Um reino no deserto

Por Amauri Segalla É  impossível ler a monumental reportagem publicada recentemente pela revista


Edição 10 - 30.07.18

Por Amauri Segalla

É  impossível ler a monumental reportagem publicada recentemente pela revista americana The California Sunday Magazine sem se incomodar com os métodos do empresário Stewart Resnick. Uma frase é especialmente demolidora: “Resnick não tem uma única explicação decente para a sua fortuna”, escreveu Mark Arax, autor do texto e escritor premiado, que planeja lançar em breve um livro sobre o despertar agrícola da Califórnia. Arax acompanha a trajetória de Resnick há três décadas, mas foi só nos últimos anos que ele começou a se interessar de verdade pelo personagem. E isso por uma razão particular. A partir de 2013, as terras californianas enfrentaram uma das maiores secas da história, que destruiu lavouras inteiras e gerou perdas bilionárias. Não para Resnick, hoje o maior fazendeiro dos Estados Unidos, e que continuou a se deleitar com o verde de suas plantações – apesar da paisagem desértica das fazendas vizinhas. Como se deu o milagre? Resnick, diz o autor da reportagem, pode ter se apropriado de maneira ilegal de reservas de água que são públicas e, tão grave quanto, desviado o líquido precioso de outros fazendeiros.

Apesar da trajetória empresarial exuberante, Resnick sempre se manteve longe dos holofotes, o que é algo incomum para alguém da sua posição (especialmente nos Estados Unidos, onde os bilionários costumam flertar com o universo das celebridades). Nos últimos 20 anos, ele não deu mais do que meia dúzia de entrevistas, a maioria delas furtivas e que pouco contribuíram para tirá-lo das sombras. O jornalista Mark Arax foi uma exceção. Depois de a secretária de Resnick bater o telefone na cara do jornalista incontáveis vezes e de um sem-número de e-mails não respondidos, o rei da Califórnia finalmente concordou em receber o escritor. No primeiro encontro entre eles, Resnick explicou por que evitou a imprensa durante a maior parte da vida. “Quando você está ganhando dinheiro com o que eu faço, qual é o lado positivo da história?”, questionou. “Prefiro ser desconhecido.” A ironia é que Resnick tinha razão – ao dar a entrevista e se expor, ele permitiu que um lado pouco lisonjeiro de sua trajetória se tornasse público.

A reportagem escancarou os motivos que levaram o fazendeiro a lutar para se manter no anonimato. Resnick é fundador da companhia Wonderful, a gigantesca holding que detém marcas como as famosas águas Fiji, e que também é a maior produtora de amêndoas, pistaches e suco de romã dos Estados Unidos. Arax se refere a Resnick como um “devorador de terras”, e isso parece não ser exagero algum. Toda a sua produção fica em Lost Hills, uma pequena cidade de trabalhadores rurais no pacato condado de Kern, na Califórnia. É possível chegar lá pela Highway 99, a estrada mais letal dos Estados Unidos, e que corta boa parte do Vale de São Joaquim. Nas tardes quentes de verão, “faz 33 °C à sombra”, como descreveu o jornalista – ou mais, como fazem questão de lembrar os agricultores locais. Arax foi à região para descobrir como os fazendeiros mantêm vivos, durante a seca, não só pomares e vinhedos, mas também as plantações de amêndoas (79 mil acres), pistaches (73 mil acres) e tangerinas (13 mil). Resnick controla as terras mais produtivas, que parecem imunes às forças da natureza.

Lost Hills sofreu uma das mais dramáticas alterações da superfície dos Estados Unidos. Suas colinas foram achatadas por máquinas pesadas e os caudalosos rios que desciam a serra acabaram desviados para a formação de valas, diques, canais e represas. A neve derretida das montanhas foi cercada, os pântanos canalizados e boa parte dos 800 quilômetros quadrados do lago Tulare, onde cavalos selvagens saciavam a sede um século atrás, terminaram sendo drenados. No início, toda essa manobra foi feita a fim de obter trigo e depois carne, leite, passas, algodão e nozes. Durante um tempo, ela foi suficiente para atender à produção dos fazendeiros estabelecidos naquelas terras há várias gerações. A chegada de Resnick, que trouxe o seu apetite insaciável, mudou tudo.

Ele começou a produzir em escalas inimagináveis, e para isso precisava de quantidades cada vez maiores de água. Como a região é rica em bancos de água subterrâneos, Resnick assinou uma carta de intenções com as autoridades municipais e estaduais para explorá-los. Sentindo-se livre para pegar o que encontrasse pela frente, ele começou a construir espécies de oleodutos por toda a região – e a retirar água descontroladamente, inclusive de reservatórios subterrâneos que deveriam ser usados por fazendas vizinhas, segundo o que regia o acordo feito com os entes públicos. Resultado: sobrava água para Resnick na mesma medida em que faltava para os outros.

Na reportagem publicada pela California Sunday Magazine, o jornalista Mark Arax revela as delicadas relações por trás desse processo. A Wonderful, a empresa de Stewart Resnick, obtém os seus lucros com as árvores que são mantidas verdes pela Autoridade de Banco de Água de Kern. Essa instituição, que tecnicamente é uma agência pública, é controlada pela Paramount Farming Corporation, subsidiária da Roll Global, companhia que pertence ao bilionário Resnick. Para simplificar: de certa forma, ele é dono da agência que deveria fiscalizá-lo. A questão foi parar na Justiça e está longe de ser resolvida.

