Edição 16 - 30.09.19
Por Evanildo da Silveira
A partir de setembro, máquinas e homens começam a tomar as imensas lavouras de norte a sul do País para dar início ao plantio que resultará em uma nova safra de soja. Cada semente que for lançada ao solo será uma pequena parte de uma grande história, que, nas últimas cinco décadas, transformou a oleaginosa de ilustre desconhecida em protagonista de uma revolução socioeconômica e tecnológica na economia brasileira. A safra 2019/20 deve consolidar o Brasil como maior produtor mundial do grão, posição em que o País se alterna com os Estados Unidos a cada ano. Na safra anterior, segundo o próprio Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), os agricultores brasileiros foram responsáveis por 33% da produção global, ante 32,85% colhidos pela nação do Norte.
Liderar, nesse caso, significa escrever um novo capítulo de uma trajetória nem sempre reconhecida pelos brasileiros. Talvez como nenhuma outra atividade econômica, e certamente mais do que qualquer outra cultura agrícola, a soja é responsável por um feito extraordinário: ela distribuiu prosperidade pelo País. O grão fez de terras inóspitas cidades vivas e pulsantes, garantiu sustento para milhões de brasileiros, enriqueceu fazendeiros e, com vocação democrática, disseminou suas conquistas para diversos ramos de negócios. Além de ter sido a maior responsável pelo aparecimento da agricultura empresarial no Brasil, a soja acelerou a mecanização das lavouras, trouxe tecnologia e inovação para o campo, modernizou o sistema de transportes e, acima de tudo, expandiu a fronteira agrícola nacional. Em termos econômicos, irrigou financeiramente diversas frentes do mercado e cresceu a ponto de movimentar por ano US$ 60 bilhões – mais do que o PIB de nações como Uruguai, Croácia e Bulgária.
O Brasil é hoje da maneira como o conhecemos graças à força da soja. “A sua cultura constitui um marco no processo do desenvolvimento agroindustrial do País”, escreveram os engenheiros agrônomos Amélio Dall’Agnol e Decio Luiz Gazzoni no livro A Saga da Soja, obra de referência sobre o tema. Também pesquisadores da Embrapa Soja, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária sediada em Londrina (PR), eles dissecam a participação incontestável da oleaginosa na construção da identidade nacional. “Sua influência é tão profunda que é possível dividir esse processo em duas fases: antes (até 1960) e depois dela (após 1960)”, escreveram. Segundo os escritores, até que o grão começasse a ser cultivado em grande escala, o Brasil vivia basicamente da agricultura de subsistência. Com a soja, e graças a ela, surgiria no País o conceito de agronegócio e tudo o que está embutido nele: a busca pelo aumento da produtividade, o uso de tecnologias, a prospecção de mercados, a formação de profissionais qualificados, a aplicação de estratégias de gestão sofisticadas, entre muitos outros aspectos. O resultado desse processo é um país diferente – e certamente mais rico.
A soja irrigou financeiramente diversas frentes do mercado e cresceu a ponto de movimentar por ano US$ 60 bilhões – mais do que o PIB de nações como Uruguai, Croácia e Bulgária.
Poucos exemplos do desenvolvimento proporcionado pela soja são tão eloquentes quanto a cidade de Sorriso, no Mato Grosso. Com apenas 33 anos de existência, o município situado às margens da Rodovia BR-163 já é um dos cinco maiores do estado, mas o que impressiona é o fato de estar entre os 200 mais prósperos do País em termos de PIB per capita (ocupa o 184º lugar). A região começou a ser ocupada por gaúchos e catarinenses em 1975, quando a estrada que levava aos seus imensos campos de pastagem nem sequer era asfaltada. No início, os fazendeiros locais se dedicaram à cultura do arroz. “A oleaginosa começou a se estabelecer na década de 1980 e se fortaleceu a partir de 1990”, diz o prefeito Ari Lafin (PSDB). Foi a partir dali que o progresso chegou. “Hoje em dia, Sorriso é o maior produtor individual do grão no País, com 633 mil hectares cultivados na safra de 2018/19 e uma produção de 2,1 milhões de toneladas”, completa o prefeito.
A liderança no ranking nacional de produção trouxe novos horizontes para os moradores. Quem caminha pelas ruas espaçosas de Sorriso se depara com condomínios fechados ocupados por casas avaliadas em mais R$ 2 milhões. O município também é um dos campeões nacionais em vendas per capita de picapes. O que era antes uma terra esquecida nos rincões do Brasil é hoje uma ilha de prosperidade no centro do País. E o ciclo de riqueza está longe de acabar. “Agora, estamos passando por uma nova mudança, deixando de ser apenas um município produtor para ser transformador”, afirma o prefeito. “Começamos um processo de industrialização. Transformaremos o grão em óleo e em bagaço, o que vai gerar ainda mais empregos.” Novos postos de trabalho resultam em mais renda, e mais renda irá inevitavelmente enriquecer a cidade.
