O vinhateiro voador

Por Irineu Guarnier Filho, de Caxias do Sul (RS) Um avião uniu dois talentosos empreendedores separ


Edição 5 - 17.09.17

Por Irineu Guarnier Filho, de Caxias do Sul (RS)

Um avião uniu dois talentosos empreendedores separados na linha do tempo por um intervalo de mais de um século: o imigrante italiano Manoel Peterlongo, fundador da Vinícola Peterlongo, em 1915, e o empresário paulista Luiz Carlos Sella, um dos atuais proprietários da tradicional cantina gaúcha. O pequeno bimotor Piper Seneca que operou essa proeza não é uma daquelas máquinas que viajam pelo tempo nas narrativas de ficção científica, como o automóvel esportivo DeLorean, do filme De Volta para o Futuro. Estava, no entanto, no lugar certo na hora certa. E, por isso, acabou aproximando os dois aventureiros de épocas distantes, mas com histórias de vida igualmente vitoriosas. Peterlongo elaborou o primeiro espumante brasileiro (ainda chamado de “champagne”) no início do século passado. Sella, ex-agricultor no interior de São Paulo, especializou-se em adquirir empresas em dificuldades financeiras, recuperá-las e depois revendê-las.

Destino ou coincidência? O paulista de Pindorama, que pilota seu próprio jato Cessna Citation em suas andanças pelo País, atribui a uma incrível coincidência o modo como ficou sabendo que a Vinícola Peterlongo poderia se tornar um dos melhores investimentos de sua carreira. Sócio na fábrica de pneus Rinaldi, de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, ele intermediou para um amigo de Manaus a aquisição do Seneca, que se encontrava estacionado no aeroclube da vizinha Garibaldi. Quando o amigo foi buscar a aeronave, Sella se encontrou casualmente, no hangar, com um enólogo da Peterlongo. Conversa vai, conversa vem, enquanto o avião era preparado para o longo traslado até Manaus, o enólogo desabafou que a empresa onde trabalhava passava por graves dificuldades financeiras, e que a falência era iminente.

A inconfidência acionou o instinto empreendedor de Sella, que até aquele dia nunca se interessara por vinhos – menos ainda por vinhedos, autoclaves, leveduras ou barricas de carvalho. Ali mesmo, pediu ao funcionário da Peterlongo para marcar uma entrevista com os donos da vinícola. Uma semana mais tarde, compareceu ao encontro dirigindo um vetusto Ford Escort emprestado de um de seus colaboradores na Rinaldi, pois estava sem seu carro naquele dia. A simplicidade do veículo conduzido pelo desconhecido que pretendia adquirir uma das mais tradicionais vinícolas brasileiras não deve ter impressionado positivamente os proprietários, imagina Sella. Mas a conversa evoluiu bem. E, depois de uma avaliação superficial da situação contábil da empresa, o negócio acabou sendo realizado. Aos 45 minutos do segundo tempo, como relembra Sella: “Faltavam apenas cinco dias para a decretação da falência”. Era o ano de 2002.

As caves da empresa, com o retrato do fundador, Manoel Peterlongo (Foto: Divulgação)

CHAMPAGNE BRASILEIRO

O imigrante Manoel Peterlongo desembarcou no Brasil em 1899. Neto de um produtor de espumantes na Itália, conhecia bem a arte da elaboração de vinhos borbulhantes pelo método Champenoise (segunda fermentação em garrafa), descoberto oficialmente pelo monge francês Dom Pérignon, na Champagne do século 17. E foi por esse tradicional método francês que ele elaborou, em 1913, no município de Garibaldi, o primeiro vinho espumante brasileiro. Dois anos depois, nascia o Estabelecimento Vinícola Armando Peterlongo S/A, batizado com o nome do único filho homem da família. Em 1930, seria inaugurado o castelo ao estilo da Champagne, com as caves centenárias que recebem milhares de turistas por ano.

A Peterlongo esteve sempre na vanguarda da indústria brasileira do vinho. Foi a primeira vinícola a empregar mão de obra feminina e a pioneira na região a pagar salário mínimo para seus operários, já sob a gestão de Armando, na década de 1930. Conquistou o Brasil e chegou ao mercado internacional na década seguinte, tendo seus rótulos comercializados pela rede Macy’s, em Nova York. Marca onipresente em solenidades oficiais brasileiras da época, batismos de navios e aviões, seus espumantes também faziam parte do cardápio de banquetes oferecidos pelo governo Getúlio Vargas. Até a rainha Elizabeth II, da Inglaterra, elogiou o “champagne brasileiro”, quando visitou o Brasil.

Sella, com o enólogo Marty, nos vinhedos da Peterlongo: investimento na qualidade (Foto: Divulgação)

“Champagne”, elaborado fora da tradicional região de Champagne, na França? Sim, pois em 1974 o Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente a queixa das casas francesas que questionavam na Justiça o uso do termo champagne (denominação de origem da região do mesmo nome) por uma vinícola brasileira, e a Peterlongo conquistou o direito de estampá-lo em seus rótulos. No entanto, a partir dos anos 1960, ainda sob o comando da família Peterlongo, a empresa passara a produzir filtrados doces e bebidas de baixo valor agregado – e o glamour da marca desceu a ladeira. No final dos anos 1990, só os enófilos mais antigos ainda se lembravam dos dias de glória da vinícola gaúcha.

