A dinastia da cortiça

Leonardo Gottems, de Faro (Portugal) Portugal não é exatamente uma potência do agronegócio. A te


Edição 20 - 29.06.20

Leonardo Gottems, de Faro (Portugal)

Portugal não é exatamente uma potência do agronegócio. A terra dos nossos descobridores produz grandes azeites com o fruto de suas oliveiras e é famosa pelos vinhos que resultam da colheita de parreirais espalhados por boa parte do seu território. Uma atividade tão tradicional, relevante e próspera quanto essas, porém, muitas vezes nem é percebida por olhos menos atentos circulando pelas paisagens lusitanas. Aparentemente improdutivos, bosques de sobreiros se espalham por vastas áreas do país, produzindo matéria-prima para uma indústria centenária, bilionária e, de quebra, sustentável: a produção de cortiça.

A referência ao material quase instantânea nos remete à memória da tradicional e clássica rolha de vinho. No entanto, ao conhecer a Corticeira Amorim, maior produtora mundial do produto, percebemos que o universo em torno dessa atividade é muito mais amplo e rico, e a surpresa é proporcional ao encantamento provocado por essa indústria secular da região mediterrânea ocidental. Dinastia familiar do setor, os Amorim fizeram da cortiça um material nobre e a levaram para muito além das vinícolas. E, ao completar 150 anos, a empresa foi a responsável pelo renascimento de todo o setor, que há poucas décadas parecia condenado à extinção.

Na virada do milênio, por exemplo, houve uma grande campanha contra o uso de rolha natural, que chegou a perder um terço do mercado para os vedantes sintéticos. Londres, no Reino Unido, foi palco de um “funeral público da cortiça”, que era então acusada de ser predatória e de ameaçar de extinção as árvores de sobreiro (Quercus Suber L.). Como a indústria reagiu? De acordo com a própria Amorim, era o momento de se reinventar, buscando novas aplicações para a matéria-prima.

Hoje, essa indústria de ares artesanais passou à vanguarda da sustentabilidade tecnológica, ganhando terreno e recuperando mercado ano após ano. A história deu uma guinada pelas mãos de António Amorim, atual CEO da Corticeira, um defensor incansável da atividade que definiu a história de sua família.

Pioneirismo

A saga empresarial dos Amorim começou em 1870, com a fundação do pequeno negócio familiar, uma unidade de produção de rolhas para vinho do Porto na localidade de Vila Nova de Gaia, trabalhando cortiça das regiões do Douro e Trás-os-Montes, no Norte de Portugal. A história se conecta com o Brasil em 1915, quando os filhos dos fundadores emigraram para a América do Sul e começaram a levar matéria-prima, estabelecendo no Rio de Janeiro e em São Paulo unidades de produção de rolhas para a indústria local.

Foi durante o período compreendido entre os anos 1953 a 1988, porém, que o grupo vivenciou a expansão da sua base industrial e a verticalização do negócio, com o objetivo de alcançar a liderança mundial na produção e exportação. Nessa época Portugal consolidava-se como o maior produtor mundial de matéria-prima para cortiça. Cerca de 80% dessa produção era, no entanto, exportada em estado bruto e transformada em outros países – o que a Amorim conseguiu reverter, seja através de pesquisa e desenvolvimento, tecnologia, compra de maquinário, seja pela aquisição de outras fábricas.

Esse período de crescimento culminou com um marco corporativo: a abertura de capital, em 1988, e que trouxe para a companhia os recursos necessários para atravessar fronteiras. A internacionalização avançou e preparou o grupo para o novo milênio. Foi em 2001 que a quarta geração da família, com António Amorim (então com 34 anos) assumiu o papel de liderança e conduziu a Corticeira Amorim ao TOP 30 das marcas mais valiosas de Portugal pelo prestigiado ranking da consultora OnStrategy/Brand Finance.

Para António Amorim, um dos momentos mais emblemáticos dessa fase foi o ano de 1969, “quando a cortiça acompanhou o homem à Lua”. E desde aquela primeira missão tripulada fortaleceu-se a parceria entre a Amorim e as agências espaciais dos Estados Unidos, Nasa, e da União Europeia, ESA, compondo muitas missões espaciais como protetor dos escudos térmicos e placa de revestimento das naves espaciais – provando que não havia limites para a árvore símbolo de Portugal.

Mercado

O país lusitano é hoje o líder em produção de cortiça no mundo, com 34% da área plantada com sobreiros (736.775 hectares), 50% da produção e 75% da transformação global. Portugal é seguido pela vizinha Espanha, com 27% da área (574.248 ha). A seguir aparecem Marrocos, com 18% (383.120 ha) e Argélia, com 11% (230.000 ha). Tunísia, França e Itália dividem outros 10%.

