% dos restaurantes gastronômicos do mundo deixarão de existir em cinco anos. É muita coisa. Atualmente, existem 104 restaurantes com três estrelas, 29 deles na França, e 378 com duas estrelas, conferidas pelo guia Michelin. Esta, que é a mais tradicional avaliação de restaurantes, pontua mais de 30 mil estabelecimentos, em 30 países, por ano. “Nesta nova realidade, a cada ano, devem fechar 10% dessas casas”, estima Adrià, em apresentação para os alunos da Universidade Anhembi Morumbi. Seu conselho é que os restaurantes foquem na gestão de maneira profissional.
O tema preocupa os cozinheiros. Em Portugal, o chef José Avillez, do Belcanto, com duas estrelas Michelin em Lisboa, já fechou seis de suas 20 casas, consequência direta desta pandemia. A reorganização de sua rede de restaurantes visou reduzir custos e rentabilizar os recursos disponíveis em uma época em que o turista desapareceu, principalmente das grandes cidades.
Aqueles que sobreviverem vão, muito provavelmente, praticar preços mais baixos. O chef popstar Erick Jacquin, que faz sucesso com o reality MasterChef, por exemplo, prevê uma queda nos valores cobrados pela alta-gastronomia. “Na França, os franceses não conseguem mais comer nos grandes restaurantes”, reclama o chef. E acrescenta: “Só se escuta inglês no salão”. A inflação dos cardápios é um dos pontos – preços de pratos e de vinhos ganharam uma nova dimensão, que agora está sendo posta em xeque. Valores mais baixos (espera-se) chegarão em menus digitalizados ou em folhas descartáveis. Garçons com máscaras explicam as opções do dia e fazem o serviço. “Talvez, a gente deixe um saca-rolhas para o cliente abrir o vinho que escolher”, imagina Jacquin, sobre o seu restaurante paulistano Président.
Menor quantidade de mesas no salão, máscaras e álcool em gel são a parte mais visível deste novo normal. Mas há outras mensagens possíveis. No início de junho, por exemplo, os irmãos Roca, do célebre El Celler de Can Roca, em Girona, na Catalunha (Espanha), divulgaram um vídeo em suas redes sociais contando de seu novo projeto. O filme começa com Joan Roca, o irmão que dá as linhas mestras na cozinha. “Nunca tínhamos parado tanto tempo (…), percebemos que tínhamos tempo para renovar”, conta ele. O irmão Josep, que cuida dos vinhos, acrescenta: “Fomos olhar o nosso passado, as nossas memórias”. E o caçula, Jordi, finaliza: “Precisamos de instantes de felicidades. Somos cavalheiros da felicidade”.
A narrativa termina com a nova roupagem do Mas Marroch, casa da família que funcionava como espaço de eventos em Girona e que agora abre como um novo restaurante, com muito espaço entre as mesas e servindo os pratos clássicos, que já foram preparados no Celler, mas saíram do cardápio. “Ele renasce como um lugar de memória, para compartir com nossos clientes a história do Celler de Can Roca”, explica Joan. No cardápio, receitas que foram preparadas entre 1986 e 2009. Reaproveitar espaços que perdem funções – quem vai reservar um lugar de eventos atualmente? – e saber contar histórias, como estes irmãos espanhóis, é um caminho.
Além das novas narrativas, há o trabalho com os fornecedores. Nos últimos anos, foram muitos os cozinheiros que apostaram em agricultores que cultivavam ingredientes sob medida para os restaurantes. Mais: muitos entraram na tendência dos ingredientes sazonais. O chef Alex Atala, do premiado D.O.M., de São Paulo, tem uma parceria com um criador de pirarucu, o famoso peixe amazônico. Jefferson Rueda, do também paulistano A Casa do Porco, o único restaurante brasileiro entre os 50 melhores do mundo, tem uma parceria com criadores de suínos, em sua cidade natal, São José do Rio Pardo, entre diversos exemplos.
David Ralitera, da Fazenda Santa Adelaide, referência em produtos orgânicos, é um desses fornecedores sob medida. Até fevereiro deste ano, ele atendia mais de 80 restaurantes em São Paulo, com produtos como cenouras coloridas, beterrabas, mangarito e demais itens da Mata Atlântica. “Nosso plantio está programado com dois anos de antecedência”, conta ele. Mas com a quarentena, ele viu desaparecer os compradores para as suas 70 toneladas, entre verduras, legumes e tubérculos, cultivados em seus 15 hectares de terreno. A saída foi voltar às origens e trabalhar com cestas de verduras e legumes para clientes pessoas físicas. E logo apareceu um novo mercado: os atacadistas, de olho na procura por produtos orgânicos para aqueles consumidores que estão de quarentena, em casa.
Para Ralitera, a solução foi oportuna, por mais que ele vibre quando um chef cria uma receita a partir de um ingrediente novo, que ele apresentou. “Fomos os primeiros a trabalhar com plantas esquecidas, legumes. É uma matéria-prima para inspirar os cozinheiros”, conta ele. Francês que chegou ao Brasil em 2006, ele conta que na Europa, França principalmente, a segurança alimentar é uma premissa básica da população, que ganhou destaque nesta quarentena. “A proposta dos produtos com denominação de origem é muito forte e os pequenos produtores cresceram com a crise”, afirma ele.
Ajudar os seus fornecedores a conseguir mercado é uma proposta dos cozinheiros. A quarentena aproximou produtores dos clientes finais. Um bom exemplo vem de Portugal. Gabriela cita o caso do Peixeaporta.pt, um projeto criado pela empresa Nutrifresco, que vende peixes para muitos dos restaurantes portugueses e, de um dia para o outro, ficou sem mercado. “Eles criaram uma rede de entrega e conquistaram clientes. Não esperaram uma ajuda do governo. Foram e fizeram”, conta ela. E, assim, vai se moldando a aventura gastronômica neste novo normal.
TAGS: Alex Atala, Celler de Can Roca, D.O.M., Erick Jacquin, Fazenda Santa Adelaide, Ferran Adria