João Tavares resgata o cacau na Bahia

Por Lívia Andrade Não há, no Sul da Bahia, quem não conheça João Tavares. Filho e neto de gran


Edição 6 - 27.02.18

Por Lívia Andrade

Não há, no Sul da Bahia, quem não conheça João Tavares. Filho e neto de grandes cacauicultores, o agricultor ganhou fama por sua ousadia e por resgatar uma tradição na região que concentra 80% da produção de cacau do estado, o maior produtor de amêndoas do Brasil, com uma participação de 55%. Por conta do trabalho dele, a Bahia voltou a frequentar os principais salões internacionais e a ser associada a cacau de qualidade. Aconteceu no ano passado, durante o International Chocolate Awards, principal competição de chocolates premium do mundo. A marca catarinense Nugali, da cidade de Pomerode (SC), ganhou medalha de bronze com a barra de chocolate Serra do Conduru 80% cacau, feita com a matéria-prima de Tavares. “Este prêmio é tão importante porque é na categoria de chocolates puros. Com uma amêndoa inferior não conseguiríamos fazer um produto desse nível”, diz Maitê Lang, diretora comercial da Nugali.

O chocolate premiado da Mugali

O caminho até a consagração demandou persistência. Quando Tavares resolveu apostar na qualidade, ninguém no Brasil remunerava a mais por isso. “Na verdade, fui para o cacau fino por necessidade. Com a inserção criminosa da vassoura-de-bruxa em 1989, passamos a colher um quarto do que colhíamos”, conta o empresário, que tem 340 hectares de cacau na fazenda Leolinda, em Uruçuca (BA). “Eu só tinha uma forma de viabilizar a propriedade: agregando valor. Eu poderia fazer pela qualidade, que é algo que outros países já vinham fazendo, ou verticalizar com a produção de chocolate”, explica.

O baiano escolheu buscar um cacau de excelência, decisão recebida com desconfiança até mesmo por seu pai, Romildo Luiz Fernandes. “Rapaz, com tanta coisa para ganhar dinheiro, você foi escolher o cacau? Seu pai tem 40 anos nessa estrada e nunca viu ninguém pagar um real a mais por qualidade”, dizia o patriarca, que faleceu em 2012. Mesmo sem acreditar, Fernandes apoiava o filho, que começou uma série de ensaios experimentais. O objetivo era diminuir a adstringência, o amargor e acidez para perceber as notas das amêndoas e atingir a qualidade desejada. Deu certo, mas a trajetória para a excelência passa pelo cumprimento de um emaranhado de detalhes. “O flavor do cacau é composto pela variedade genética, os chamados aromas de constituição. Depois vem os aromas de fermentação e, por último, os aromas provenientes do trabalho do chocolateiro, quando ele faz a torra das amêndoas e a conchagem do chocolate”, explica Tavares.Tudo começa com a escolha das variedades genéticas. Tavares, que tem uma produção anual de 150 toneladas, trabalha com três materiais: o Catongo, um cacau raro com amêndoas claras e notas de noz; o Scavinia, um cruzamento do Forasteiro com o Trinitário, cujo gosto remete à banana passa; e o Pará, que tem pouca adstringência e acidez e sabor predominante de chocolate. Depois vem a parte da colheita. “Meu trabalho é eliminar os defeitos do cacau através da seleção dos frutos”, conta o agricultor. O primeiro critério é a sanidade. Frutos perfurados
por periquitos ou roedores são descartados. O mesmo acontece com aqueles infectados por doenças, como a
vassoura-de-bruxa. O segundo parâmetro é a maturação: frutos verdes, verdolengos ou muito maduros são rejeitados.

A separação continua no momento de abrir o fruto. “Fazemos uma abertura cuidadosa para não danificar o cacau. Se identificamos doença, defeito ou amêndoa germinando, que é a característica do cacau sobrepassado, nós descartamos”, diz Tavares. Depois dessa rigorosa triagem, as amêndoas seguem para a fermentação, que pode durar de cinco a sete dias. A etapa é crucial para elas soltarem os aromas e atingirem a coloração desejada, por isso é monitorada de perto. “Dependendo da necessidade, a gente faz revolvimentos mais intensos, mais ou menos frequentes para introduzir oxigênio na massa e assim acelerar ou retardar a fermentação dos grãos”, explica Tavares.

