Edição 3 - 20.11.17
Por Ocean Malandra, de Detroit (EUA)
O mundo alcançou um marco silencioso em 2008. Foi quando, pela primeira vez, a população urbana ultrapassou a rural – uma reviravolta única e importante na história da humanidade. Como alguém que cresceu no coração de uma cidade, sei por experiência própria que existem algumas facetas da vida urbana que não são muito cor-de-rosa, como a escassez de alimentos, que agora afeta quase 13% de todas as famílias nos Estados Unidos. Ser afastado da natureza e do acesso à comida verdadeira é uma das coisas que tornam o gueto tão desagradável. Quando as pessoas carecem de necessidades básicas como comida fresca no país mais rico do mundo – um país, a propósito, que gasta US$ 20 bilhões por ano em subsídios corporativos para combustíveis fósseis – é porque algo está definitivamente errado no design das comunidades.Por essa razão, quando vi a Michigan Urban Farming Initiative (MUFI) anunciar no final do ano passado que tinha acabado de lançar o que eles afirmam ser o primeiro bairro agrícola (AgriHood) do país, eu imediatamente contatei a organização sem fins lucrativos para descobrir mais sobre o projeto. Localizada no bairro de North End em Detroit, a organização incipiente possui uma lavoura urbana de 2 hectares, um pomar de 200 árvores, um jardim sensorial para crianças, está construindo um centro comunitário de três andares e já forneceu mais de 50 mil quilos em produtos frescos gratuitamente para mais de 2 mil famílias, a maioria delas de baixa renda.
O cultivo de alimentos em áreas urbanas não é novidade nos EUA, é claro. Durante a Segunda Guerra Mundial, um movimento chamado “Jardins da Vitória” – cultivados e administrados em espaços públicos, parques e terrenos baldios nas grandes cidades – conseguiu fornecer quase metade dos legumes frescos da nação. Quando a guerra terminou, a maioria deles foi fechada, pois estavam localizados em terras emprestadas, quer fosse pelo Estado, quer pela iniciativa privada.
Depois que os Jardins da Vitória desapareceram, a nação atravessou uma diminuição no número de hortas urbanas até o surgimento dos jardins comunitários em bairros de imigrantes latino-americanos e asiáticos de Nova Iorque e Los Angeles — antes de ser copiado em áreas mais modernas. Os jardins comunitários e as hortas caseiras têm crescido a todo vapor nos EUA. De acordo com um relatório recente da National Gardening Association, o cultivo de alimentos em zonas urbanas na América está no seu ponto mais alto em mais de uma década, com os jovens da geração millennials (geração Y) liderando o caminho.
Cerca de 35% das famílias nos EUA estão agora engajadas em alguma forma de produção de alimentos. Porém, a horticultura doméstica e a comunitária são limitadas pelo espaço e sofrem com a falta do tipo de planejamento e organização centralizados que as fazendas usam para produzir grandes quantidades de alimentos. Para que as cidades realmente comecem a produzir para consumo próprio, é preciso desenvolver modelos mais complexos e eficientes de produção urbana de alimentos. E é aí que o novo AgriHood de Detroit realmente brilha.
“Estamos produzindo muito por metro quadrado”, afirma Tyson Gersh, presidente, cofundador e gerente de fazenda do projeto. “Somos muito mais eficientes do que jardins comunitários e estamos usando hidropônicos para aumentar drasticamente nosso modelo de produção.” Para mim, o AgriHood de Detroit é único porque “posiciona a agricultura como a peça central de um desenvolvimento urbano de uso misto”. Em outras palavras, é o planejamento urbano que leva em conta o fato óbvio de que as pessoas precisam comer. E isso demorou muito tempo para ser percebido. “Basicamente,esta é uma estratégia de desenvolvimento residencial, com uma fazenda como o centro”, Gersh me diz. Pense nisso como um Central Park comestível, cercado por habitações.
Já faz algum tempo, numa outra América, o histórico North End de Detroit era o lar de famílias de classe média e alta. Agora é um retrato do declínio da cidade: lotes vagos abundam e há somente uma mercearia de verdade, onde qualquer produto pode ser encontrado, além de uma loja de bebidas. Para comprar alimentos recém–cultivados é preciso rodar vários quilômetros. O AgriHood mudaria isso completamente.
Mas, à medida que eu me animava com o projeto, um problema atravessou minha mente. Sendo de São Francisco, cidade onde quase nenhuma família de classe média permanece e os pobres dormem nas ruas, eu me perguntava se Gersh e sua equipe estavam preocupados com questões de gentrificação. O próprio Gersh diz que “vimos uma demanda esmagadora de pessoas que querem viver em função de nossa fazenda”. Então, comecei a querer saber sobre os moradores atuais de North End e o que eventualmente aconteceria a eles. “Essa é uma questão muito importante”, responde Gersh quando eu o confronto com minhas preocupações. “Especialmente porque mais de dois terços dos moradores atuais de North End são inquilinos e poderiam ser expulsos da região se os aluguéis aumentassem radicalmente.”
Enquanto Gersh gostaria de ver a cidade implementar uma política de controle de aluguel para proteger os moradores, algo que está em andamento na área central de Detroit, o MUFI também trabalha em soluções no nível local. Como parte do plano residencial do AgriHood, a organização está construindo uma solução de habitação a preços acessíveis, feita de contêineres e materiais doados pela General Motors. As “casas pequenas” de dois cômodos e 20,72 metros quadrados serão projetadas para serem economicamente acessíveis e usadas para repovoar os lotes vagos do bairro.A verdadeira beleza do AgriHood é esse tipo de planejamento urbano integrado, que arranca um monte de problemas futuros potenciais no broto, plantando agora as sementes para soluções. É o oposto da expansão caótica impulsionada pelo mercado que tem dominado o crescimento urbano americano por décadas. Em termos de alimentar de verdade um grande número de pessoas, Gersh admite que o AgriHood dificilmente “resolveu o assunto” da segurança alimentar de Detroit. Mas não precisa. O modelo de vizinhança, se duplicado e copiado em todo o país em uma escala em massa, seria uma mudança de jogo, proporcionando acesso a produtos frescos locais de alta qualidade e revertendo as condições difíceis de uma região degradada.
As cidades podem cultivar alimentos suficientes para sustentar seus moradores; isso foi comprovado nos dias dos Jardins da Vitória e é exemplificado em lugares como a Havana moderna, onde, por causa do embargo comercial, a cidade teve que se tornar especialista em autossuficiência alimentar. De fato, em todo o mundo as principais cidades estão aumentando as estratégias locais de produção de alimentos. Com área de plantio escassa, Cingapura é pioneira em arranha-céus transformados em fazendas verticais, que parecem visões futuristas dos jardins suspensos da Babilônia. Montreal, no Canadá, também lançou múltiplas iniciativas de agricultura urbana destinadas a tornar a cidade inteira um modelo mundial para enfrentar a escassez de alimentos.
Tudo o que os EUA gastarem com projetos como o novo AgriHood de Detroit para se multiplicar e ser implementado em larga escala é um investimento público real. Embora isso possa soar como uma utopia desenfreada, há, sem dúvida, cerca de US$ 20 bilhões que vão para a indústria de combustíveis fósseis, completamente destrutiva, a cada ano que realmente deveriam ser reutilizados para coisas muito melhores.
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