Edição 3 - 25.11.17
Por Bill Addison, de Nova Iorque (EUA)*
Sua refeição no restaurante Blue Hill at Stone Barns não começa com um menu. Começa com uma conversa. Você perceberá um pequeno livreto próximo aos talheres, que tampouco revela muito sobre o que a cozinha está preparando – o livreto lista as semanas do ano e os correspondentes alimentos que devem estar em época de colheita. Isto não importa muito. Seu atendente deve chegar e calorosamente fazer perguntas como: “Quão ousado você está se sentindo nesta noite?”, “A que horas você gostaria de terminar seu jantar?” Esta última pergunta é muito importante: caso você não tenha hora para terminar, a cozinha terá todo o prazer em lhe servir uma refeição que levará mais de cinco horas. Logo, uma procissão de legumes chegará a você, verdadeiros tesouros terrestres com sabores tão vivos que chegam a confundir, e os minutos à mesa passarão voando como uma brisa em um sonho. Uma brisa deliciosa, caprichosa e extraordinária.
Existem muitos restaurantes como o Blue Hill at Stone Barns, que criam experiências inesquecíveis para seus clientes. Porém, este, instalado em uma fazenda em funcionamento escondida entre as colinas, 48 km ao norte de Manhattan, é o melhor restaurante nos Estados Unidos porque é mais do que um simples restaurante. Sob a direção de Dan Barber, seu chef executivo, coproprietário e filósofo-chefe, é um experimento, um laboratório, um centro de aprendizado e um modelo para o futuro da agricultura.
Stone Barns criou uma reputação em hospitalidade por permitir que seus clientes possam optar por se envolver muito (ou pouco, conforme desejarem) nos aspectos didáticos da produção local. Porém, essa força motriz – com a motivação de quem não se contenta com menos do que simplesmente revolucionar toda a cadeia alimentar dos EUA – é o que move Barber, sua equipe, sua cozinha e sua incansável pesquisa sobre métodos de cultivo. Ela está impregnada em cada incrível prato de comida que sai da cozinha reluzente. Sempre deixo Stone Barns alegre e satisfeito, cheio de uma inspiração igual à que teria após ver um show arrebatador ou terminar um grande livro.
Como os artistas e artesãos conseguem afetar a cultura em uma forma mais profunda? Eles se tornam mestres em seu meio escolhido, e então rumam para além da sabedoria estabelecida em direção a algo novo e imediato. Eles expressam as coisas da vida em maneiras audaciosas que mexem com a nossa imaginação, provocam reações e emoções. Miles Davis inaugurou novas vistas para o jazz através de sua incansável experimentação com outros estilos musicais modernos. Allen Ginsberg escreveu Uivo em um dialeto nascido das lancinantes insuficiências da sintaxe poética tradicional. Zaha Hadid desafiou os sisudos críticos de arquitetura ao projetar prédios ao redor do mundo que lançaram além as nossas ideias sobre fluidez estrutural e geometria.
Barber não fica atrás em sua personalidade revolucionária, confrontando desafios criativos amplos a partir da perspectiva de um cozinheiro, escritor e estudioso, em um momento na história em que o alimento e sua relação com… bem, com tudo, se tornou uma parte permanente de nossa cultura.
Ele recebeu os pastos mais verdes como o quartel de seu golpe culinário. O restaurante – originalmente uma filial do restaurante de Barber em Manhattan, o Blue Hill, um adorável local que logo foi ofuscado por seu “irmão” mais novo mais ao norte do estado – é a peça central do Stone Barns Center for Food and Agriculture [Centro Stone Barns para Alimentação e Agricultura], uma organização sem fins lucrativos dedicada a atividades de inovação e instrução relacionadas ao cultivo.
