Catharina Sour, o espumante das cervejas

Por Rafael Lescher Criatividade, variedade, oportunidade e experimentação. Estão aí alguns dos i


Edição 15 - 07.08.19

Por Rafael Lescher

Criatividade, variedade, oportunidade e experimentação. Estão aí alguns dos ingredientes que deram origem a um estilo de cerveja brasileiro que tem conquistado consumidores por aqui – e o paladar de especialistas mundo afora. A Catharina Sour – o nome é uma clara referência à Santa Catarina, o estado onde surgiu – foi criada em 2016, na Cervejaria Blumenau, pelo mestre-cervejeiro Carlo Lapolli, que hoje preside a Associação Brasileira das Microcervejarias e Empresas do Setor Cervejeiro (Abracerva). Sua receita é uma inovação da alemã Berliner Weisse, cerveja de baixo teor alcoólico que por ser ácida é geralmente servida com licores de frutas e sobremesas. A versão nacional traz o sabor das frutas, típicas do Brasil, já na própria bebida, adicionadas durante o processo de fermentação.


Seguindo um roteiro clássico das inovações, ao chegar no mercado a cerveja logo esbarrou em desafios, inclusive o paladar de consumidores mais tradicionais. É que no início ela era identificada pelo estilo Berliner Weisse. Quem apreciava o sabor mais ácido e se deparava com o gosto de frutas ficava confuso, ou até frustrado. A reclamação registrada em um dos pontos de venda se transformou em solução estratégica para desatar o nó comercial. E de forma bem atual e democrática: uma discussão em um grupo de WhatsApp de Blumenau. Após uma série de sugestões, veio o Catharina Sour. O termo Sour deixava claro se tratar de uma cerveja ácida, e o Catharina, além da homenagem ao estado, avisava o público, de cara, que aquela era uma cerveja diferente do que já existia no mercado. O debate foi além. Foi organizado um workshop com outros mestres-cervejeiros para definir a receita e as regras para a fabricação do novo estilo. Produtores que vinham preparando bebidas similares passaram a adotar o nome, tornando o estilo mais popular. Hoje, qualquer pessoa pode desenvolver sua própria Catharina, é só buscar a receita completa no site da cerveja.

A partir daí, a inovação catarinense se tornou conhecida inclusive em outras regiões do País. A popularização da cerveja ganhou mais força após uma visita ao Brasil de Gordon Strong, presidente do Beer Judge Certification Program (BJCP), organização internacionalmente reconhecida por certificar jurados de diversos estilos de cerveja, hidromel e sidra no mundo. Naquela ocasião, em 2017, Strong esteve em Santa Catarina para a apresentação de uma palestra e acabou provando o novo estilo. O especialista ficou tão surpreso com o sabor que sugeriu a criação de uma categoria própria no guia de estilos do BJCP, publicação mundial de cervejas que ele mesmo ajudou a criar. Esse guia serve para diferenciar os estilos em uma competição internacional, o que evitaria, por exemplo, que a Catharina Sour fosse injustamente comparada com as cervejas ácidas belgas.

Mesmo o Brasil levando dezenas de cervejas ao pódio mundial todos os anos, foi a primeira vez que um estilo criado aqui conquistou reconhecimento internacional. Em pouco tempo, pequenas cervejarias nacionais começaram a ganhar prêmios por suas Catharinas. Em 2016, a Lohn Bier, de Lauro Müller, cidade mais ao sul de Santa Catarina, recebeu a premiação máxima no World Beer Awards, em Londres, na categoria cerveja saborizada dentro do estilo frutas e vegetais. “As cervejarias se diferenciam nessas competições por suas regionalidades. A utilização do que está disponível em sua área é o que faz sua cerveja se destacar das demais”, comenta Richard Westphal Brighenti, mestre-cervejeiro da Lohn Bier. O uso de frutas como a uva goethe foi determinante para a conquista da cervejaria.

Carlo Lapolli, presidente da Abracerva

A Sour brasileira ganhou esse destaque internacional por levar ao resto do mundo sabores clássicos para os brasileiros, mas completamente estranhos para consumidores de outros países. Lapolli, da Abracerva, até a descreve como o “espumante das cervejas”, comparando-a, por conta das qualidades gastronômicas, a um bom brut, cuja apreciação demanda maior refinamento e não apenas um copo gelado. Os produtores ressaltam sua delicadeza e o fato de ser imprescindível usar matéria-prima de qualidade elevada, ou seja, sempre os melhores ingredientes. Essa condição reforça o empenho para assegurar a utilização de frutas in natura e manter a conexão com o lado agrícola dessa cadeia produtiva.

POR TRÁS DA ESPUMA

Para a produtora de sucos e geleias Myberries, também de Santa Catarina, o crescimento da demanda por frutas frescas para a produção de cervejas abriu espaço para uma nova oportunidade. No entanto, as frutas vermelhas, especialidade da empresa, são extremamente frágeis e poderiam não suportar a viagem até as cervejarias, que nem sempre ficam em locais estratégicos. De uma parceria com Carlo Lapolli veio a saída para o estresse da logística, uma técnica de extração da polpa para garantir maior preservação do fruto sem perder sabor. “O processo não é simples”, comenta André Grützmacher, proprietário da Myberries. Todos os dias as frutas são colhidas manualmente nas fazendas parceiras e depois enviadas à empresa, onde há um processo de retirada das sementes para a produção da polpa. Embora desafiador, o negócio foi um grande sucesso. André afirma que hoje de 20% a 30% da produção da empresa é destinada às Catharina Sour.

