O derradeiro projeto de Randon

Por Irineu Guarnier Filho, de Caxias do Sul (RS) Encerrou-se na noite do sábado passado, dia 3 de m


Edição 4 - 04.03.18

Por Irineu Guarnier Filho, de Caxias do Sul (RS)

Encerrou-se na noite do sábado passado, dia 3 de março, uma das mais marcantes trajetórias empreendedoras do País. Raul Anselmo Randon, o empresário cujo sobrenome virou sinônimo de carretas rodoviáarias e que construiu um dos principais grupos industriais  do sul do Brasil,  morreu aos 88 anos, após três meses de internação no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. As causas da morte não foram divulgadas. Catarinense de nascimento, Randon foi sepultado na cidade gaúcha de Caxias do Sul, de onde comandou seus negócios, inclusive as bem sucedidas investidas no agronegócio, que abraçou nos últimos anos como produtor de maçãs, azeites, queijos e vinhos.

Em sua edição 04, no ano passado, Plant Project publicou reportagem mostrando como o projeto agroindustrial de Randon tornou-se referência de qualidade, resultando em produtos premium, com maior valor agregado. Confira a seguir:

Aos 87 anos, o industrial Raul Anselmo Randon cumpre, prazerosamente, uma rotina diária de trabalho que começa às 9h – quando chega à sede da holding que controla o conglomerado de empresas do setor metalmecânico com seu sobrenome, no bairro Interlagos, em Caxias do Sul – e se estende até pouco depois das 17h, hora em que retorna ao convívio da esposa, Nilva, dos filhos e netos. Mas é a partir de quinta-feira que o premiado empreendedor da indústria metalúrgica brasileira se sente mais feliz. Nesse dia, Randon percorre mais de 150 quilômetros através da verdejante Serra Gaúcha para chegar a Vacaria, principal município na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, onde está a sede do braço agropecuário do Grupo Randon, a Rasip Agro Pastoril S/A, empresa dedicada à produção de maçãs, uvas viníferas, azeitonas, suínos e lácteos, entre outros produtos.

Na tranquilidade luminosa dos Campos de Cima da Serra, a mil metros de altitude, cercado por araucárias e lavouras de soja e trigo, o industrial (que começou sua carreira com 14 anos, trabalhando com o pai, Abramo, numa pequena ferraria familiar, e, depois, com o irmão mais velho, Hercílio, numa oficina mecânica) volta a ser o menino que ajudava a mãe, Elisabetha, a ordenhar vacas na colônia italiana do Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas do século 20. Em meio aos pomares de macieiras, oliveiras e vinhedos da Rasip, que visita semanalmente, ou conferindo a colheita de soja, milho ou trigo em sua propriedade particular com cerca de 5 mil hectares, o catarinense de Rio Bonito sente-se tão à vontade no ambiente agropastoril quanto entre forjas incandescentes e linhas de montagem de equipamentos rodoviários.Mas que ninguém se engane: a produção de maçãs premium, dos vinhos RAR (elaborados pela vinícola Miolo, de Bento Gonçalves), de azeite ou de queijo do tipo grana padano – menina dos olhos do “produtor rural” Raul Randon – não são hobbies de final de semana do empresário octogenário, com mais tempo livre desde que transferiu a gestão executiva de sua holding para executivos profissionais. São atividades empresariais de grande escala, muito bem planejadas e executadas – e, principalmente, rentáveis. “Até hoje, só não ganhei dinheiro com o vinho”, confessa, timidamente, o “Homem de Aço” – um dos mais de cem títulos honoríficos e distinções com os quais foi homenageado ao longo de uma extensa carreira de sucesso (neste caso, pela Associação do Aço do Rio Grande do Sul, em 1977).

O reencontro de Randon com a agricultura, que esteve na base da economia colonial da Serra Gaúcha no início da imigração italiana, na segunda metade do século 19, se deu na década de 1970. Foi por essa época que, graças aos incentivos fiscais concedidos a empreendedores privados, implantou, juntamente com o irmão Hercílio e outros sócios, o primeiro projeto de reflorestamento, em Encruzilhada do Sul, com 20 mil pés de noz- pecã e citros. Naquela época, praticamente toda a maçã consumida no Brasil era importada – principalmente da Argentina. Randon viu na pomicultura uma promissora oportunidade de negócio. “Maçã era uma fruta tão rara, e cara, que uma comadre levava de presente para a outra nas visitas”, relembra. Como já conhecia bem a fria e alta região dos Campos de Cima da Serra desde os tempos em que “dava uns tirinhos de espingarda por lá”, durante caçadas de perdiz com os amigos, foi em Vacaria que decidiu implantar o primeiro pomar de macieiras da Rasip, em uma área de 240 hectares. O negócio deu tão certo que logo a Rasip viria a se transformar numa das principais empresas exportadoras de maçãs do país – contribuindo para que a maçã brasileira se convertesse em uma fruta de consumo popular.