Durante os 12 anos que se passaram desde o surgimento do restaurante, Barber se tornou um profeta do solo, trabalhando obsessivamente não apenas com produtores regionais, mas também com criadores de animais e plantadores de legumes, todos eles igualmente devotados à sustentabilidade, preservação do solo e à busca de um sabor superior. Essa abordagem literalmente “a partir do solo” compõe cada aspecto da carreira de Barber. Seu maravilhoso livro de 2015, The Third Plate, detalha sua busca por produtores que compartilham sua visão para o futuro dos alimentos nos EUA. No restaurante Blue Hill de Manhattan, as experimentações de Barber com a eliminação de resíduos alimentícios resultou em um impressionante e fabuloso “cheeseburger de bacon e polpa vegetal” servido no bar. (Barber é o coproprietário de ambos os restaurantes Blue Hill, nomeados a partir de uma fazenda familiar em Massachusetts, com seu irmão David e a cunhada Laureen.)
É possível entender o caráter da operação de Barber lendo os seus livros, assistindo suas TED Talks e passando por seu estabelecimento em Greenwich Village. Porém, para a imersão mais profunda e prazerosa em seu mundo, você precisa fazer a viagem até Stone Barns. A viagem em si cria o ambiente de antecipação: seja de trem ou de carro, a cidade vai ficando para trás, quilômetro após quilômetro, até chegar à longa e sinuosa estrada da fazenda, onde a viçosa natureza ao redor sintoniza sua mente e sentidos para o banquete que o espera.A decisão de Barber de adaptar um estilo sem menus para o restaurante veio de uma necessidade: o constante malabarismo de ingredientes recém-colhidos tornava frustrante, para ele, a tarefa de planejar menus de degustação, mesmo aqueles que eram trocados diariamente. E, com tantos cortes usáveis de carne disponíveis de um só animal, ele não quis, digamos, matar 25 cordeiros por semana para servir costeletas para todos os clientes. “O público parecia cada vez mais interessado em tratar o restaurante não apenas como um retiro, mas também como um lugar de conexão”, ele me disse. “Essa conexão começa antes de o primeiro prato ser servido, e se estende além.” Em qualquer noite em Stone Barns, não há duas mesas que experimentarão a mesma refeição.
Com a conversa que é iniciada logo quando você se senta, a equipe da linha de frente do restaurante – um time entusiasmado e simpático que conhece tão bem os usos culinários de folhas de tabaco quanto as harmonizações de vinho e chá – estabelece uma sensação real de conexão entre o restaurante e o cliente. Os atendentes mantêm suas antenas ligadas em todos os momentos, lendo o humor geral da mesa. Se você está se atrapalhando com a doutrina, de prontidão eles lhe presentearão com detalhes e dicas sobre cada pedaço de comida em sua mesa; se eles percebem que você está levemente distraído, rapidamente pegarão mais leve com toda a retórica culinária. O mais importante é que eles proporcionarão a confiança que permite que Barber possa fazer as coisas ao seu modo.
No mês de setembro passado, por exemplo, o jantar começou com uma das poucas constantes em Stone Barns: uma apresentação de “legumes do campo” (pequeninos e redondos tomates; as menores cenouras e nabos; crocantes e emaranhados corações de alface) servidos crus, em espetos e brilhando com uma levíssima camada de vinagrete. O desenrolar da refeição para os recém-chegados ao restaurante pode parecer um pouco desajeitado ou pretensioso — eu me lembro do meu próprio ceticismo na primeira vez. Mas, quando você começa a comer, o efeito é quase espiritual. Raramente os alimentos que experimentamos têm um gosto que chega perto do mesmo que as joias servidas por Barber proporcionam.
Eu tentei reparar com certa atenção no que vinha a seguir, mas, finalmente, eu me deixei levar pela vibrante progressão do jantar. Houve uma série de petiscos maravilhosos: pequenos bulbos de couve–rábano a serem passados em pesto em conserva e molhos de mirtilo; pezinhos de galinha desossados, fritos e inflados para parecerem-se com chicharrones, dálias comestíveis crocantes, disfarçadas de arranjo floral central; minisanduíches de foie gras e chocolate; pastrami feito de coração de porco. Em seguida, pratos um pouco mais substanciais: uma “pizza” de beterraba em uma crosta comprida e crocante, uma versão caprichada de massa à bolonhesa feita de hastes de abobrinha. Um após o outro, por uma sucessão de várias horas com mais de três dúzias de pratos, tudo culminou em uma leva final de frutas de verão – algumas cruas, outras grelhadas, todas extraordinárias.