Fabrício Almeida e Junia Falcão, da cervejaria Zalaz, são um exemplo de empresários que conseguiram tirar proveito da cultura agrícola para a produção de cervejas diferenciadas. A família de Fabrício é dona da Fazenda Santa Terezinha, localizada na Serra da Mantiqueira, no sul de Minas Gerais, onde se produz cafés especiais, culturas orgânicas (pitaia, mandioca e feijão), suinocultura e derivados. Eles vislumbraram a oportunidade de usar produtos ali mesmo da fazenda para a elaboração de cervejas únicas. Fabrício até já havia se aventurado na criação de cervejas artesanais, o que fortaleceu o sonho e a meta de ter a própria fábrica. Em um almoço com a família, ele e Junia apresentaram o projeto para a instalação da cervejaria na área da fazenda, criando um elo entre os dois negócios. O casal, que se conheceu em 2006, produziu, ainda com uma estrutura mais caseira, a bebida servida no próprio casamento, em 2013.

Junia Falcão e Fabrício Almeida, da cervejaria Zalaz

No ano seguinte construíram a fábrica, que foi inaugurada em junho de 2015. Desde então, a cervejaria tem apresentado uma grande variedade de rótulos e cresce no mercado brasileiro. Mas como as novas safras de garrafas acompanham os períodos de colheita da Santa Terezinha, a disponibilidade para o mercado também é sazonal. Esse estilo único de produção causa certa inquietude, certa ansiedade no consumidor, que fica atento para não perder o próximo lançamento. Parece até coisa de colecionador.

A Zalaz tem uma relação interessante com o estilo Sour. Fabrício conta que sempre produziu como hobby suas “sours domésticas”, expressão usada por alguns cervejeiros para descrever o processo de acidificação induzido por uma levedura que é colocada durante a etapa de fermentação. Essa forma de acidificação costuma ser adotada pelas empresas por sua rapidez e consistência. Fabrício revela ter um gosto especial por esse estilo de cerveja por representar bem o Brasil, pois sua refrescância e a facilidade de beber demonstram o melhor do clima do País.

As cervejas da Zalaz continuam a ser produzidas com leveduras disponíveis na fazenda, mas recentemente uma nova cepa surgiu de forma inusitada. O casal adquiriu alguns barris para armazenar a bebida, com o intuito de que ela contraísse os gostos sutis da madeira. Ao retirarem a cerveja, perceberam que as leveduras presentes no reservatório a deixaram ácida, criando assim uma “sour selvagem”, quando a levedura é ativada sem a interferência humana. Esse estilo ganhou dois rótulos na singular lista de produtos da cervejaria.

Embora o estilo Catharina Sour venha ganhando notoriedade dentro e fora do País, há quem defina – mas não abertamente – a denominação mais como uma inteligente estratégia de marketing, mirando o aumento das vendas para o público geek, aficionado de cerveja. A brasilidade da bebida e a importância do uso de frutos locais não são questionadas, mas nem todos acham que as variações da receita original alemã justificam todo o alarde.

NOVOS HORIZONTES PARA AS ARTESANAIS

Ainda que barulhento, o mercado de cervejas artesanais só representa 2,7% da produção cervejeira no Brasil, o equivalente a 380 milhões de litros, segundo dados da Abracerva. Boa parte dos consumidores é formada pelo público geek, que se diverte com as diferentes marcas e novos sabores, sem se importar com os preços relativamente mais altos em comparação com as marcas tradicionais. David Michelsohn, da cervejaria Júpiter, e Richard Westphal, da Lohn Bier, concordam que essa diferença se justifica pela complexidade da fabricação. O custo de produção das artesanais, que inclui ingredientes premium, eleva o preço final. David cita como exemplo a Tânger Witbier, uma cerveja de trigo com tangerina. Antes de adicionar a fruta à receita, é preciso retirar sua casca, mas o processo pode destruir a polpa. Para contornar o problema, a equipe precisa congelar sacos de 25 kg e só depois colocá-los nas máquinas. O processo, demorado e delicado, só aumenta o valor do produto que chega ao consumidor.

Carlo Lapolli comenta que uma nova linha de cervejas, a Lambic, vem chamando a atenção de muitos produtores. Esse estilo belga usa malte de cevada e trigo e passa por um processo de fermentação dentro de barricas de madeira que pode levar de cinco meses até alguns anos. O sabor ácido surge desse período de envelhecimento e, em algumas versões, pela inclusão de frutas vermelhas. Hoje, no Brasil, essa cerveja tem sido reproduzida com mudanças semelhantes às feitas na Catharina Sour. Em vez de usar malte de trigo, os cervejeiros daqui adotaram a mandioca. Essa alteração deu origem ao nome de batismo desse novo estilo: Lambioca.

Segundo a Abracerva, o número de novas cervejarias artesanais em 2018 apresentou crescimento significativo. São mais de quatro novos produtores por semana, totalizando 889 registros no ano passado. O estilo brasileiro de fazer cerveja está ganhando espaço e a visibilidade que sempre quis. Inspirando tendências que agora chegam ao exterior, com Catharinas Sour sendo fabricadas inclusive nos Estados Unidos, no Canadá, em Portugal e na Costa Rica. A safra de brindes tende a ser cada vez mais produtiva.

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