O cosmo na carta de vinhos

Por Suzana Barelli O champanhe Cristal 2012 é um divisor de águas (ou seria de vinhos?) da maison


Edição 19 - 05.05.20

Por Suzana Barelli

O champanhe Cristal 2012 é um divisor de águas (ou seria de vinhos?) da maison Louis Roederer, casa fundada em 1776, em Reims, na França. É a primeira safra em que esse champanhe é elaborado 100% com uvas cultivadas de acordo com a filosofia biodinâmica, em um processo de conversão de vinhedos para o cultivo orgânico iniciado em 2007. Com uvas colhidas em 2012, e um estágio de seis anos nas caves subterrâneas da maison, o vintage chega agora ao mercado e já recebeu altas pontuações dos críticos internacionais (98 numa escala de até 100 pontos de Antonio Galloni, da Vinous, e de James Suckling; 97 da Robert Parker’s Wine Advocate; e 19 em 20 pontos, de Jancis Robinson).

A descrição do vinho, com adjetivos como deslumbrante, rico, com aromas atraentes, frescos e florais, mostra que o chef de caves Jean-Baptiste Lécaillon está no caminho certo. Com um detalhe importante: por questões climáticas, a safra de 2012 foi muito complicada em Champanhe. O fungo oídio, uma das grandes pragas dos vinhedos, atacou muitas uvas da região, reduzindo a quantidade e, principalmente, a qualidade dos vinhos deste ano. Nas vinhas de Chardonnay e de Pinot Noir que dão origem ao champanhe Cristal, no entanto, não houve a manifestação do fungo.

A explicação, acredita Lécaillon, está no cultivo biodinâmico. Atualmente, metade dos vinhedos da Louis Roederer, ou cerca de 115 hectares, é certificada como biodinâmicos. Entre eles, estão as vinhas que dão origem à Cristal, em suas versõe brut e rosé. A outra metade segue o cultivo orgânico, e está em processo de conversão para a biodinâmica.

Filosofia criada no início dos anos 1920 por Rudolf Steiner, a biodinâmica propõe uma viticultura que, na definição da Cristal, conecta o homem e a natureza. Na verdade, a filosofia biodinâmica passa por cuidar das plantas apenas com produtos naturais, sem nenhum agrotóxico ou demais químicos, e com o uso de muitos compostos – o mais famoso deles é um composto enterrado dentro do chifre de vacas –, e preparados à base de plantas. Ao lado disso, a biodinâmica prevê a diversidade no vinhedo (não apenas às videiras, mas outras plantas cultivadas ao redor) e segue as influências cósmicas, com as fases da Lua e dos planetas pautando os tratamentos da planta. Em Champanhe, no norte da França, é uma prática que vem crescendo. Segundo o Comité Interprofessionnel du Vin de Champagne, atualmente 20% do total de vinhedos locais contam com alguma certificação, orgânica ou biodinâmica.

Seguir a biodinâmica é visto como uma das respostas dos viticultores às mudanças climáticas. Um dos primeiros grandes nomes do vinho a aderir a ela foi a Domaine de la Romanée-Conti, que na Borgonha elabora um dos tintos mais cultuados e caros do mundo. Aubert de Villaine, coproprietário da Romanée-Conti, segue os princípios da biodinâmica desde o final dos anos 1990, sem fazer nenhum alarde ou publicidade sobre isso. Atualmente, a filosofia vem ganhando a adesão de grandes e pequenas vinícolas ao redor do mundo. “Com a chegada de mais vinícolas, podemos vencer a resistência de quem acredita que, por seguir preceitos cósmicos, a biodinâmica poderia ser mais uma “bruxaria” do que uma ciência”, afirma a produtora Marina Santos, uma das poucas brasileiras a elaborar vinhos na região da Serra Gaúcha de acordo com essa filosofia.

Na lida diária do vinhedo, os produtores precisam de opções para os novos problemas que vêm surgindo com as chuvas torrenciais (e a erosão que trazem como consequência); a neve que não cai mais em novembro (isso nos vinhedos no hemisfério norte), os novos ataques das pragas e aqueles anos de pouquíssima chuva (lembrando que a irrigação é proibida na maioria dos vinhedos europeus), entre outras mudanças que estão bagunçando o calendário da vinícola. A poda após a colheita, por exemplo, muitas vezes é adiada porque há o risco de geadas no período da floração – ao podar mais tarde, a floração também ocorre mais tarde, escapando do risco das geadas. E a colheita pode se estender por mais tempo, porque não há o risco de o frio chegar tão cedo. Os produtores sabem, na prática, que as videiras são mais sensíveis às mudanças do clima do que várias outras frutas, tornando as uvas vulneráveis ao calor e à seca e isso pode colocar em risco a qualidade dos vinhos.

