A trincheira do algodão

Por Romualdo Venâncio* No mês de outubro de 2018, um grupo de cotonicultores brasileiros esteve na


Edição 12 - 03.01.19

Por Romualdo Venâncio*

No mês de outubro de 2018, um grupo de cotonicultores brasileiros esteve na Turquia e na China com o intuito de abrir mais espaço para a fibra nacional. A viagem, chamada de Missão Vendedores e organizada pela Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), foi bastante oportuna pois ambos os países estão entre os principais nomes globais de consumidores e importadores de algodão. Considerando o aumento de produtividade das lavouras nacionais, pode-se dizer que tal conquista é necessária. Segundo levantamento da Abrapa, a safra recém-colhida somou 2,1 milhões de toneladas de pluma.

O volume é 28,8% maior do que o colhido na safra passada (2016-17), que alcançou mais de 1,63 milhão de toneladas, e 7,1% superior ao recorde anterior, registrado em 2011, quando se aproximou de 1,96 milhão de toneladas. O avanço deve-se, principalmente, ao crescimento de 26,4% em área plantada, com mais de 1,15 milhão de hectares cultivados, e à produtividade de 1,70 mil quilos de pluma por hectare. Embora inferior ao rendimento da safra anterior, quando a produtividade foi acima de 1,75 mil quilos por hectare, nem se compara ao que se colhia nos primeiros anos de plantio de algodão no cerrado. Isso foi há cerca de três décadas – então, colhia-se em torno de 675 quilos por hectare. “A produtividade é o espelho de um trabalho bem-feito, envolvendo a escolha das melhores variedades e tecnologias e o manejo correto da cultura, desenvolvida em condições favoráveis de clima e solo. É o que acontece no cerrado, região que concentra 97% da produção brasileira de algodão”, avalia Arlindo de Azevedo Moura, presidente da Abrapa (a partir de janeiro de 2019, Milton Garbugio, cotonicultor de Mato Grosso, é quem estará na presidência da entidade).

Não é um trabalho isolado. A cadeia do algodão tem hoje um dos mais altos níveis de organização entre todas as grandes culturas do agronegócio nacional. Graças à coordenação de ações, do campo às lojas, conseguiu dar saltos de produtividade e de vendas, conquistar mercados e melhorar a qualidade e a a há uma verdadeira trincheira, uma fenda com 2,80 metros de profundidade que expõe as condições daquelas terras e a extensão das raízes das plantas de algodão, que vão até o fundo daquela abertura. E poderiam ir além. “A parte de maior fertilidade do solo vai até 40 centímetros, depois disso os nutrientes são encontrados em menor quantidade, mas o suficiente para a raiz descer até mais do que os 2,80 metros”, explica Márcio Silveira, engenheiro agrônomo da SLC.

Em meados do mês de julho passado, mesmo com os cerca de 80 dias sem chuvas na região, apenas a parte de cima do solo estava seca – e não era preciso descer muito para se notar a umidade daquelas terras. “Dessa forma, mesmo em períodos mais desafiadores, quando os riscos de estresse hídrico são maiores, a raiz consegue buscar essa umidade na parte mais funda e levar água até a planta”, explica Silveira, que acrescenta: “Tanto é que nesse talhão estamos colhendo mais de 400 arrobas (6 mil quilos) por hectare, o que é uma produtividade excelente”. A condição era bem diferente há cerca de 20 anos, quando a fertilidade dessas mesmas terras chegava a, no máximo, 10 centímetros de profundidade. Foi preciso todo um processo de reconstrução do terreno, mantido ano a ano, para que chegasse a esse perfil produtivo.

Entre os principais fatores que contribuem para a formação desse perfil de solo estão a rotação de culturas; a utilização de plantas de cobertura; o plantio direto; e a aplicação de nutrientes de acordo com a necessidade das plantas – com níveis adequados dos mais exigidos pelo algodão, como potássio, cálcio, magnésio e enxofre. Dessa forma, mantém-se o manejo correto do solo, sempre bem corrigido, com alto teor de matéria orgânica. “A única coisa que fazemos fora desses procedimentos é, a cada quatro ou cinco anos, passar um subsolador apenas para quebrar alguma camada de solo que esteja compactada, sem revolver a terra”, comenta Silveira. Segundo ele, esse procedimento está ao alcance de qualquer produtor.

CERTIFICAÇÃO DE QUALIDADE

Se a escolha das variedades a serem plantadas e seu cultivo forem tão bem tratados como as terras produtivas da Fazenda Pamplona, são grandes as chances de o algodão apresentar alto padrão de qualidade. Essa condição é muito importante, pois é exatamente na lavoura que se encontra o melhor algodão, daí para a frente só vai perdendo qualidade. Por isso é fundamental que todos os processos, da colheita até a chegada da fibra na indústria, sejam feitos corretamente, o que pode ser assegurado pelos programas de certificação. Quase 80% de todo o algodão nacional é certificado.

No ano passado, o Brasil se tornou o maior fornecedor de algodão licenciado pela ONG suíça Better Cotton Initiative (BCI), respondendo por cerca de 30% de toda a pluma certificada pela instituição. O programa BCI, presente em 21 países, é referência internacional em licenciamento de algodão produzido de acordo com os parâmetros de sustentabilidade, um conceito baseado nos pilares ambiental, social e econômico. A certificação BCI avalia 87 itens referentes aos procedimentos de produção do algodão.