Todos esses artifícios explicam por que Resnick é um devorador de terras. Como ele detém o controle da água, vital para o desenvolvimento das lavouras, só suas fazendas continuam fartamente produtivas em tempos de seca pesada, como a que varreu a Califórnia nos últimos anos. Sem condições de competir, alguns fazendeiros são obrigados a vender áreas imensas – e não é difícil imaginar quem está de prontidão para comprá-las. Resnick, obviamente.

A trajetória de Resnick é espetacular. Ele não nasceu no condado de Kern. Nem mesmo cresceu na costa oeste, e sim do outro lado do país, em Nova Jersey, e nunca dirigiu um trator ou regou uma planta sequer. Sua primeira empresa nasceu quando estudava direito na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla). Nessa época, pagou US$ 300 por uma máquina para limpar o chão da universidade, e o serviço era tão bem feito que o jovem aluno acabou sendo contratado por diversos estabelecimentos comerciais, como farmácias e pizzarias. O negócio prosperou. Quando se formou, em 1960, já estava levando para casa US$ 40 mil por ano, algo como US$ 320 mil atuais. Pouco depois, vendeu a empresa por US$ 2,5 milhões e partiu para outro ramo. Durante suas faxinas, notou que os prédios que limpava tinham problemas de segurança. Resolveu entrar no ramo, oferecendo vigias para os edifícios. Mais tarde, ampliaria o negócio com a criação de uma companhia de alarmes. Em poucos meses, dominava metade desse mercado em Los Angeles.

Sua primeira investida no setor agrícola foi no fim dos anos 1970, porque um amigo ofereceu terras em um lugar distante que pareciam bem abaixo do preço. Era em Lost Hills. Hoje, aos 81 anos, nem mesmo Resnick consegue calcular sua fortuna e o tamanho de suas propriedades. Na última vez em que checou, descobriu possuir algo como 180 mil acres de toda a Califórnia, o equivalente a 727 quilômetros quadrados – ou metade de uma cidade do tamanho de São Paulo. Resnick irriga 121 mil desses acres, o que faz dele o maior consumidor de água do Ocidente. Outro dado espantoso: o que ele usa para irrigar suas fazendas durante um ano seria suficiente para abastecer a cidade de São Francisco por uma década.

A Wonderful, dona de receitas anuais estimadas em US$ 4,5 bilhões, não seria o que é sem uma figura fundamental: Lynda, a mulher de Resnick, que se autointitula a “Rainha da Romã”. Considerada um gênio de marketing, ela abandonou a faculdade aos 19 anos para abrir sua própria agência de publicidade. Resnick a contratou quando ele ainda tinha uma empresa de limpeza, e a química entre os dois foi imediata, tanto no amor quanto nos negócios. Agora, ela é vice-presidente e coproprietária da companhia, mas sua grande contribuição foi espalhar por todos os Estados Unidos, e para boa parte do mundo, o mito de que romãs combatem males como o câncer e retardam o envelhecimento.

A marca POM Wonderful está presente nos cinco continentes e fez sucesso com um slogan que a associa ao “elixir da vida”. Tudo obra de Lynda, que usou uma estratégia bem conhecida para divulgar o produto: aproximá-lo de celebridades globais. Lotes do suco POM são sempre enviados para pessoas como o ator Leonardo DiCaprio, a apresentadora Oprah Winfrey e o cantor Bono Vox, e vez ou outra um deles se deixa fotografar consumindo a romã. Quando isso acontece, as vendas disparam, e Lynda reforça as remessas para novas celebridades. Ela faz isso em todas as edições do Oscar, distribuindo o suco aos presentes ilustres. A estratégia tem funcionado. Quase metade de todos os americanos compra um de seus produtos, incluindo laranjas, suco POM Wonderful e Fiji Water.

Recentemente, a empresa foi obrigada pela Comissão Federal de Comércio a tirar do ar uma campanha polêmica. A entidade ordenou que os Resnick parassem de reivindicar que a bebida curava doenças cardíacas e disfunção erétil, algo sem nenhuma comprovação científica. Estima-se que a empresa já tenha gastado mais de US$ 30 milhões para bancar estudos – e influenciar as análises de cientistas de aluguel – que comprovassem a eficácia milagrosa da romã. Para cada investida, porém, há um contragolpe das autoridades, que estão atentas às malandragens da família Resnick. O próprio Stewart Resnick garante que os sucos de romã o mantêm saudável mesmo depois do diagnóstico de um câncer de próstata.

A era de ouro da Wonderful e do casal Resnick pode estar com os dias contados. O estado da Califórnia promete tornar mais duras as leis que regulam o uso da água. A ideia é restringir o acesso dos fazendeiros a reservatórios subterrâneos e proibir o bombeamento de água de um aquífero para outro. Quando isso acontecer, mais de 1 milhão de acres de terras cultiváveis ​​do Vale de São Joaquim poderão ser afetados, e é pouco provável que a Wonderful resista às mudanças. Mesmo depois que esse dia chegar, Resnick continuará por muito tempo sendo lembrado como o homem que encontrou água no deserto.

 

TAGS: Califórnia, Stewart Resnick, Wonderful