Lucas Bresser

O cenário está dado. Até 2028, a demanda global por biocombustíveis para transportes deverá crescer pelo menos 30%, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), entidade ligada à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essa previsão, considerada conservadora pela própria IEA, significa um consumo anual adicional de cerca de 38 bilhões de litros. Etanol e diesel renovável deverão representar dois terços desse crescimento, enquanto o restante ficará na conta do biodiesel e do combustível sustentável de aviação (SAF). Confirmada a projeção, os combustíveis sustentáveis para transporte deverão responder por quase 5% da demanda global – e ainda podem chegar a 6,4% numa previsão mais otimista.
Mas não é só isso. Pressionadas por custos, aumento de competitividade e regulamentações ambientais, indústrias e grandes edificações também buscam combustíveis alternativos. Somando-se a demanda dessas áreas ao setor de transportes, os combustíveis renováveis deverão representar 5,5% do consumo de energia global até 2030, novamente numa estimativa conservadora. A demanda deve crescer em todas as regiões, mas está concentrada na China, no Brasil, na Europa, Índia e nos Estados Unidos, que, juntos, respondem por mais de dois terços do crescimento projetado. Segundo a IEA, esses países e regiões possuem políticas específicas de apoio para diversos – e, em alguns casos, todos – combustíveis renováveis. Essas políticas variam conforme o tipo de combustível, setor e país, mas geralmente incluem uma combinação de leis, critérios de desempenho para redução de emissões de gases de efeito estufa e incentivos para investimentos na produção direta e em ativos relacionados.
Ainda segundo as projeções da IEA, a bioenergia – que inclui combustíveis líquidos, gasosos e sólidos – será responsável pela maior parte (95%) do crescimento dos combustíveis renováveis até 2030. A demanda deve aumentar principalmente no setor industrial, seguido por transporte e edificações. A bioenergia moderna é mais barata do que o hidrogênio e os e-combustíveis (sintéticos produzidos a partir de eletricidade renovável ou descarbonizada, água e dióxido de carbono) e já conta com forte apoio de políticas públicas em muitos países e regiões. Hoje, mais de 60 países possuem políticas voltadas para biocombustíveis líquidos, enquanto apenas a União Europeia e o Reino Unido têm exigências específicas para e-combustíveis.
Especificamente no setor de transportes, Brasil, Indonésia e Índia lideram a revolução. Esses três países possuem políticas sólidas para biocombustíveis, crescente demanda e grande disponibilidade de matéria-prima. Nessas regiões, o consumo de etanol e biodiesel apresenta a maior expansão. Embora economias avançadas, como União Europeia, Estados Unidos, Canadá e Japão, também estejam fortalecendo suas políticas para o setor de transportes, o crescimento do volume de biocombustíveis é limitado por fatores como o aumento da adoção de veículos elétricos, melhorias na eficiência dos veículos a combustão interna, altos custos dos biocombustíveis e restrições territoriais e técnicas.
“Sem dúvida, a produção de bioenergia tem e terá cada vez mais relevância na transição energética e mitigação das emissões de gases de efeito estufa em âmbito mundial”, diz Eduardo Couto, diretor do Laboratório Nacional de Biorrenováveis, parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (LNBR/CNPEM). “A Agência Internacional de Energia prevê, por exemplo, que a bioenergia será parte preponderante da descarbonização rumo à neutralidade, chegando a representar cerca de 15 a 20% das necessidades energéticas totais do globo em 2050.”
A posição brasileira, portanto, já pode ser considerada privilegiada. Segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), o Brasil é o segundo maior produtor mundial de etanol e o terceiro maior produtor de biodiesel, e começa a avançar na introdução do diesel renovável e do combustível sustentável de aviação. “O Brasil ocupa uma posição estratégica na transição global para combustíveis renováveis, sustentado por uma combinação singular de recursos naturais abundantes, histórico consolidado em biocombustíveis e um arcabouço regulatório que favorece a expansão do setor”, diz Felipe Bottini, diretor executivo de ESG da consultoria Accenture na América Latina. “A principal vantagem do Brasil reside na ampla disponibilidade de biomassa, na infraestrutura de produção de etanol estabelecida há mais de quatro décadas e na crescente integração de novas fontes como biogás e hidrogênio verde.”