A partir de 2012, os cotonicultores brasileiros passaram a contar também com o programa de certificação Algodão Brasileiro Responsável (ABR), gerenciado pela Abrapa e conduzido no campo pelas associações estaduais. Após um ano de sua criação, o ABR já passava a atuar em benchmarking com a BCI, mas com uma diferença em relação ao programa da instituição suíça: a abrangência das avaliações, que englobam 179 itens.

Fazer ou não a certificação é uma decisão do produtor, assim como a escolha de qual programa seguir, mas se depender da Abrapa todo o algodão produzido no Brasil será certificado. “Muitas grandes redes de lojas e marcas de vestuário almejam comprar exclusivamente algodão com a certificação BCI nos próximos anos, como Adidas, Nike, H&M e C&A. No mercado nacional também há indústrias que já dão preferência ou restringem suas aquisições ao algodão chancelado por esses programas”, diz Moura. O motivo de o produtor entrar no processo já não é ganhar mais – e sim evitar que ganhe menos. Sem contar que em breve a certificação não será mais de um ou outro produto, mas da fazenda como um todo.

É para dar suporte a essa evolução que a Abrapa criou o Centro Brasileiro de Referência em Análise de Algodão, um laboratório com tecnologia de ponta que tem como objetivo dar credibilidade aos laudos de qualidade. “A estrutura e os procedimentos são baseados nas melhores práticas do mundo todo”, diz Edson Mizoguchi, gestor do Programa de Qualidade da entidade. Ele conta que o laboratório está em seu segundo ano de funcionamento e que precisa de quatro a cinco anos para se consolidar. A ideia é que seja de fato uma referência para as análises de qualidade no País.

Para manter o padrão sempre elevado e em sintonia com o que acontece nos países mais desenvolvidos nesse segmento, é preciso continuar investindo. Só o conjunto de sete caixas com amostras de algodão que servem de referência dentro do laboratório custa R$ 84 mil (12 mil cada uma). Elas devem ser substituídas todo ano. Esse material é fornecido pelo USDA, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. “Por conta desse trabalho de avaliação da qualidade, acabamos sendo o USDA do Brasil no algodão”, diz Mizoguchi. São analisadas diversas características das fibras, como uniformidade, resistência, índice de amarelamento e de maturidade, porcentagem de fibras curtas, percentual de impurezas, padrão de umidade, entre outras.

INCENTIVAR O CONSUMO INTERNO

Muito dessa preocupação com o padrão de qualidade do algodão brasileiro está relacionado às chances de conquistas no mercado externo. Já nesta safra o Brasil deve se equiparar à Austrália no ranking de exportadores da pluma, e possivelmente passa à frente na próxima, ficando sozinho na segunda posição, atrás apenas dos Estados Unidos (que respondem por 40% de todas as exportações de algodão). O algodão australiano é 100% irrigado, portanto a disponibilidade de água limita o crescimento da produção. Boa parte dos esforços do setor está voltada para estimular os avanços também no mercado interno.

      Mizoguchi, gestor do programa de qualidade da Abrapa

Um exemplo é o movimento “Sou de Algodão” iniciado pela Abrapa e que envolve e conecta diversos agentes da cadeia dessa fibra, desde os produtores até os influenciadores, que falam diretamente com o consumidor final. Entre uma ponta e outra estão confecções, tecelagens e malharias, fiações, varejo, estilistas, consultores de moda, universidades, personal stylists e associações dos setores de moda e têxtil. O projeto tem a comunicação como uma de suas principais ferramentas para se aproximar dos mais diversos públicos e gerar uma conscientização do valor do algodão, para que não seja visto apenas como commodity. O convencimento passa, além dos fatores agronômicos e da qualidade, pela garantia da sustentabilidade.

Dados para comprovar que o algodão brasileiro é sustentável não faltam. Só em termos de preservação de matas nativas, somadas as Reservas Legais (RL) e as Áreas de Proteção Permanente (APP), o índice vai além dos 20% exigidos pela legislação, segundo dados da Embrapa Territorial. A partir do final dos anos 1990 e o início dos anos 2000, esse bioma passou por um processo de transformação em termos de recuperação de solo e produtividade, por conta da entrada da agricultura mais tecnificada, incluindo aí o algodão, que avançou sobre áreas de pastagem degradadas.

No oeste da Bahia, outra região em que a cultura do algodão se tornou muito forte, dos 7,9 milhões de hectares registrados pelos agricultores inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), 4,1 milhões correspondem a áreas preservadas. Ou seja, RLs, APPs e vegetação excedente somam 52% daquela região, sendo a que mais preserva o meio ambiente naquele estado. Os dados são também da Embrapa Territorial.

É assim que o setor pretende estimular o consumo e aproveitar as oportunidades de crescimento em território nacional. A curto prazo, o cenário é de espera, pois a perspectiva de aumento nas vendas com as coleções de inverno foi frustrada pelo frio, que chegou mais tarde e sem a intensidade esperada. Por outro lado, o presidente da Abrapa acredita que em breve o algodão deve voltar a ganhar espaço na disputa com os materiais sintéticos. “Por isso precisamos continuar a incentivar o consumo, além de manter nossa agenda estratégica, que envolve políticas públicas, logística, educação e inovação”, diz Moura.

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A opinião do dirigente tem embasamento também na preferência de muitos consumidores por roupas produzidas com algodão certificado, como vem acontecendo, inclusive, no segmento de roupas íntimas, em que o conforto é uma das principais exigências. Sem contar as peças de moda praia e os mais tradicionais, como camisetas e jeans. Agora, é trabalhar para ver.

*O jornalista viajou a Cristalina (GO) e Brasília (DF) a convite da Abrapa

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