Inserida nesse mercado, a Corticeira Amorim ostenta atualmente o status de maior empresa de transformação de cortiça do mundo, com a maior rede de distribuição mundial (51 empresas), 763 milhões de Euros de vendas consolidadas (2018) e cerca de 27.000 clientes em mais de 100 países. Aliás, 93% das vendas da empresa são realizadas para fora de Portugal.

A gigante da cortiça possui dez unidades de preparação de matéria-prima, 19 unidades industriais, 10 joint ventures e mais de 4 mil colaboradores, incluindo 1,2 mil fora do país de fundação. Tudo isso para produzir nada menos que 5,5 bilhões de rolhas anualmente, algo em torno de 25 milhões de rolhas por dia.

Produção sustentável

Toda essa produção hoje é reconhecida como um exemplo de sustentabilidade. A principal matéria-prima para a produção de cortiça é a casca do sobreiro, árvore quase onipresente em território português. É uma espécie de vida longa, assim como o seu ciclo produtivo. Um sobreiro demora 25 anos até poder ser descortiçado pela primeira vez. No entanto, é apenas a partir da terceira extração – em aproximadamente 43 anos – que a cortiça alcança a qualidade exigida para a produção de rolhas, passando a ser classificada como “amadia”. Os dois primeiros descortiçamentos, chamados de “virgem” e “secundeira”, são destinados à produção de isolantes, pavimentos e outras indústrias, tais como construção, mobiliário, moda e design, equipamentos esportivos, saúde, produção de energia e aeroespacial.

A extração é feita na primavera europeia, entre os meses de maio e agosto. O processo é manual, com o uso de apenas algumas ferramentas – sempre procurando não ferir o tronco. Essa é a época escolhida porque a árvore está em fase de crescimento, e assim tem mais força para se autorregenerar. Um sobreiro pode ser descortiçado por volta de 17 vezes ao longo da vida útil, que é de dois séculos, em média.

Todo o processo é regulado por legislação específica pelo governo português. A cortiça só pode ser retirada de um sobreiro a cada nove anos, prazo estipulado para prevenir que as árvores fiquem danificadas com descortiçamento em excesso. Isso explica uma dúvida frequente dos viajantes ao depararem com as árvores à margem das rodovias. Descascada, a parte do tronco principal é pintada com um número de 0 a 9. Isso indica o último algarismo do ano em que cada sobreiro foi descortiçado. Assim, as equipes de campo saberão quando é o momento de repetir o processo. Uma árvore marcada com um 9, por exemplo, teve sua casca retirada em 2019 e só poderá ser novamente desbastada em 2028.

“A indústria evoluiu muitíssimo”, afirma António Amorim. Mas há um diferencial que se mantém: o conhecimento intrínseco da matéria-prima. “Isso não se alterou, porque há um momento, na compra, onde esse conhecimento vai ser testado. Saber avaliar e classificar uma cortiça está absolutamente inalterado ao longo de todos esses anos, é perene”, afirma com autoridade.

O CEO da Corticeira Amorim defende com ardor os diferenciais de seu produto, o fato de ser um material ecológico e sustentável, 100% natural, renovável, reciclável e reutilizável. Ressalta que a cortiça é, ao mesmo tempo, um isolador acústico e térmico, impermeável a líquidos e gases, elástico e compressível, resiliente, muito leve, resistente a altas temperaturas, retardante de fogo, hipoalergênico, absorvente de choque, suave e confortável ao toque.

Ele vai além e sustenta que o material desempenha um papel crucial no equilíbrio ecológico do planeta. Os bosques de sobreiro abrigam altas taxas de biodiversidade e são retentores naturais de CO2, além de promoverem o equilíbrio do ciclo hidrológico e protegerem o solo contra a erosão, desertificação e até mesmo contra o fogo – devido a sua lenta combustão. Segundo Amorim, a atividade também é economicamente sustentável. Cerca de 100 mil pessoas dependem da produção e fabricação de cortiça natural.

Sobreiros podem viver muito, mas não são eternos. E a preservação do negócio exige projetos de longo prazo, cujo resultado será colhido pelas próximas gerações da dinastia Amorim. Um dos movimentos mais estratégicos do grupo atualmente é a “Intervenção Florestal”, iniciativa que pretende plantar 50 mil hectares de sobreiros em dez anos. Esse aumento de 7% da área de plantação permitirá uma expansão de 35% da produção de cortiça. No projeto será utilizada a investigação científica e a biotecnologia, além de ser introduzida a irrigação por gotejamento – tudo para aumentar a resistência da espécie e reduzir o primeiro ciclo de extração de cortiça de 25 para 10 anos.