O etanol continua sendo o carro-chefe da bioenergia no Brasil. A produção desse combustível atingiu 36,8 bilhões de litros em 2024, registrando crescimento de 4,4% em relação a 2023 e estabelecendo um novo recorde no País, segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica). Do total produzido em 2024, 7,7 bilhões de litros (21%) tiveram o milho como matéria-prima, um aumento de 32,8% em comparação com 2023. Além disso, um relatório da Unica mostra que, no ano passado, a frota de veículos leves no Brasil consumiu 59,3 milhões de litros de etanol, volume 10% superior ao registrado em 2023. Segundo a entidade, a paridade de preço do etanol em relação à gasolina comum foi de 65,3% em 2024, garantindo a melhor competitividade do biocombustível desde 2010. “Diante dos desafios no combate à mudança do clima, o etanol se apresenta como uma das soluções tecnológicas para a mobilidade sustentável”, diz o presidente da Unica, Evandro Gussi. “Pode ser usado puro, ou seja, o etanol hidratado, ou misturado à gasolina, o etanol anidro.”
Segundo o Ministério de Minas e Energia, 15,4% da energia oferecida no Brasil em 2023 veio da cana-de-açúcar. Isso torna a planta a principal fonte renovável no País. A sustentabilidade dessa matéria-prima se deve tanto à variedade de combustíveis e subprodutos energéticos que podem ser extraídos dela quanto ao fato de que a própria cultura da cana-de-açúcar desempenha um papel importante na captura de CO? da atmosfera. Uma pesquisa conduzida pela Agroicone, Embrapa e Unicamp revela que, ao longo das últimas duas décadas, a cana-de-açúcar absorveu cerca de 200 milhões de toneladas de CO?. Isso equivale ao plantio de aproximadamente 1,4 milhão de árvores, em uma extensão de terra correspondente a 1 milhão de campos de futebol.
A Raízen, companhia brasileira referência em bioenergia, é uma das que aproveitam todas as possibilidades da cana para produzir etanol em suas diversas variações, assim como biogás, biometano, hidrogênio verde e SAF. Além do etanol de primeira geração, a Raízen investe fortemente no chamado E2G, o etanol de segunda geração. Originado do bagaço de cana resultante da produção de etanol de primeira geração, o E2G é produzido por meio de um processo altamente tecnológico que envolve o pré-tratamento da biomassa, seguido pela hidrólise e fermentação. Esse método assegura que o E2G mantenha a pureza e eficácia do etanol de primeira geração, ao mesmo tempo que emite até 30% menos CO? na atmosfera. Maior produtora do mundo de etanol de cana, a Raízen também é líder global na produção em larga escala de E2G. Até 2030, a empresa espera ter em operação 20 usinas de E2G, representando um investimento aproximado de R$ 24 bilhões.
Outra aplicação dos resíduos é na geração de biogás e biometano, derivados da fermentação da vinhaça e da torta de filtro, subprodutos do processamento da cana. O biogás pode ser refinado para se tornar biometano, um tipo de gás natural renovável. E o biometano, por sua vez, pode ser utilizado como alternativa ao diesel em veículos de grande porte e até mesmo como substituto do gás de cozinha. Além disso, é possível gerar bioeletricidade a partir do bagaço da cana-de-açúcar. A queima do bagaço produz vapores que acionam turbinas, as quais geram eletricidade.
O etanol de cana está na gênese e ainda é a pedra angular do sucesso dos combustíveis renováveis no Brasil, mas ele não está sozinho. Hoje, o crescimento do etanol de milho representa um dos maiores casos de êxito do setor energético. Se atualmente o combustível vindo do grão representa mais de 20% do etanol produzido nacionalmente, dez anos atrás essa proporção mal alcançava 0,1%. Os fatores por trás dessa revolução são diversos, mas se concentram especialmente na ampliação do complexo industrial, na maior relevância dos biocombustíveis na agenda nacional e internacional e na busca por alternativas de redução de risco no contexto das safras brasileiras.
Engana-se quem pensa que milho e cana-de-açúcar travam uma briga nessa história. Segundo os especialistas ouvidos por PLANT PROJECT, uma vez que o produto é exatamente o mesmo, as matérias-primas se completam, garantindo mais segurança em momentos de entressafra, eventos climáticos ou flutuação de preços. “As duas cadeias são complementares. O etanol de milho trouxe mais previsibilidade ao abastecimento do biocombustível no mercado nacional, que ficou menos dependente da sazonalidade da produção da cana e da demanda do açúcar no mercado internacional”, diz Guilherme Nolasco, presidente executivo da União Nacional do Etanol de Milho (Unem). Segundo o executivo, a indústria de etanol de cana-de-açúcar vem incorporando cada vez mais tecnologias e atualizando seus parques para o chamado modelo flex, que produz etanol de cana durante a safra e de milho na entressafra de cana, ou full flex, que produz etanol de cana e de milho ao mesmo tempo. Além disso, existem também as usinas conhecidas como full, que produzem apenas a partir do milho ou da cana. Atualmente, segundo a Unem, 22 biorrefinarias estão em operação no País, 9 projetos possuem autorização de construção pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) e outras 11 unidades estão em fase de projeto.