O zelo com essa fase levou Tavares a desenvolver uma tecnologia própria. “Eu uso umas dornas cilíndricas que são únicas no mundo, parecem as de vinho e dão uma homogeneidade maior na temperatura e, consequentemente, na quantidade de amêndoas perfeitamente fermentadas”, diz o empresário. A invenção resolveu a insatisfação de Tavares com o modelo antigo – tanques retangulares que não permitiam uma fermentação uniforme nos cantos. A secagem vem na sequência e também tem inovações do produtor. Ele pegou o conceito dos terreiros suspensos de café e adaptou para o cacau. “Fizemos aberturas laterais para ventilar e agora estou tentando automatizar”, conta. A seca arejada impede que as amêndoas mofem, o que comprometeria a qualidade.Em 2010, o capricho de Tavares rendeu ao Brasil a primeira premiação internacional em cacau fino. O produtor venceu o Cocoa of Excellence América do Sul, competição anual que acontece no Salão do Chocolate, em Paris. O resultado abalou os críticos do setor, que não compreendiam como Colômbia, Peru e Venezuela – países com tradição na produção de cacau gourmet – tinham sido desbancados por um produtor brasileiro. “O pessoal de fora ficou incomodado, os consultores, chocolateiros e vendedores de amêndoas de cacau acharam que tinha sido um erro”, diz Tavares. Aconteceu até um episódio envolvendo um jovem produtor baiano, que tem se destacado na produção de chocolates finos com a marca Amma. “Teve um bate-boca, o pessoal estava questionando, não entendia como o Brasil conseguia fazer amêndoas de qualidade, e o Diego Badaró respondeu: ‘Vocês dizem isso por não conhecer o Brasil, venham conhecer’”, conta Tavares. A desconfiança foi por água abaixo no ano seguinte, quando Tavares ganhou novamente o Cocoa of Excellence e se tornou o único produtor a conquistar o prêmio por dois anos consecutivos. No entanto, o reconhecimento mais significativo daquele ano (2011) veio das palavras de seu pai. “Tenho que dar a mão à palmatória, seu cacau é realmente especial”, disse Fernandes.

A propriedade de Tavares está situada no Sul da Bahia, região prestes a ser reconhecida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) como Indicação de Procedência (IP), registro que chancelará, a partir de dados históricos, a fama da localidade na produção de cacau. O sistema de plantio predominante ali é o Cabruca, em que o cacau é cultivado debaixo da Mata Atlântica. “Na minha visão, esse cacau de mata é mais adocicado, porque leva mais tempo no seu desenvolvimento, mas não há nada comprovado cientificamente”, diz o empresário. Uma das maiores vantagens do Cabruca em relação ao cacau plantado a pleno sol é a resiliência. “Sem sombra, você produz mais durante dez anos, mas se tiver seca o cacau morre e replantar é caro”, diz Durval Libânio Netto Mello, presidente do Instituto Cabruca, entidade que tem por objetivo valorizar e estimular o sistema de plantio homônimo.

Antes da vassoura-de bruxa, o Brasil era o maior produtor mundial de cacau e chegou a colher 450 mil toneladas no início da década de 1980. Hoje o País é o sexto colocado, com uma produção anual de 150 mil toneladas. Segundo Mello, passa de 100 o número de agricultores que têm focado no cultivo de amêndoas premium no Sul da Bahia. Até mesmo o Centro de Inovação do Cacau (CIC) da região tem centrado seus trabalhos no aumento da qualidade média. O objetivo é produzir o efeito João Tavares. “O que ele está fazendo não é replicável para todo mundo,
a maioria não tem tempo, paciência e recurso para fazer o que ele faz. Mas se as pessoas copiarem um décimo, a gente melhora a qualidade do cacau”, diz Eduardo Bastos, diretor-executivo da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC).

PARCERIAS DE OURO

Ao optar por focar sua atenção na produção de uma amêndoa de excelência, João Tavares sabia que precisaria de clientes de primeira. “Uma amêndoa ruim só vai dar chocolate ruim. Mas é possível fazer um chocolate ruim de uma amêndoa perfeita, se a pessoa não souber processar, torrar demais”, diz o empresário, que só vende para profissionais que valorizam a sua matéria-prima, que chega a custar três vezes o valor do cacau commodity, cuja arroba gira em torno de R$ 100.

Seu rol de clientes tem nomes de peso como o estreladíssimo chef francês Alain Ducasse, proprietário da Le Chocolat, a meca do chocolate na França. “Ele compra com exclusividade as amêndoas de Catongo Branco, um cacau raríssimo, que tem notas de noz”, diz Tavares. Outro nome de prestígio é o belga Pierre Marcolini, que usa a matéria-prima da fazenda Leolinda na fabricação de seus chocolates de luxo, a mesma pegada da carioca Samantha Aquim, outra cliente de Tavares. “Digo sempre que ela transforma as amêndoas de chocolate numa joia assinada por Oscar Niemeyer”, fala orgulhoso o empresário, referindo-se a um chocolate cuja forma foi desenhada pelo arquiteto. O produto é vendido em caixas numeradas e limitadas.

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