A biodiversidade salvou Tomé-Açu

Por Romualdo Venâncio O cacau produzido em Tomé-Açu, município localizado no nordeste paraense,


Edição 13 - 15.03.19

Por Romualdo Venâncio

O cacau produzido em Tomé-Açu, município localizado no nordeste paraense, a cerca de 200 quilômetros da capital, Belém, foi o primeiro produto brasileiro a receber o registro de indicação geográfica em 2019, emitido no final de janeiro pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). O fato inédito no Pará beneficia a produção agrícola local de diversas maneiras, mas principalmente pela agregação de valor à cacauicultura e porque marca o início de uma nova etapa do agronegócio na região.

O primeiro ciclo da produção de cacau em Tomé-Açu começou no final dos anos 1920, com imigrantes japoneses recém-chegados ao Brasil que pretendiam cultivar uma espécie perene e nativa da floresta amazônica, além daquelas com as quais já eram familiarizados, como arroz e hortaliças. Para organizar esse desenvolvimento, criaram a Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu (Camta). A experiência com o cacau foi interrompida pela falta de conhecimentos técnicos para lidar com a fruta, inclusive em relação ao combate e à prevenção de pragas e doenças. A cidade só voltou a desfrutar, com o perdão do trocadilho, dos cacaueiros na década de 1970.

A pimenta-do-reino, outra importante cultura local, também passou por uma situação de quebra, porém de forma mais impactante e danosa. As primeiras mudas da especiaria chegaram a Tomé-Açu em 1931, e se multiplicaram tão rápida e intensamente que a cidade se tornou sua maior produtora nacional. Se por um lado a importância e a valorização levaram a cultura a ser chamada de “diamante negro”, por outro estimularam a formação de vastos campos de monocultura, o que fragilizou o agronegócio local. “Nos anos 1960, um ataque de fusariose praticamente dizimou grande parte das lavouras de pimenta”, conta Dinaldo dos Santos, diretor da Camta. A fusariose é uma doença de solo causada por fungos do gênero Fusarium que ataca as raízes das plantas, prejudicando seu desenvolvimento, sua produtividade e, por consequência, a lucratividade do produtor.

RETOMADA PELA VARIEDADE

A máxima otimista de que tudo tem um lado bom ganhou força entre os produtores de Tomé-Açu. Os tropeços com o cacau e a pimenta-do-reino se transformaram em aprendizado, e, mais tarde, em uma crescente geração de novos negócios e até de um sistema de produção patenteado. A mudança começou pelas observações do ex-diretor de Assistência Técnica da Camta, Noboru Sakaguchi, japonês nascido na província de Wakayama e formado em Engenharia Florestal pela Universidade Agrícola de Tóquio, que contou com o apoio da Japan International Cooperation Agency (Jica) para suas pesquisas.

Santos conta que Sakaguchi navegou pelos rios da região para conhecer a forma de vida dos povos amazônicos e viu que grande parte dos cultivos era feita como policultura, envolvendo lavouras e árvores frutíferas: arroz, cupuaçu, goiaba, hortaliças, jaca, jambo, laranja, limão, mandioca, melancia, milho, entre outras. “Essa estrutura dava mais equilíbrio e estabilidade às famílias, pois além do alimento próprio conseguiam excedente para comercializar”, comenta.

A partir daí começaram a tomar forma os primeiros modelos de sistema agroflorestal de Tomé-Açu. A princípio, foram escolhidas plantas que não eram atacadas pela fusariose, como o maracujá, o cacau e algumas árvores amazônicas. “Foram várias tentativas e diversos arranjos, até que começou a dar certo. Hoje, temos mais de 200 arranjos resultantes dessas experiências, formando um verdadeiro laboratório agroflorestal”, diz Santos. O consorciamento entre essas culturas foi elaborado de forma a garantir renda em curto, médio e longo prazos para os produtores.

A evolução e os bons resultados dessa nova agricultura da cidade levaram à patente do Sistema Agroflorestal de Tomé-Açu, o Safta, que já vem sendo replicado em outros estados e países. “Por meio de um projeto socioambiental, desde o ano 2000 a Camta vem difundindo o Safta em mais de 25 comunidades de pequenos produtores distribuídas por Pará, Alagoas e Amazonas. Também temos atuado por mais de quatro anos na zona norte de La Paz, região amazônica da Bolívia, com arroz irrigado e cacau em sistema agroflorestal”, comenta Santos, lembrando que esse trabalho foi impulsionado por Masaaki Yamada, professor da Universidade de Agronomia e Tecnologia de Tóquio, com apoio da Jica, a Agência de Cooperação Internacional do Japão.