O etanol – seja de cana, seja de milho – é uma das apostas para reduzir a pegada de carbono da aviação, que responde por aproximadamente 3% de todas as emissões globais e 14% das emissões dos transportes. No Brasil, a FS, primeira companhia do País a produzir etanol 100% a partir do milho, foi uma das pioneiras na obtenção da certificação International Sustainability & Carbon Certification – ISCC Corsia –, confirmando que seus métodos de produção atendem aos padrões internacionais para a fabricação e fornecimento de etanol destinados à produção de SAF. “Essa certificação é uma importante validação de que o etanol de milho de segunda safra brasileiro é matéria-prima de baixo carbono para produção de biocombustível para setores de difícil descarbonização, como a aviação”, diz Rafael Abud, CEO da FS. “As companhias aéreas poderão contar agora com nosso etanol como uma fonte competitiva e altamente escalável para atender globalmente esse mercado.”
De fato, poucos países apresentam condições tão favoráveis para liderar a produção e adoção de combustíveis renováveis quanto o Brasil, que alia vastos recursos naturais, experiência de décadas e uma agenda regulatória robusta. Por isso, o País também se destaca na produção de biodiesel, cujo percentual mandatório de mistura ao diesel tradicional deverá chegar a 15% no Brasil em março de 2025. Esse combustível é produzido a partir do processo de transesterificação de oleaginosas (como mamona, dendê, canola, girassol, amendoim, soja) e gorduras animais.
O próximo passo nessa jornada é a produção do chamado diesel renovável, que é similar ao biodiesel, mas com algumas diferenças importantes. O diesel renovável é um hidrocarboneto quimicamente equivalente ao diesel de petróleo e pode ser utilizado puro ou misturado ao combustível tradicional. Além disso, o diesel renovável é feito a partir da hidrogenação – em vez do processo de esterificação usado para produzir biodiesel.
Uma das iniciativas mais relevantes para a produção de diesel renovável no Brasil vem da Acelen Renováveis, empresa de energia do fundo Mubadala Capital, dos Emirados Árabes Unidos. Em dezembro de 2024, a companhia anunciou investimentos de US$ 3 bilhões para construir sua primeira biorrefinaria no Brasil. O projeto será implantado em Mataripe, na Bahia. A meta é produzir 1 bilhão de litros anuais de diesel renovável e combustível sustentável de aviação a partir da macaúba, um tipo de palmeira que produz de seis a oito vezes mais óleo do que a soja. Já a cidade de Montes Claros (MG) será sede do Acelen Agripark, um centro de inovação tecnológica voltado ao aprimoramento de processos para a produção de biocombustíveis a partir da macaúba. O complexo terá capacidade para germinar 1,7 milhão de sementes por mês e produzir 10,5 milhões de mudas por ano, impulsionando o cultivo e a industrialização da planta com foco em sustentabilidade.
O projeto conta com a colaboração de instituições nacionais e internacionais de referência, formando um ecossistema robusto de pesquisa e inovação. “Entre os parceiros estão a Esalq/USP, Embrapa, Unicamp, o Instituto Agronômico de Campinas e a Universidade Federal de Viçosa, além das norte-americanas University of California-Davis e Cornell University”, diz Victor Barra, diretor de Agronegócios da Acelen Renováveis. O projeto prevê o cultivo em 180 mil hectares de áreas degradadas, na Bahia e Minas Gerais, com potencial para capturar 60 milhões de toneladas de CO?. Ainda segundo a companhia, 20% dessas plantações serão feitas em parceria com agricultores familiares e pequenos produtores.
A Acelen Renováveis afirma também que o cultivo da macaúba seguirá as melhores práticas agrícolas e ambientais e promoverá o máximo potencial produtivo com ferramentas da agricultura 4.0, desde a identificação das terras até o rastreamento de todo o ciclo de vida dos combustíveis renováveis. “Esse controle e o rastreamento garantirão não só eficiência, mas também total transparência para certificações e auditorias”, diz Barra. “Além disso, vamos produzir biocombustíveis totalmente drop in. Ou seja, são substitutos perfeitos para os combustíveis fósseis já existentes tanto na cadeia produtiva quanto na logística, além de não requererem quaisquer ajustes ou adaptação para o seu consumo final nas bombas.”