Animado com as possibilidades de rentabilidade também no agronegócio, Randon decidiu investir em outra atividade, carregada de nostalgia familiar: a produção leiteira (sua mãe comercializava “o leite de duas vaquinhas” de porta em porta, em Caxias do Sul, e o que não vendia transformava em queijo caseiro). Adquiriu animais de um amigo fazendeiro, que estava desgostoso com o negócio deficitário, e decidiu que iria elaborar queijo, produto “bem mais rentável do que o leite”. Mas, em se tratando de Raul Randon, que sempre primou pela excelência em tudo o que faz, o “seu” queijo não poderia ser qualquer queijo. Optou, por isso, em elaborar, com tecnologia europeia, o similar mais perfeito possível do milenar queijo italiano grana padano. Para isso, tratou, primeiramente, de melhorar o seu plantel de vacas leiteiras holandesas, importando 65 exemplares de alta linhagem dos Estados Unidos. “O desembarque das vacas de um Boeing da Varig, no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, foi um acontecimento muito noticiado no início dos anos 1980”, ri o empresário. Logo, Randon se tornaria conhecido por chefs e gourmets de todo o País mais como produtor de queijos nobres (ele também elabora o do tipo parmesão) do que como fabricante de reboques, suspensões ou freios para caminhões.

O MAIOR FONDUE DO MUNDO

A história do empresário Raul Randon é marcada por dois grandes incêndios, que o obrigaram a recomeçar praticamente do zero em duas atividades diferentes. Nos anos 1950, a oficina de motores em que trabalhava com o irmão mais velho pegou fogo – justamente durante a procissão de Nossa Senhora de Caravaggio, santa de sua devoção. O abatimento da família deu lugar a trabalhos redobrados para reerguer o negócio. “Nossa Senhora de Caravaggio até nos fez um bem, porque, depois do incêndio, construímos uma oficina ainda maior”, comenta, bem-humorado.

Com a mesma resignação de quem, com o perdão do trocadilho, sabe que não adianta chorar pelo leite derramado, não faz muito tempo viu seu laticínio ser destruído por outro incêndio. O fogo consumiu 10 mil peças (de 34 quilos cada uma) de queijo tipo grana com 18 meses de maturação. “Foi o maior fondue do mundo”, brinca Randon, não sem um suspiro melancólico. Funcionários da Rasip e familiares, sabendo de sua paixão pelos queijos pacientemente estocados, demoraram pelo menos três horas para lhe dar a notícia, temerosos por sua saúde.

Que nada. Superado o primeiro impacto, imediatamente Randon tratou de recuperar a parte das instalações que não havia sido totalmente destruída no sinistro e reiniciou a elaboração de queijos (parte da produção, estocada em outro local, não chegou a ser atingida). De novo, como no episódio do incêndio da oficina familiar, o empresário vingou-se das chamas construindo uma unidade ainda maior: de 1,6 mil metros quadrados, a queijaria passou para 6,5 mil metros quadrados. “A nova fábrica tem assepsia melhor do que a de muito hospital de alto padrão”, orgulha-se Randon.

O vinho entrou na vida do empresário quase por acaso. Percebendo que as uvas viníferas eram disputadas a peso de ouro pelas vinícolas da Serra Gaúcha, em 2004 decidiu investir também em viticultura. Dois anos depois, por ocasião da comemoração das bodas de ouro do casal Randon, resolveu homenagear a esposa Nilva com um vinho elaborado especialmente para a família pela vinícola Miolo. O blend de Cabernet Sauvignon e Merlot RAR (iniciais do seu nome completo), assinado pelo competente enólogo Adriano Miolo, foi bastante elogiado.

Randon, que, como bom descendente de italianos, aprecia uma tacinha de vinho (“Não todos os dias”, esclarece), animou-se ainda mais com a vitivinicultura quando ouviu do festejado flying winemaker francês Michel Rolland que o terroir da região era extraordinário para o cultivo da casta merlot. Assim, em vez de simplesmente entregar matéria-prima para a Miolo, tornou-se sócio da vinícola – com a qual elabora atualmente uma linha de dez vinhos, que inclui tintos, brancos e espumantes. São cem mil garrafas por ano. O seu preferido é o RAR pinot noir – reconhecido por especialistas como um dos melhores do País elaborados com esta caprichosa casta. Com isso, desistiu de construir uma “cantina”, como é chamada, na Serra Gaúcha, a ala industrial das vinícolas (ultimamente, porém, essa ideia voltou a lhe roubar algumas horas de sono, admite). “Uma atividade puxa a outra”, comenta, com simplicidade o “vinhateiro” Randon – que, na safra 2007, não fez vinhos. “As uvas não estavam boas”, explica. A excelência, como sempre, em primeiro lugar.

Perto dos 90 anos, cuidadoso com a saúde a ponto de se submeter a uma dieta para perder peso (um enorme sacrifício para quem, como ele, tem na boa mesa em companhia de familiares e amigos um de seus maiores prazeres), e obediente à filha médica que lhe restringiu o consumo de sal, o empreendedor Raul Randon continua inquieto. Viaja com frequência ao exterior, sempre de olho em novos projetos. “Nunca viajo só a passeio”, comenta. Na sede do Grupo Randon, cada vez que o chefe retorna de uma dessas incursões pelo mundo, os executivos sabem que novos negócios estão por vir. A cabeça fervilha de ideias para novos projetos. Em breve, pretende lançar um presunto nobre do tipo Parma. Um sorvete, ao estilo italiano, também está nos seus planos ainda para este ano.

Aposentadoria é uma palavra que não existe no dicionário de Raul Anselmo Randon. “Nunca pensei em parar de trabalhar”, afirma, enfático. E acrescenta: “Se eu não vier todos os dias à empresa, aonde vou ir? Quer um conselho? Trabalhe sempre, mesmo que de graça. Pijama não faz bem a ninguém”.

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