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O ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, atual coordenador do Centro de Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (GV Agro), diz que três produtos mudaram a cara do Brasil: o capim braquiária, o gado Zebu e a soja. Se o capim e o gado desbravaram os territórios, quem trouxe prosperidade foi a soja. “Ela é a mais rentável dos três e, portanto, está na ponta de lança desse processo”, diz. De acordo com Rodrigues, a oleaginosa trouxe benefícios especialmente para os municípios pobres, que tinham sua economia baseada na pecuária extensiva. “Essas cidades não apresentavam aptidão climática e de solo para culturas mais exigentes, como milho, café ou frutas”, afirma o ex-ministro.
Versátil, adaptável e lucrativa, a soja ocupou o espaço ocioso e levou riqueza para essas regiões. “Foi uma revolução impressionante, que trouxe como consequência a valorização da terra”, diz Rodrigues. “Isso significou uma mudança de mãos das propriedades, de uma população pobre e sem nenhuma formação técnica e gerencial para empreendedores que iniciaram grandes plantações do grão.” Estudioso do impacto da soja na economia brasileira, o engenheiro agrônomo Waldir Barros Fernandes Júnior, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), aprofunda a questão. “A produção de soja atraiu para essas regiões remotas e de pastagens degradadas toda uma cadeia de suprimentos de bens e serviços que formam o sistema agroindustrial, como insumos, sistemas de processamento, armazenamento e distribuição, além de redes de comércio e exportação.”
Nem sempre foi assim. Durante muito tempo, a soja funcionou apenas como forrageira, alimentando animais com suas folhas e ramos, enquanto o grão era desprezado. O primeiro registro de cultivo no Brasil data de 1882 e é atribuído ao professor Gustavo Dutra, da Faculdade de Agronomia de Cruz das Almas, na Bahia. Ele, porém, fracassou na tentativa de produção comercial. Uma das explicações para o insucesso se deve ao fato de que as variedades dessa planta então cultivadas no mundo eram adaptadas exclusivamente a climas frios ou temperados, predominantes em latitudes superiores a 30º. Como era de esperar – pelo menos à luz dos conhecimentos de hoje em dia –, a soja não se adaptou ao clima tropical e à baixa latitude (12°S) da Bahia. “Ela somente teve êxito no Brasil a partir dos anos 1940, quando foi semeada no Rio Grande do Sul, localizado entre as latitudes de 27°S e 34°S”, diz o escritor e engenheiro agrônomo da Embrapa, Amélio Dall’Agnol. As sementes foram importadas dos Estados Unidos, que cultivava a planta em latitudes semelhantes.
Embora o primeiro cultivo comercial de oleaginosa no Brasil tenha sido feito em 1914, no município de Santa Rosa (RS), foi somente a partir dos anos 1940 que ela adquiriu alguma importância econômica. “O primeiro registro estatístico nacional ocorreu em 1941, no Anuário Agrícola do Rio Grande do Sul”, revela Dall’Agnol. Nesse mesmo ano, foi instalada a primeira indústria processadora do grão do País, também em Santa Rosa. Em 1949, com a produção de 25 mil toneladas, o Brasil figurou pela primeira vez nas estatísticas internacionais que tratavam do grão.
HISTÓRIA E CIÊNCIA
Até 1960, o Rio Grande do Sul era praticamente o único estado produtor de soja do Brasil. Na década seguinte, ela começou a se deslocar para regiões tropicais do Centro-Oeste e depois do Norte do País. Diversos fatores explicam esse movimento. O primeiro deles foi a criação, em 1973, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Centro de Pesquisa de Soja, em Londrina (PR), que deram o suporte técnico e científico para o desenvolvimento das lavouras. O segundo motivo é inusitado. “Uma resolução do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, proibiu a exportação de oleaginosa para outros países”, diz o engenheiro agrônomo André Froes de Borja Reis, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), também ele um apaixonado pelo assunto. “Essa decisão abriu um vácuo no mercado internacional para suprir a demanda que já existia pelo produto.” A ausência da soja americana, alimentada pela esdrúxula determinação de Nixon, era o estímulo que outros mercados – especialmente o brasileiro – precisavam para produzir mais e vender seus estoques no cenário global.
Dall’Agnol acrescenta outros fatores que também foram importantes para a expansão da soja no território brasileiro. Segundo ele, em meados dos anos 1970 houve um rápido crescimento da demanda global por farelos proteicos ao mesmo tempo que a oferta caiu. “Esta situação foi causada principalmente pela frustração da colheita de grãos na ex-União Soviética e na China”, diz o pesquisador. O resultado cumpriu a velha máxima da economia: com a demanda em alta e a oferta em baixa, os preços disparam.
De acordo com Dall’Agnol, o aumento abrupto da soja no mercado internacional alterou profundamente a estrutura agrária do Brasil e a sua produção agrícola. “Incentivados pela perspectiva de bons lucros com a cultura, e dada a falta de oportunidades e as dificuldades de aumentar a área de cultivo por causa do elevado preço da terra no Rio Grande do Sul, pequenos produtores gaúchos aceitaram o desafio e correram o risco de enfrentar o inóspito e o desconhecido”, escreveu ele no livro A Saga da Soja. A obra vai fundo na questão. “Eles venderam suas pequenas propriedades e migraram em massa para o Paraná e para o Brasil Central, além de Paraguai e Bolívia, onde a terra era abundante e barata.”
