Edição 6 - 16.10.17
Por Sally Wilson* | Fotos Molly DeCoudreaux
No fim de 2014, Enrique Olvera, chef-celebridade mexicano, abriu seu primeiro restaurante internacional, o Cosme. Ele escolheu a cidade de Nova York como sede, em um edifício cavernoso a meio caminho entre a Broadway e a Park Avenue, na East 21st Street. Uma das principais preocupações de Olvera em assumir o comando de um empreendimento mexicano em Manhattan era a capacidade de recriar sabores mexicanos autênticos ao norte da fronteira de seu país. Simplificando, o estilo de comida em que Olvera acredita e produz (e que o colocou na lista dos World’s 50 Best Restaurants) está centrado no uso de ingredientes locais e mexicanos. “Cocina mexicana con productos locales”, como dizem no Pujol, seu premiado restaurante na Cidade do México.
É possível adquirir muitas coisas na cidade de Nova York, mas não a quantidade de milho tradicional usada em restaurantes, como aconteceu quando Olvera iniciou seu trabalho na cidade. É milho — e não trigo – o que constitui a base da culinária mexicana. Usa-se o grão para fazer de tudo, desde tortillas, tamales e atole até o agora famoso merengue de casca e o mousse de milho, que Olvera serve de sobremesa no Cosme. Para abrir o restaurante, Olvera precisava de um abastecimento confiável de Landrace. Foi então que as coisas ficaram complicadas.
Milho Landrace é um termo impreciso e geral para as 59 variedades de milho nativas do México. São espécies de polinização aberta, adaptadas localmente, cultivadas e consumidas por proprietários tradicionais de terras em todo o país. Não é o milho universal amarelo-dourado e doce de que estamos falando, mas de uma ampla população de variedades, com uma diversidade fantástica. Basicamente, é possível pintar um arco-íris de milho Landrace no México. As formas, texturas e sabores do grão também são muito diferentes.
Como, então, é possível fornecer e transportar caminhões dessa rica matéria-prima do México para a cidade de Nova York? Bem… é necessário ligar para Jorge Gaviria. Jorge é nativo de Miami, viveu em Nova York, mas hoje reside em San Francisco. Fez sua primeira visita ao México em fevereiro de 2014 – e foi uma viagem transformadora. Atualmente, vai para o país pelo menos uma vez a cada cinco semanas. Embora eu não o tenha conhecido pessoalmente, comi grãos de milho do tamanho de dentes caninos (servidos com polvo) e tortilhas feitas com o milho com que ele abastece o restaurante Olvera, no distrito de Flatiron. Pessoal, temos um caçador de plantas bona fide em nosso meio.
Consigo sentir a outra extremidade da internet se dobrar quando digo a Jorge que ele é um caçador de plantas. No cartão de visitas, Jorge diz ser “fundador e CEO” da Masienda, mas vamos reservar esse assunto para depois. Como em uma missão, Jorge adquire, importa e fornece milho Landrace e outros produtos, buscando-os de pequenos agricultores no México e entregando-os em NYC, Los Angeles, Miami, Toronto e Copenhague. Milho Landrace, tome nota. Porque chegamos a um ponto da história do mundo em que a política do milho e, no geral, a biodiversidade agrícola se tornaram um cabo de guerra de bilhões de dólares entre governos, corporações transnacionais, pequenos agricultores e a comunidade. Esse tipo de caça às plantas não é algo pouco importante. Vai diretamente ao cerne da questão e o faz com um propósito ético – uma questão com a qual a maioria dos caçadores de plantas primitivos não precisava se deparar.
Jorge trabalha com uma rede de conselheiros e agentes locais para fornecer cerca de cinco ou mais variedades de milho Landrace, oriundas principalmente do estado de Oaxaca, no sul do México. As variedades podem se alterar a cada ano, mas Jorge mantém sempre a bolita (pequenos grãos em forma de bola nas cores branca, amarela, azul ou roxa), os elotesconicos (grãos alongados em forma de lágrima nas cores vermelha ou azul), o olotillo (grãos robustos, amarelos), o tuxpeño (grãos entalhados nas cores branca, laranja e amarela) e o chalqueño (grãos ovais nas cores branca e amarela) nos registros.