PARCERIA COM A NATUREZA

O Safta ganhou notoriedade e atraiu outras instituições que tinham interesses semelhantes no que diz respeito ao agronegócio sustentável, ou seja, a produção agrícola em sintonia com a preservação do meio ambiente. Esse é o conceito que aproximou a Camta e a Natura, em uma parceria que também envolve a Embrapa Amazônia Oriental, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a United States Agency for International Development (USAID) e o Centro Internacional de Pesquisa Agroflorestal (Icraf).

A multinacional brasileira de cosméticos faz jus ao nome e tem sua marca estritamente associada a produtos naturais. Por isso, em 2006, a Natura iniciou um processo de substituição de matérias-primas derivadas de petroquímicos. “Na busca por substitutos dos óleos minerais, chegamos aos vegetais, e o de palma foi o mais interessante. Além da oleína, que vai para a parte líquida; temos a parte sólida, que é destinada aos sabonetes”, explica Daniel Gonzaga, diretor de Inovação e Desenvolvimento de Produtos da Natura.

Mas o óleo de palma ou óleo de dendê não poderia vir de qualquer origem. “Descobrimos que a produção desse óleo estava muito associada à destruição de matas e florestas em países como a Malásia e a Indonésia, tanto o destinado ao segmento alimentício como a outros setores”, conta Gonzaga. “Buscando um modelo que pudesse ser mais sustentável, chegamos à produção de palma em áreas devastadas, antigos pomares e áreas abandonadas. Seria uma reestruturação desses espaços, mas não como monocultura e sim de forma a ter biodiversidade.”


Este foi o início do projeto SAF Dendê, sistema agroflorestal baseado na implantação de três unidades demonstrativas, cada uma com seis hectares. “O projeto foi implementado em terrenos de pastagem degradada, pomares abandonados e capoeira, combinando espécies com diferentes ciclos de produção”, afirma Camila Brás, pesquisadora de Ingredientes Naturais da Natura. Do ponto de vista agronômico, a integração de diversas culturas tem o objetivo de um favorecimento mútuo. Já na questão econômica, a meta inicial era assegurar renda permanente aos produtores. Além do dendê, a espécie principal, o projeto envolveu cacau e açaí; opções de plantas madeireiras, como andiroba, jatobá, taperebá e mogno-brasileiro; e outras adubadeiras para ajudar na nitrogenação do solo, a exemplo da mandioca e do margaridão.

A biodiversidade proposta e construída por meio desse projeto pode ser vista de qualquer ângulo que se olhe para a vegetação. Principalmente quando se vê do alto, em comparação com áreas onde ainda prevalece a monocultura. A diferença entre os dois sistemas fica mais evidente quando são confrontados os resultados. “Mesmo com um número menor de árvores de palma no sistema agroflorestal, conseguimos maior produtividade”, comenta Gonzaga. No agroflorestal, a média é de 100 plantas por hectare, enquanto na monocultura é próxima de 140. “Além disso, o sistema agroflorestal de produção gera três vezes mais valor ambiental”, complementa Camila.

GANHO PERMANENTE

Mais de dez anos após sua implementação, o SAF Dendê mostrou uma série de benefícios que só estimulam sua expansão, processo que já está acontecendo. Embora ainda seja um experimento, o projeto já avançou para 38 hectares, com aporte de US$ 2,4 milhões obtidos pela Natura, com a Embrapa, a Camta e o Icraf. Também vieram US$ 2,37 milhões da USAID – e esta é a primeira vez que um projeto brasileiro recebe recursos do fundo americano. “Nossa intenção é fortalecer esse modelo de criar mecanismos de expansão de cultivo do dendê no sistema agroflorestal, o que pode gerar emprego, renda e preservação ambiental em nível global, com impacto positivo”, diz Gonzaga. “O projeto tem criado oportunidades para os negócios da região e gerado movimentação econômica.”
Isso tudo tem despertado o interesse das grandes companhias da região. Santos, da Camta, diz que, quando o SAF Dendê foi implementado, a visão de muitos empresários era de desconfiança, não acreditavam que daria certo. “Agora, até a Agropalma, que deve ter cerca de 40 mil hectares na região, começou a trabalhar com o sistema que fazemos”, diz, orgulhoso, o diretor da Camta, que hoje conta com 172 cooperados, mais de 2 mil fornecedores de matéria-prima e gera cerca de 10 mil empregos durante o ano, entre diretos e indiretos.

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