Outra ação de vanguarda dos combustíveis renováveis no Brasil é a busca pelo desenvolvimento do chamado hidrogênio verde, produzido por meio de processos que utilizam fontes de energia renovável para realizar a eletrólise da água. A eletrólise é um processo que separa as moléculas de água (H?O) em hidrogênio (H?) e oxigênio (O?) usando eletricidade. Quando essa eletricidade vem de fontes renováveis, o hidrogênio resultante é considerado “verde” porque sua produção não emite gases de efeito estufa. Nesse caso, a energia inicial pode ser tanto de origem biológica – como o etanol ou o biometano certificados –quanto não biológica, como a energia hídrica, solar ou eólica.
O hidrogênio verde pode ser utilizado em diversos setores, como transporte, indústria e na própria geração de energia, liberando apenas água como subproduto, sem emissões de CO? ou outros poluentes. Sua produção, no entanto, ainda é mais cara na comparação com o hidrogênio feito de combustíveis fósseis. Além disso, a falta de infraestrutura para transporte e armazenamento é um obstáculo para a adoção em larga escala. Mesmo assim, o hidrogênio verde é visto como uma peça-chave na transição para uma economia de baixo carbono.
No Brasil, a Raízen tem investido em “pilotos” para testar e validar tecnologias de produção de hidrogênio verde a partir do etanol. Esses projetos são essenciais para entender a viabilidade técnica e econômica da produção em larga escala. A companhia também vem explorando a integração de fontes de energia renovável não biológicas, como solar e eólica, a esse processo.
Outra iniciativa em território nacional vem da mineradora Vale, que se uniu à empresa europeia de hidrogênio Green Energy Park (GEP) para desenvolver soluções de descarbonização no setor siderúrgico. O acordo prevê estudos para a instalação de uma unidade de produção de hidrogênio verde no Brasil, que abastecerá um futuro Mega Hub, complexo industrial voltado à fabricação de produtos siderúrgicos de baixo carbono. A iniciativa busca criar uma plataforma aberta para que siderúrgicas globais possam produzir e adquirir “Hot-Briquetted Iron” (HBI) no Brasil, acelerando a indústria de aço sustentável. “Esta é uma parceria ganha-ganha para o Brasil e a Europa”, afirma Ludmila Nascimento, diretora de Energia e Descarbonização da Vale, destacando as vantagens do Brasil na oferta de HBI “verde”. O setor de ferro e aço responde por cerca de 8% das emissões globais de carbono, principalmente pelo uso de carvão em altos-fornos. A substituição por HBI produzido com hidrogênio verde pode reduzir as emissões em até 80%, tornando viável a produção do chamado “aço verde”.
A australiana Fortescue, quarta maior produtora de minério de ferro do mundo, também anunciou no fim do ano passado o projeto de construção de uma fábrica de hidrogênio verde no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), no Ceará. A iniciativa prevê um investimento de R$ 20 bilhões e, em sua primeira fase, tem como meta produzir diariamente 500 toneladas de hidrogênio verde por meio da eletrólise da água, utilizando 1,2 gigawatt de energia renovável. O projeto está em fase de viabilidade após receber, em 2024, a decisão antecipada de investimento (EID) do Conselho de Administração da empresa. Nessa etapa, são conduzidos estudos detalhados de engenharia e financeiros. Em 2023, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Coema) aprovou o estudo de impacto ambiental e concedeu a licença prévia para desenvolvimento do projeto.
Em mais uma frente, a vocação agropecuária brasileira prova ser vantajosa quando se trata da produção de biogás e biometano, combustíveis renováveis que podem ser usados para produzir energia elétrica, movimentar equipamentos industriais, produzir fertilizantes, aquecer casas e movimentar veículos pesados. O biogás é um subproduto da digestão anaeróbica de matéria orgânica, enquanto o biometano é obtido a partir da purificação do biogás. Em todo o mundo, a maior parte do biogás é produzida a partir de resíduos urbanos ou esgoto, mas há um movimento crescente para aproveitar os resíduos agrícolas, como bagaço e palha de cana-de-açúcar, palha de milho e dejetos de animais.