PILOTO DE EMPRESAS

Esse passado rico em história e, principalmente, o futuro potencial da marca despertaram o interesse de Sella pela Peterlongo. Salvar empresas à beira do abismo tem sido sua rotina profissional desde que, em 1988, adquiriu um pequeno hotel quase falido em Balneário Camboriú, Santa Catarina. Depois disso, ainda comprou uma fazenda no Paraná, uma panificadora, uma fábrica de autopeças e trabalhou com ouro, sempre exclusivamente de olho no potencial comercial de cada atividade. Com a Peterlongo, não foi diferente – embora admita que tenha se deixado envolver pelo encanto do mundo do vinho. O segredo do negócio? A resposta é quase singela: “Quem está do lado de fora de uma empresa vê melhor problemas que quem está dentro não enxerga”.

Neto e filho de pequenos cafeicultores, Sella viveu na zona rural do estado de São Paulo até os 14 anos, trabalhando na roça. Com a morte do avô e a divisão da pouca terra entre diversos herdeiros, não havia mais como permanecer no campo. Seu pai vendeu a pequena parcela que lhe coube, embarcou com a esposa e os oito filhos num caminhão, e rumou para a capital. Em São Paulo, o jovem Sella fez de tudo um pouco para ganhar a vida. Foi balconista de padaria, taxista, motorista de ônibus, mecânico. Em 1975, com 20 anos, abriu a própria oficina. Oito anos mais tarde, decidiu tentar a sorte nos Estados Unidos. Lá, encontrou trabalho em uma oficina de manutenção de aeronaves. Apaixonou-se pelos aviões, obteve seu brevê de piloto e, algum tempo depois, já era sócio de uma oficina na Flórida e proprietário de seu primeiro avião, um Cessna 401.

Como os custos de manutenção nos Estados Unidos eram bem menores do que no Brasil, começou a prestar esse serviço a proprietários brasileiros de aeronaves. Levava e trazia pequenos aviões particulares, em viagens de até dois dias pelo Caribe, enfrentando cinco escalas para reabastecimento e a meteorologia às vezes traiçoeira do temido Triângulo das Bermudas. Também comprava e revendia aviões. Era uma atividade arriscada voar sobre a floresta amazônica com o precário auxilio à navegação da época – mas lucrativa. Foi o que lhe permitiu acumular os recursos necessários para se aventurar em outro tipo de negócio, de certo modo ainda mais perigoso: a revitalização de empresas em dificuldades. Como o hotel de Balneário Camboriú, a fábrica de pneus Rinaldi e a Vinícola Peterlongo.

 

PATRIMÔNIO DO BRASIL

Sem abrir mão do tradicional filtrado doce Espuma de Prata, best-seller no Brasil e na Colômbia, Sella vem há 15 anos investindo na revitalização de vinhedos e dos vinhos finos e espumantes do portfólio da Peterlongo. Desde a grande festa de comemoração dos 100 anos da empresa, em 2015, esse processo se intensificou. Os resultados começam a aparecer. Há pouco, o espumante Elegance Champagne Nature venceu o Top Ten na categoria Espumantes Nacionais da Expovinis, a maior feira de vinhos do Brasil, realizada em São Paulo. Para chegar aos mais de 4 milhões de litros de bebidas produzidos anualmente, a Peterlongo adquiriu 28 novos tanques de inox, recuperou vinhedos na Serra e em Encruzilhada do Sul e remodelou sua área industrial. Há dois anos, a vinícola exporta toda a sua linha para a China e, segundo Sella, é “a marca brasileira mais conhecida na Colômbia”. Também elabora a linha Terras no Chile.

A preocupação com a qualidade é a mesma desde os produtos mais simples, elaborados com uvas Isabel e Bordô, até os vinhos de alta gama, explica Sella. “O vinho de mesa, os sucos e o Espuma de Prata têm de pagar as contas. Ganho dinheiro com os vinhos de maior valor agregado.” Uma fórmula simples, mas que tem sido ignorada por vinícolas focadas exclusivamente em vinhos de alto preço, com mercado reduzido (o consumo brasileiro de vinho não chega a 2 litros por habitante ao ano). Além disso, cresce exponencialmente a receita do enoturismo, com visitas guiadas pelas caves centenárias, eventos gastronômicos e sessões de cinema ao ar livre.

Contudo, o investimento mais vistoso da Peterlongo nos últimos anos foi, sem dúvida, a contratação da consultoria do enólogo francês Pascal Marty, responsável pelo upgrade na linha top da vinícola. Formado pelo prestigioso Instituto de Enologia de Bordeaux, na França, Marty foi winemaker da lendária Baron Philippe de Rothschild S.A. por mais de 14 anos, e responsável por alguns dos projetos vitivinícolas mais ousados e bem-sucedidos da casa francesa mundo afora. Como a parceria norte-americana com Robert Mondavi, que resultou no icônico vinho Opus One, em 1984, ou com a gigante chilena Concha y Toro, que deu origem ao também ultrapremium Almaviva.
Mesmo sem dar por concluído o trabalho de recuperação da Peterlongo, que considera “um patrimônio cultural do Brasil”, e apesar do apego sentimental ao empreendimento, Sella não descarta a possibilidade de se desfazer da empresa mais adiante por uma oferta, digamos, irrecusável. Business is business. “O negócio do vinho é apaixonante. Posso sair dele, mas não sairei mais do mundo do vinho”, diz.

Seja como for, se decidir desacelerar os motores no agronegócio, o ex-cafeicultor, hoje vitivinicultor, já tem onde relaxar. Um sobrado construído no condomínio aeronáutico Campo dos Comandantes, em Itajaí (SC), que o próprio Sella idealizou, é o lugar que considera ideal para desfrutar de uma paixão antiga e de outra mais atual: os aviões e o vinho .