Conexão Brasil

A estratégia de internacionalização é outra que António Amorim mantém entre as prioridades. Ele afirma que o mercado brasileiro, por exemplo, tem uma importância “progressiva, devido ao seu crescente perfil internacional ao nível da produção de vinhos espumosos”. Segundo o presidente do grupo, a Amorim Cork está “firmemente empenhada em apoiar esse desenvolvimento, que cada vez conquista mais consumidores dentro e fora do Brasil”.

“Mas não é apenas na área dos vinhos que o Brasil se destaca. Outros segmentos de bebidas têm uma enorme importância nacional e internacional. E, também neste segmento, as nossas rolhas desenhadas e produzidas especificamente para esse tipo de produtos com características especiais são parte integrante de uma proposta de qualidade que cada vez mais reforça as exportações brasileiras. A nossa expectativa para o futuro é de um crescimento adicional e de um maior reconhecimento da qualidade dos vinhos do Brasil”, projeta.

Além das rolhas, a unidade Amorim Cork Composites trabalha em diversos segmentos no mercado brasileiro: calçados, mobiliário, automóveis, energia, home e produtos de design, entre outros. “Ainda neste ano de 2020 queremos entrar na área de construção pesada, com mantas acústicas e pisos esportivos, com o Infill (gramado sintético) e o Corkeen (playground). Também a nossa unidade de flooring, a Amorim Cork Flooring, mantém relações comerciais com o Brasil”, conclui.

A Corticeira Amorim, de início familiar e história marcante, chega ao seu século e meio de existência comemorando quatro gerações que souberam empreender e se reinventar em meio a guerras, revoluções sociais, convulsões políticas, crises econômicas, mudanças de consumo e até de paradigmas da humanidade. Tudo isso, claro, preservando ao máximo o vinho nosso de cada dia.

VERSÁTIL E SURPREENDENTE

As aplicações da cortiça vão muito além das tradicionais rolhas de vinho, espumante ou mesmo uísque. Graças ao empreendedorismo e à visão de empresas como a Corticeira Amorim, essa rica matéria-prima é atualmente empregada em finalidades tão fundamentais quanto impensáveis. Moda e design são os setores que mais abusam da criatividade ao empregar a cortiça, por exemplo, em roupas, calçados, acessórios e até mesmo joias. Entre as marcas de referência que incluem o material em suas coleções estão Yves Saint Laurent, Prada, Stella McCartney, Dior, Manolo Blahnik, Costume National, Dolce & Gabbana e Gucci.

O setor de construção civil foi o primeiro a perceber múltiplas aplicações e tirar proveito das propriedades únicas do produto do sobreiro, que desempenha um papel relevante na construção de pontes e autoestradas, ferrovias, barragens e aeroportos. Pisos de cortiça são um dos elementos mais representativos, porém arquitetos e engenheiros têm encontrado múltiplas funções para esse material ao criar mobiliário, ou usar como junta e vedante, e mesmo em elementos estruturais da construção. Isso sem falar de isolantes térmicos e revestimentos, inclusive externos, em fachadas de prédios e monumentos. Por suas qualidades táteis e olfativas, bem como a facilidade de ser moldada, a cortiça compõe obras icônicas como a Igreja Sagrada Família, em Barcelona, e o Terminal de Cruzeiros de Lisboa.

Outro setor que “descobriu” a cortiça foi o automotivo, aplicando o material como suavizador em juntas, seja no cabeçote do motor, seja na caixa de câmbio. No interior dos veículos, o material é usado na composição da alavanca de marchas, no freio de mão, no volante e no revestimento. A Mercedes, por exemplo, colocou em seu protótipo F700 um tecido de cortiça tão fino quanto o couro. Outras montadoras e construtoras usam o produto nos componentes para interiores de ônibus, trens de alta velocidade e aviões.

No mundo esportivo, a cortiça é utilizada na composição dos gramados sintéticos e para potencializar o desempenho de bolas de hóquei, de golfe e de basebol, bases de volantes de badminton, raquetes de tênis de mesa, alvos para dardos, caiaques olímpicos e pranchas de surfe.

Através da pesquisa e da ciência, surgem todos os dias novas e surpreendentes utilizações. Na saúde, por exemplo, é usada em adjuvantes de vacinas. Após purificação e separação química, são obtidos compostos com aplicações diversas. Há estudos que indicam o potencial antioxidante e anticancerígeno dos efluentes do processamento da cortiça. Está avançada, ainda, a pesquisa para incluir o elemento, em forma de pó, em produtos cosméticos, graças às suas características hipoalergênicas.

Por sua resistência ao choque, o produto está sendo testado também pelos fabricantes de vestimentas de segurança como elemento do colete à prova de balas. A indústria cinematográfica, por sua vez, já descobriu que os finos grãos de cortiça produzem ótimos efeitos especiais visuais nas “explosões”. Parece não haver limites para a versatilidade da cortiça.

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