A saga da soja brasileira não teria sido bem-sucedida sem o notável trabalho de pesquisadores que foram a campo solucionar entraves biológicos. Na China, onde a soja surgiu, seu plantio ocorre sob condições de dias longos, com quase 14 horas de luz. Quando cultivada em áreas próximas ao Equador, com dias mais curtos (12 horas de luz), ocorre o florescimento precoce, que leva à diminuição da produtividade. Depois de extenuantes trabalhos de pesquisa, cientistas brasileiros conseguiram obter cultivares no chamado período juvenil, possibilitando que a planta cresça e ganhe massa antes de florescer. Ou seja, mesmo sob dias curtos, o cultivo passou a ser economicamente viável.
A inovação acabaria por permitir que a soja se espalhasse por todo o território nacional, em qualquer latitude. Graças à ciência, o caminho estava livre para que o grão mudasse a paisagem e a economia brasileira. Dall’Agnol divide a expansão em quatro fases. A primeira abrange o crescimento do cultivo na região Sul durante as décadas de 1960 e 1970, quando a produção na região passou de 202 mil para 8,9 milhões de toneladas. A segunda corresponde ao avanço na região Centro-Oeste durante as décadas de 1980 e 1990, em que a colheita cresceu de 2,2 milhões para 13,3 milhões de toneladas. Sempre de acordo com Dall’Agnol, a terceira fase diz respeito à chegada e consolidação da cultura nos estados da região denominada Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) na primeira década do século 21, período durante o qual a produção evoluiu de 681 mil toneladas para 4,3 milhões. Por fim, o Brasil assiste agora à quarta fase de expansão da soja para novas áreas dos estados do Pará, Rondônia e Roraima, assim como regiões ainda por explorar do Nordeste e sudoeste do estado do Mato Grosso. Com produção crescente, esses locais são reconhecidos como a nova fronteira agrícola do Brasil.
IMPACTO ECONÔMICO E SOCIAL
A revolução socioeconômica e tecnológica protagonizada pela soja no Brasil moderno pode ser comparada com outros ciclos históricos, como os da cana-de-açúcar, borracha, cacau e café, que em períodos distintos dos séculos passados comandaram o comércio exterior do País. A soja, porém, leva uma vantagem em relação a outras culturas: ela foi a que mais contribuiu para a criação de cidades e o fortalecimento de polos regionais. Graças à soja, municípios como Passo Fundo e Santa Rosa, no Rio Grande do Sul; Londrina, Maringá e Cascavel, no Paraná; Rondonópolis, Sorriso, Sinop e Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso; Uberlândia, em Minas Gerais; Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães, na Bahia; além de muitos outros, entraram no mapa econômico brasileiro, enriqueceram e distribuíram sua riqueza para milhões de pessoas. Uma conta clássica dá a dimensão do papel vital da soja no desenvolvimento do País. Estima-se que, em média, cada 10 hectares da oleaginosa gerem um posto de trabalho direto e outro indireto, incluindo toda a cadeia produtiva e serviços associados. Considerando que ela ocupa cerca de 35 milhões de hectares no Brasil, o total de empregos gerados ao longo da cadeia do grão se aproximaria de 7 milhões – ou quase a população da Suíça inteira.
Considerando que ela ocupa cerca de 35 milhões de hectares no Brasil, o total de empregos gerados ao longo da cadeia do grão se aproximaria de 7 milhões – ou quase a população da Suíça inteira.
De fato, a soja teve um papel vital no desenvolvimento das cidades. Em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, a cultura foi introduzida nos anos 1940. “Atualmente, o município planta cerca de 42 mil hectares, com um rendimento de R$ 163,8 milhões, isso sem considerar o ICMS arrecadado com insumos e máquinas”, diz o secretário municipal de Interior, Antonio Bortolotti. “Em nosso município, a cadeia da soja atraiu revendas de máquinas, cooperativas, assistências técnicas particulares, produção e comércio de insumos, além de termos nos tornado referência em combustível sustentável como o BSBIOS, biodiesel à base do grão.”
Em Uberlândia, Minas Gerais, outro município impactado pela soja, o seu cultivo começou na década de 1970 como uma solução econômica encontrada para viabilizar a agricultura naquela região do Cerrado, com forte tradição pecuarista na época. “O impacto foi bastante significativo, pois permitiu a ampliação da área agrícola da cidade e o aumento da produtividade, inclusive de culturas sucessoras, como o milho”, diz o secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Turismo, Raphael Leles. “Além disso, a soja estimulou outras possibilidades de negócios na indústria, no comércio e no setor de serviços, o que contribuiu para que a cidade se desenvolvesse.” Hoje em dia, Uberlândia conta com um parque industrial que gira em torno do grão. Gigantes como Cargill, Bayer (Monsanto), Syngenta e ADM do Brasil estão instaladas na cidade, gerando milhares de empregos e distribuindo prosperidade aos seus moradores.
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