Edição 5 - 17.09.17
Por Núria Saldanha, de Washington (EUA)
Conhecida por ser um celeiro de inovação, pelos vinhos e pelas ondas do Oceano Pacífico, que atraem surfistas e aventureiros do mundo todo, a Califórnia é também uma das principais regiões agrícolas dos Estados Unidos. O estado é responsável pela produção da metade de todas as frutas, nozes e vegetais cultivados no país e seus produtores são capazes de proezas para adaptar culturas a seu solo e climas desfavoráveis. O desafio se repete agora, com uma improvável aposta em uma das maiores paixões dos americanos, o cafezinho. De olho na demanda pela segunda commodity mais negociada no planeta, pequenos produtores de frutas estão desafiando as características da região e colhendo, acredite, café Arábica.
Embora a agricultura seja muito próspera na Califórnia há longas décadas, o cultivo de café no estado surpreende por dois motivos. Primeiro, porque entre os 50 estados americanos, apenas o Havaí conseguia produzir café até então. Segundo, devido à geografia. O café é tradicionalmente cultivado nas regiões tropicais, próximas à linha do Equador, como Brasil, Colômbia e Costa Rica, que contam com chuvas bem distribuídas o ano todo. A cultura requer volumes pluviométricos elevados, que vão de 600 mm a 1.500 mm ao ano. Um cenário bem diferente do encontrado na Califórnia, localizada acima da linha equatorial, onde o clima mediterrâneo de verão seco e o baixo volume de chuvas no inverno (de 250 mm e 500 mm) são os principais entraves para o desenvolvimento de cafezais Mas, com a ajuda de pesquisadores, os agricultores locais parecem ter encontrado uma solução. Estão utilizando sistemas simples de irrigação e a sombra dos abacateiros, largamente produzidos na região, para cultivar cafés premium. “Vivi e trabalhei durante vários anos na região cafeeira da América Central antes de mudar para a Califórnia”, diz Mark Gaskell, pesquisador responsável pela introdução do café na região. “Mas não imaginava que a cultura pudesse ter potencial econômico na Califórnia. Foi quando eu visitei a área de Kona, do Havaí, que percebi que isso podia dar certo, já que eles têm custos trabalhistas e de terra iguais aos da Califórnia.”
Os pés de café dão frutos na Califórnia mesmo quando totalmente expostos ao sol, mas é sob os largos pés de avocados, uma espécie de abacate pequeno, que nascem os cafés mais raros e saborosos. É que a sombra reduz a exposição das árvores ao sol, diminuindo a necessidade de irrigação e alongando o período entre floração e maturação para 12 meses. Isso é muito similar ao que acontece com os cafés de alta qualidade das regiões tropicais e subtropicais plantados em montanhas, como o arábica mineiro. E não é que a estratégia americana está dando certo? “Nós enfrentamos muitos desafios inicialmente, como o pH do solo elevado e a falta de água. Também testamos muitas variedades de arábica”, conta Gaskell, “Felizmente, nesta região próxima ao Oceano Pacífico a temperatura gira sempre entre 10 e 12 graus centígrados, o que proporciona um efeito de esfriamento da terra e das culturas, gerando um cenário próximo ao dos trópicos de altitude.”
Doutor em fisiologia e produção agrícola, Gaskell trabalha na Divisão de Agricultura e Recursos Naturais da Universidade da Califórnia e atua como conselheiro para pequenas propriedades rurais. Foi ele o responsável pela implementação do café arábica na região, um movimento que a imprensa americana tem comparado à expansão da produção de vinhos em Napa Valley. Esta não foi a primeira vez que o pesquisador ajudou a introduzir uma nova cultura. Em 1996, ele teve papel fundamental para iniciar a produção de mirtilos na Califórnia. Hoje, o estado é o maior produtor da fruta no país.