Segundo a Associação Brasileira do Biogás e do Biometano (ABiogás), existem atualmente dez plantas autorizadas pela ANP para comercialização do biometano, que representam uma capacidade de produção de aproximadamente 656 mil metros cúbicos por dia. “Nossa perspectiva, considerando as plantas autorizadas, as plantas que estão em processo de autorização, plantas de autoconsumo e o mapeamento de projetos que a ABiogás realizou com os associados, é de que a produção alcance cerca de 7,9 milhões de metros cúbicos por dia até 2032”, diz Talyta Viana, coordenadora técnica regulatória da ABiogás. Segundo o último levantamento do governo federal, a produção de biometano no Brasil cresceu 12,3% em 2023 em relação ao ano anterior.
De acordo com a representante da ABiogás, o potencial total de geração desse combustível no Brasil pode alcançar 120 milhões de metros cúbicos por dia. Para isso, é necessário ampliar capacidade de produção, descentralizar a geração de energia e melhorar o alcance a novos mercados. “A partir do biogás é possível produzir desde a energia elétrica até combustíveis avançados como SAF e metanol verde”, afirma Talyta Viana. “Quando feito o processo de purificação, o biometano obtido pode ser utilizado para abastecimento de veículos pesados, com potencial de descarbonização da ordem de 90%, se comparado ao diesel, além de outras aplicações como o hidrogênio renovável.”
Em todo o País, são diversos os projetos voltados à produção de biogás e biometano. A Cooperativa Castrolanda (PR) implementou biodigestores para converter resíduos da suinocultura e laticínios em biogás. Já a Sertão Biogás (SP) tem um dos maiores projetos integrados de biogás do Brasil, também utilizando resíduos da suinocultura para geração de energia e biometano. A Usina Cocal (SP), por sua vez, produz biogás e biometano a partir de resíduos da cana, fornecendo energia para a rede elétrica e combustível para transporte.
A JBS, maior produtora de proteína animal do mundo, estabeleceu a meta de reaproveitar 100% de seus resíduos até 2030, utilizando-os para produzir biogás, biometano, adubos e produtos como gelatina e colágeno. Além disso, resíduos animais de suas operações nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália são convertidos em combustível para aviação. Nos últimos dois anos, 1,2 milhão de toneladas de sebo bovino e banha de porco foram usadas na produção de SAF e outros biocombustíveis. No Brasil, a Friboi estuda a viabilidade dessa iniciativa, enquanto a Biopower, empresa do grupo, avalia a produção de combustível renovável para navios como alternativa ao bunker oil.
Quaisquer avanços no desenvolvimento dos combustíveis renováveis dependem tanto da iniciativa privada quanto das lideranças governamentais. Na frente regulatória e de políticas públicas, os especialistas consultados por PLANT PROJECT consideram que o País melhorou significativamente. Victor Barra, da Acelen Renováveis, cita como bons exemplos a “Lei do Combustível do Futuro”, o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten), a “Lei do Mercado de Carbono” e o Programa de Transição Energética do Estado da Bahia (Protener). “São esforços importantes para promover a transição para uma economia de baixo carbono, ambientalmente sustentável e equitativa, garantindo incentivos fiscais para o setor privado, trazendo segurança jurídica e investimentos para o País.”
Para Bottini, da Accenture, o Brasil também se diferencia de outros países ao integrar incentivos econômicos à agenda climática. “O RenovaBio, criado em 2017, é um dos principais programas brasileiros voltados à descarbonização do setor de combustíveis”, diz. “Embasado na emissão de Créditos de Descarbonização (CBios), o programa estabelece metas para distribuidoras de combustíveis reduzirem a pegada de carbono.” Segundo o especialista, a certificação de produtores de biocombustíveis e a negociação dos CBios têm sido instrumentos fundamentais para valorizar combustíveis renováveis no mercado, aumentando a competitividade e impulsionando investimentos na produção sustentável.
No caso do biogás e do biometano, a associação setorial diz que ainda faltam regulamentações importantes, como a do Certificado de Garantia de Origem do Biometano (CGOB), que integra o “Combustível do Futuro”, do Mercado de Carbono e de outros programas que têm como objetivo impulsionar a pauta de transição energética e que foram aprovados recentemente. “Vencida essa etapa, acreditamos que o País terá um ambiente ainda mais propício para o desenvolvimento do biogás e do biometano”, diz Talyta Viana, da ABiogás.