“Simplificando, o principal objetivo é proporcionar aos agricultores mexicanos a oportunidade de se apoiarem economicamente e manterem as tradições agrícolas e culinárias no México”, diz Jorge, sem emoção nem alarde. “Se podemos fazê-lo e fazemos bem, esperamos oferecer aos agricultores uma opção entre a promoção local de suas tradições e a busca de fontes alternativas de renda nos Estados Unidos. Como sabemos, ambos os cenários pesam profundamente sobre as estruturas familiares, a biodiversidade natural e a cultura mexicana.O milho é sagrado no México. Seja de modo esotérico, seja de modo pragmático, faz parte da cultura mexicana: é o pão de cada dia, uma fonte de nutrição inseparável do conceito mexicano de identidade. O milho é originário do México. Na crença maia, o homem é criado a partir do milho. De acordo com a crença asteca, a divindade Quetzalcóatl, uma serpente emplumada, deu o milho, que representava uma fonte de sustento e inteligência, à humanidade.
Nos últimos anos, intervenções como o Nafta (sigla, em inglês para North American Free Trade Agreement, Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), o agronegócio e a homogeneização de tudo (incluindo a genética do milho) reduziu substancialmente os campos de cultivo dos meios de subsistência e do bem-estar de famílias no México, cujas tradições têm por base e se desenvolvem ao redor da agricultura. No momento, culturas de milho geneticamente modificadas são oficialmente proibidas no México, porém esse milho, intensamente subsidiado nas terras inundadas dos EUA ao longo da fronteira, representa cerca de um terço do mercado local e causa impacto nos preços do milho cultivado localmente. O agronegócio ocupou todo o território no norte do México e luta pela introdução de lavouras de milho geneticamente modificado no país. Esse jogo de “empurra e puxa” é complexo e movido por grandes corporações em busca de lucro.
Jorge opta por trabalhar de maneira positiva em meio à política. Seu modelo de negócios gira em torno do respeito: respeito pelos alimentos, pela diversidade, pela família, pela prática agrícola e pela participação nos lucros. “A Masienda utiliza o prazer de comer como um meio para mudar o mundo!”, ele diz. “De fato, há muito a se extrair desse trabalho. O impacto é perceptível em ambos os extremos da cadeia – dos agricultores com quem trabalhamos aos clientes que desfrutam o sabor verdadeiro de um excelente milho.”
A Masienda está reaproveitando um ingrediente que, de modo geral, subestimamos. “Queremos oferecer uma opção para a estabilidade econômica regional em áreas historicamente pobres do México e criar condições para que gerem soberania alimentar. Certamente trata-se de um ato intrinsecamente político, já que as condições hoje existentes são contrárias a esse modelo de negócios. O México, local de nascimento do milho, não terá que importar um terço do produto dos EUA se houver uma alternativa viável – e há. É irônico e inspirador pensar que os pequenos agricultores agora podem se beneficiar do Nafta, por exemplo, há muito tempo associado e até mesmo vinculado ao êxodo massivo dessa população e à marginalização da paisagem natural.”
Sabe a melhor parte dessa história? As sementes de milho de cor vermelha, laranja, amarela, azul e roxa transportadas através da fronteira estão – como uma promessa ilusória de futuro – dando suporte às famílias agricultoras, além de gerar um impacto culinário sublime. Nos EUA, elas estão sendo usadas para fazer tudo: de tortilhas, grãos e polenta a cerveja e aos pratos principais servidos no Cosme, um restaurante que chamou a atenção do mundo e celebra ingredientes locais mexicanos. “O solo escolhe a semente”, dizem os agricultores em Oaxaca. Esse é o segredo do milho, despojado de toda a sua complexidade.
*Publicado originalmente no site The Plant Hunter
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