Gaskell ajuda a elaborar projetos de pesquisa em fazendas e auxilia o gerenciamento técnico de todas as plantações. No início dos anos 2000, ofereceu sementes de café arábica trazidas da América Central para Jay Ruskey, um pequeno produtor de frutas exóticas de Goleta, na região de Santa Bárbara, incentivando-o a iniciar o cultivo. Ruskey topou o desafio e plantou mais de dez variedades de café em meio a suas pitaias, graviolas e limas-caviar. Em três anos, os pés de café já estavam produzindo as primeiras floradas e os frutos na propriedade de 16 hectares, a Good Land Organics. Em parceria com Gaskell, ele passou a utilizar irrigação por gotejamento e microaspersão três vezes por semana para driblar os períodos de seca e prover a água necessária para o desenvolvimento dos grãos. “O projeto não teria saído do papel sem a compreensão de Jay”, diz Gaskell. “É um compromisso de longo prazo, porque você leva de quatro a cinco anos para começar a obter resultados significativos.”
Na Good Land, que significa “terra boa”, o café gourmet é colhido, selecionado, lavado manualmente e, de lá, sai embalado e pronto para o consumo. Ruskey se tornou o primeiro produtor de café comercial da Califórnia e tem orgulho dos resultados conquistados, mas não tira os pés do chão. Para chegar até aqui, ele diz, “foram mais de dez anos refinando práticas de cultivo e melhorando processos pós-colheita”. A safra dele ainda é pequena — colheu cerca de 500 quilos em 2015 –, mas a qualidade do café só chamou a atenção da imprensa americana e de outros produtores em 2014. Foi quando o café de Ruskey alcançou a posição 27 entre os 30 melhores no ranking de sabor do guia mundial Coffee Review. Ganhou nota 91 de 100 e foi classificado por degustadores como “pungente, profundo, doce e tonificado”, uma bebida “excepcional”.
Assustado com a fama que o pioneirismo lhe trouxe e sem muito tempo para conversa em meio à colheita de uma de suas culturas, Ruskey diz que a recente exposição na grande imprensa foi excelente, mas que não está conseguindo atender a todos que ligam ou mandam e-mails. “A minha única maneira de ganhar dinheiro é cultivar a safra e prepará-la para a venda”, explica. “Eu tenho a chance de ganhar uma vez por ano, e agora é a hora.” Mas faz questão de deixar claro que está tentando impulsionar a produção do arábica. Além dos grãos, Ruskey vende pés de café e promove excursões à sua fazenda durante o período de colheita. “Eu acho que o café tem potencial para ser uma indústria crescente por aqui, e, se as coisas funcionarem, podemos fazer da Califórnia uma referência em cafés de qualidade para o mundo”, diz.
Seguindo os passos de Ruskey, com a ajuda de Gaskell, 25 pequenos produtores localizados na região costeira da Califórnia, entre as cidades de San Diego e Santa Bárbara, estão cultivando mais de 25 mil pés de café. Muitos ainda nem começaram a produzir, como Jason Mraz. O cantor e compositor, vencedor de dois Grammys, administra a fazenda da família em San Diego, que produz avocados. Preocupado com os riscos de uma monocultura, decidiu buscar um produto mais rentável e foi aí que seu mentor agrícola sugeriu o café. Mraz, que começou carreira musical em uma cafeteria, logo simpatizou com a ideia e aceitou o desafio. As primeiras mudas de café chegaram à propriedade dele em abril de 2015 e foram levadas ao solo em outubro do mesmo ano. Em entrevista à San Diego Magazine, ele contou que o plantio das 2.300 mudas de 11 variedades de arábica não foi fácil. “Tivemos que cavar mais de 2 mil buracos, e colocar proteção em volta de todas as árvores para que elas suportassem o primeiro inverno”, lembra o cantor. “Mas tem sido um trabalho de amor e os primeiros grãos estão começando a aparecer”, comemora.