E ainda há outros desafios a serem considerados. A política de precificação da Petrobras e os subsídios ao diesel fóssil afetam a competitividade do biodiesel e, futuramente, podem influenciar na viabilidade do diesel renovável. As dificuldades logísticas também são uma realidade. O transporte e a distribuição de biocombustíveis como etanol e biodiesel dependem de uma infraestrutura rodoviária cara e ineficiente. A falta de dutos específicos para etanol e biogás encarece a logística. No caso do transporte pesado, é essencial aumentar a quantidade de postos de abastecimento para GNV e biometano, cruciais para viabilizar a ampliação do uso desse combustível em modais rodoviários.
Para avançar ainda mais, o País também precisa investir significativamente em conhecimento, tecnologia e intercâmbio de experiências. Isso porque produzir biocombustíveis avançados, como etanol de segunda geração e hidrogênio verde, exige processos e equipamentos caros, ainda em desenvolvimento no Brasil. A falta de incentivo para pesquisa e inovação limita o avanço dessas soluções. “Para manter a vantagem competitiva, é fundamental investir em infraestrutura, regulação, pesquisa, educação e incentivos fiscais, garantindo que o setor se mantenha dinâmico e responsivo às demandas do mercado internacional”, afirma Bottini. “O futuro da energia limpa passa pelo Brasil, e a materialização desse potencial depende de estratégias bem articuladas entre governo, indústria e sociedade.”
A expansão da produção de biocombustíveis ainda precisa equilibrar a preservação ambiental e social. É necessário solucionar a oferta de matéria-prima em escala suficiente, sem interferir na produção de alimentos, sem desmatamento, sem uso excessivo de água e sem emissões adicionais de CO? equivalente. “O caminho para o equilíbrio e para a priorização de impactos positivos nasce na produção sustentável da matéria-prima, passando pelo aproveitamento de todas as suas frações e garantindo a circularidade como premissa nas cadeias de produção de bioenergia”, diz Eduardo Couto, do LNBR.
Segundo o estudioso, para impulsionar essa expansão sustentável, é essencial reduzir a distância entre o agronegócio e o conhecimento científico voltado à preservação ambiental. “Esse é um ponto-chave para o Brasil se posicionar como protagonista global em bioeconomia”, diz Couto. Uma das maneiras de fazer isso, segundo o representante do LNBR, é tratar a multifuncionalidade do uso da terra como forma de promover a sustentabilidade. Na visão do cientista, há espaço no Brasil para o plantio sustentável de biomassa sem desmatar mais nenhum hectare de terra, mantendo a produção de alimentos, favorecendo a conservação da biodiversidade e até restaurando áreas degradadas. “Existem caminhos para o desenvolvimento sustentável no nosso País, e eles estão pautados na ciência, na coexistência e na conciliação.”
Impulso bem-vindo
Os países e regiões que adotaram novas políticas de bioenergia a partir de 2023
BRASIL
O Brasil lidera o mundo em demanda e crescimento de produção de biocombustíveis, representando quase metade do aumento global até 2030. Em outubro de 2024, o presidente Lula sancionou a lei do Combustível do Futuro, que estabelece níveis de mistura para biometano, maiores níveis de mistura para etanol e biodiesel, além de definir metas de redução de gases de efeito estufa para o setor de aviação e um programa nacional para diesel verde.
UNIÃO EUROPEIA
A última versão da Diretiva de Energias Renováveis da União Europeia (RED III), aprovada em 2023, dobrou a meta de energia renovável no setor de transportes para 29% até 2030, ou uma redução de 14,5% na intensidade das emissões de gases de efeito estufa. A RED também estabelece limitações para matérias-primas, como limites para cultivos de alimentos e ração, além de metas para combustíveis avançados (5,5% até 2030, sendo 1 ponto percentual proveniente de combustíveis sintéticos).
ÍNDIA
Em novembro de 2023, a Índia anunciou a mistura obrigatória de biogás comprimido, começando com 1% em 2025-26 e subindo para 5% até 2028-29. O uso de biogás e biogás comprimido deve expandir-se em quase 90% até 2030, em relação aos níveis de 2023 (excluindo digestores domésticos), graças a essa regulamentação e a outras políticas ativas no país.
QUÊNIA
Em 2024, o Quênia lançou sua Estratégia Nacional de Transição para Cozimento, com o objetivo de garantir acesso universal à cocção limpa até 2028, com foco em fogões a biomassa e bioetanol. Essa ação ajuda a expandir o uso de bioenergia moderna e reduzir o uso tradicional de biomassa.
Fonte: Agência Internacional de Energia