O ponto não é realmente ficar servindo pratos um atrás do outro, mas sim deixar as ondas de sabores e texturas quebrarem-se delicadamente sobre você. Comidas que saboreei reapareceram em minha memória por meses, flashes vívidos de um sonho particularmente comovente.
Se você demonstrar a inclinação para tanto, a equipe em algum momento da noite lhe escoltará para um prato ou dois em outro local – talvez a cozinha, ou o pátio, ou o famoso galpão de esterco, convertido em uma sala de jantar rural cercada por uma exuberante fantasia de flores. Nesse local, o baixo e contínuo calor de um tanque que faz a decomposição de compostos também opera como um forno para cozinhar pacotes bem apertados em papel-alumínio de legumes ou ovos.
Essas trocas de cenário são definitivamente meu aspecto preferido de jantar em Stone Barns: a abordagem de escolher sua própria aventura que a equipe encoraja e coordena ali, na hora. Por exemplo, nosso atendente arregalou os olhos quando eu de repente mencionei meu interesse no programa de pães do restaurante. Por anos, Barber vem trabalhando com agricultores e cientistas para desenvolver cepas de trigo que podem produzir colheitas rentáveis e sabores mais doces e complexos.
Logo eu e meus companheiros de mesa fomos convidados a nos levantar e ir em direção à padaria do restaurante, de onde o próprio Barber saiu. Ele nos guiou por amostras de três tipos diferentes de pão feitos de três trigos diferentes, discutindo seus sabores, texturas e suas variações em práticas de cultivo. Houve uma conversa sobre resistência a doenças e endosperma. O campeão da noite, um pão com cor de cacau com marcantes traços de melaço, é um tipo de pão que Barber chamou de “trigo integral 200%”. Esse pão é feito de uma farinha moída de um cultivar de trigo desenvolvido apenas para ele, chamado Barber II, mais uma quantidade igual de farelo puro de cepas similares. Barber falou sobre desejar que a padaria seja um local de inesgotável experimentação e inovação, onde os clientes também possam provar experimentos de pães que fracassaram como uma possibilidade de fazer comparações. Na realidade, eu experimentei apenas sucesso ali.
Entretanto, este não foi o fim de nosso leitmotif do trigo. Após nossa permanência temporária na padaria, pratos temáticos começaram a surgir em nossa refeição como pontos em uma narrativa: um frango que foi assado em um aperitivo de massa azeda apareceu, assim como pepinos em iogurte maltado e um gole de cerveja fabricada com grãos de rotação. Após concluirmos a próspera leva de frutas, em vez de petit fours, a cozinha mandou uma baguete de pão morno de chocolate, que nós irrefletidamente despedaçamos com as mãos – um final adequado, já que havíamos comido tanto de nossos jantares com as mãos. Para outro grupo, Barber poderia ter desenhado um roteiro comparável a partir de uma abóbora, ou tomates, ou leite, ou milho. Os ingredientes são seus personagens, agentes do prazer através dos quais podemos entender melhor não apenas a terra, mas as pessoas que cuidam e criam, e talvez nós mesmos.
Comer em Stone Barns é um investimento, seja em tempo e dinheiro: o menu “Pecking, Rooting, Grazing” atualmente custa US$ 239 por pessoa, uma quantia que, combinada a taxas, gorjeta e bebidas, pode facilmente chegar próxima a US$ 500. Eu tenho a ultrajante sorte de ter um trabalho que me manda escrever sobre os restaurantes mais extravagantes do país. Mas, pessoalmente, se eu precisasse guardar dinheiro por um ano para gastar em apenas uma refeição – uma refeição para celebrar, uma experiência para ficar marcada –, eu gastaria minhas reservas em um jantar em Stone Barns. (Ou talvez para um almoço de domingo; preciso admitir que concluir uma refeição de cinco horas à meia-noite pode ser cansativo.) A sensação de hora e local que Barber conjura através de sua comida é tão afirmativa quanto gratificante. Jantar aqui não apenas desafia nossas premissas sobre o que um restaurante pode e deve ser como também as eleva. Jantar aqui pode até mesmo mudar nossa visão do mundo.
*Conteúdo publicado originalmente no site eater.com, publicado sob licença de Vox Media, Inc.
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