Um exemplo é o produtor Angelo Gaja, a maior referência em vinhos italianos. Com vinhedos no Piemonte e na Toscana, esse italiano criou o que chama de “método Gaja”. A nova maneira de cuidar dos vinhedos – e eles são muitos: 243 hectares, divididos entre 96 hectares no Piemonte, 120 hectares em Bolgheri e 27 hectares em Montalcino, estas duas últimas na Toscana – começou em 1995, com a decisão de não utilizar pesticidas e herbicidas no campo. E seguiu com a consultoria de geólogos e biólogos para encontrar caminhos para cuidar das vinhas.

Depois de muito estudar, Gaja percebeu que não queria seguir nenhuma filosofia cegamente e, menos ainda, aderir a uma empresa certificadora. Ter o selo de orgânico ou de biodinâmico cercearia a sua liberdade de em um ano, conforme o problema no vinhedo, utilizar um produto ou um composto não autorizado. Resultado: ele acabou por mesclar diferentes técnicas da agricultura orgânica e biodinâmica em seu próprio método.

“Não são todos que admitem, mas nos últimos anos tivemos muitas mudanças no clima. Vemos isso nas nossas vinhas”, afirma Giovanni Gaja. Filho mais novo de Angelo, Giovanni passou por São Paulo no final do ano passado, divulgando a maneira Gaja de cultivo – as fotos das abelhas, que agora também habitam os vinhedos, é o ponto alto de sua apresentação.

A base de Gaja é a diversidade, vista como a maneira de trazer mais vida dentro dos vinhedos e, com isso, tornar as videiras mais resistentes às doenças. Para isso, ervas, favas e leguminosas são cultivadas entre as fileiras das vinhas, com a ideia de também trazer novos nutrientes aos solos e às raízes. Com a chegada do verão, um trator corta essas plantas, deixando-as como um protetor do solo contra o calor e contra a erosão, no caso de chuvas. Com esse manejo, aumenta-se a resistência natural das plantas, que conseguem se defender, sozinhas, das pragas.

Flores são cultivadas ao redor para compensar os problemas trazidos pela monocultura da uva. A ideia é que elas atraiam também pequenos animais, que possam agir como predadores naturais. Um exemplo são os microrganismos que, antes, morriam com o frio do inverno e não atacavam as vinhas. Com o frio mais ameno, esses pequenos animais apenas hibernam e voltam com força no início da primavera. “Com o ambiente equilibrado, os predadores naturais conseguem agir nos vinhedos”, conta Giovanni. E brinca: “Mas o meu avô não gostaria de ver o vinhedo assim. Para ele, nossas vinhas tinham de ser um jardim, sem nenhum mato”. Os tempos mudaram.

 

Um brinde pelo clima

Nem só a biodinâmica ou técnicas semelhantes, que podem ser agrupadas no guarda-chuva da sustentabilidade, são as respostas das grandes vinícolas. Um exemplo é a IWCA, sigla para International Wineries for Climate Action, algo como união das vinícolas pelo clima. Criado pela Família Torres, grupo espanhol que há cinco gerações elabora vinhos, e pela Jackson Family Wines, que atualmente reúne 40 vinícolas entre Estados Unidos, Itália e França, a IWCA é um grupo de trabalho colaborativo de vinícolas comprometidas com o meio ambiente e que usa a ciência para reduzir as emissões de carbono no setor. A meta é que as vinícolas participantes reduzam a sua emissão de gases de efeito estufa em até 80% até 2045. No curto prazo, a meta é de 50% até 2030.

No início deste ano, o grupo recebeu a adesão de outras quatro vinícolas de renome mundial: a portuguesa Symington, a norte-americana Spottswoode, a neozelandesa Yealands Wine Group, e a chilena VSPT Wine Group, o segundo maior grupo do país, resultado da fusão da Viña San Pedro com a Tarapacá. “As alterações climáticas configuram um dos maiores riscos que a humanidade enfrenta. Precisamos de indivíduos, empresas e governos que respondam à altura desse desafio”, afirma Rob Symington, sócio-diretor da Symington Family Estates, a primeira empresa de Portugal a aderir a este grupo. Do total de 1.114 hectares de vinhas no Douro, a Symington conta com 130 hectares com certificação biológica.

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