Mraz acredita ainda que a produção de cafés especiais, aliada ao agroturismo, pode ser a salvação para muitos agricultores californianos que vêm sofrendo com os altos custos da água e a escassez da mão de obra agrícola – devido às políticas de restrição imigratória iniciadas pelo ex-presidente Barack Obama e acentuadas por Donald Trump, uma vez que quase 80% dos trabalhadores agrícolas são estrangeiros. E o que não falta nos Estados Unidos é mercado para o café. De acordo com a National Coffee Association, 62% dos americanos adultos tomam pelo menos uma xícara da bebida por dia. Quem já visitou o país sabe que o tradicional “café americano” é grande, bem aguado e pouco saboroso. Mas o paladar da população parece estar ficando mais refinado e os cafés de alta qualidade ganham cada vez mais espaço. Em 2016, 59% de todas as xícaras consumidas no país continham cafés gourmet e os consumidores disseram estar dispostos a pagar mais por uma boa bebida. Os preços são realmente salgados. Ruskey vende pequenas embalagens de 340 gramas do seu café por US$ 65, o equivalente a R$ 216.
Gaskell acredita que o cultivo do arábica tem futuro na Califórnia. “Idealmente, nossa indústria do café não será grande, com plantações pequenas e de muita qualidade para serem vendidas em pequenos volumes a preços especiais”, diz. “O maior crescimento do turismo nos últimos anos veio da Ásia e muitos compradores adoram o café da Califórnia.” Não se deve duvidar desse verdadeiro oásis agrícola que tem um longo histórico de adaptação de culturas de outras nacionalidades, como os avocados mexicanos, as tâmaras marroquinas e as laranjas brasileiras. De acordo com especialistas entrevistados pelo jornal The New York Times, a produção da Califórnia pode alcançar ou ultrapassar a do Havaí, que hoje conta com 800 cafezais e uma produção de 4,5 mil toneladas. Se depender do entusiasmo dos agricultores, as sementes lançadas pelo pesquisador ainda vão render muitos frutos. O cantor Mraz planeja sua primeira safra comercial para 2020. “Na década de 1960, as pessoas também achavam que não era possível cultivar uvas para vinho na Califórnia”, lembra. “O café não só está crescendo bem na Califórnia como também está desenvolvendo seu próprio perfil de sabor e, neste momento, é um dos cafés mais raros do mundo.”
UM GOSTO AMARGO NO BERÇO DO CAFÉ
Usar a tecnologia para vencer o clima tem sido a arma dos californianos para produzir em seu território grãos, frutos e outros alimentos que, em condições normais, não cresceriam ali. Em outras regiões do planeta, porém, acontece o inverso. O clima em mutação está derrotando os agricultores a ponto de forçá-los a abandonar culturas tradicionais. O mesmo café arábica que começa a crescer na Califórnia, por exemplo, corre o risco de ser lentamente expulso dos terrenos de altitude da Etiópia, berço das primeiras lavouras do grão que depois se espalhou pelo mundo. Um estudo divulgado em junho passado por cientistas britânicos e etíopes aponta que, em virtude dos efeitos da elevação de temperaturas médias em todo o mundo, mais da metade das terras hoje destinadas ao plantio de café arábica no país africano podem deixar de ser próprias para a cultura até o final do século.
O dado é alarmante. Cerca de 15 milhões de agricultores etíopes tiram seu sustento dos cafezais e as exportações do grão representam mais de 25% das vendas externas do país, um dos cinco maiores produtores do mundo. Nos últimos anos, a Etiópia já vem enfrentando um quadro desafiador, com secas cada vez mais severas e duradouras. Segundo os cientistas, algo entre 49% e 59% das terras cultivadas com café podem ser irreversivelmente afetadas nas próximas décadas, destruindo a economia do país, a não ser que se encontre alternativas tecnológicas para mitigar esses danos. Levando-se em conta o modelo atual, a tendência é de que as lavouras sejam transferidas para terrenos ainda mais altos, mas que também sofreriam com escassez hídrica e dificilmente conseguiriam suprir o que o clima impróprio destruiu.
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