Edição 41 - 21.04.24
Movimento resgata as tradições da cozinha caipira, fundamental na formação da culinária brasileira
Por André Sollitto
“Pegue a viola, e a sanfona que eu tocava/Deixe um bule de café em cima do fogão/Fogão de lenha, e uma rede na varanda/Arrume tudo, mãe querida, que seu filho vai voltar”. O trecho da música Fogão de Lenha, moda clássica cantada por Chitãozinho e Xororó, traz, entre as memórias afetivas mais fortes dos autores, as referências ligadas à cozinha. Não é a única dupla a falar de alimentação em suas letras. Franguinho na Panela, de Moacyr dos Santos e José Plínio Trasferetti, gravada por Craveiro e Cravinho, vai pelo mesmo caminho. “Eu ando de qualquer jeito, de botina ou de chinela/Se na roça a fome aperta, vou apertando a fivela/Mas lá no meu ranchinho a mulher e os filhinhos/Têm franguinho na panela”, diz a letra.
São exemplos de como imaginamos a comida caipira: o frango na panela, feito de preferência no fogão à lenha. Defini-la com precisão, contudo, não é tarefa fácil. Para isso, surgiu um movimento de profissionais que mergulham na pesquisa histórica com o objetivo de entender as preferências culinárias dos caipiras e recriar receitas para os dias de hoje, como forma de manter a memória viva.
De acordo com o livro A Culinária Caipira da Paulistânia: a História e as Receitas de um Modo Antigo de Comer, escrito pelo sociólogo Carlos Alberto Dória e pelo cozinheiro Marcelo Corrêa Bastos, o que se entende hoje como cozinha caipira incluiu uma série de receitas e técnicas espalhadas pela região histórico-cultural conhecida como Paulistânia, que engloba o estado de São Paulo, partes do Paraná, do Triângulo Mineiro, o sul de Minas Gerais e de Goiás, o estado de Mato Grosso do Sul e fatias de Mato Grosso. É o território por onde os bandeirantes avançaram rumo ao interior em busca de mão de obra indígena e riquezas minerais. A partir daí, criou-se uma geografia culinária focada na produção de subsistência, principalmente de elementos provenientes da cultura indígena dos guaranis, como milho, feijão e abóbora, além dos animais que podiam ser criados a partir do milho, como galinhas e porcos. Essa é a base da alimentação desse vasto território.
A pesquisa mostra ainda que a formação da culinária brasileira a partir da interação intensa entre indígenas, negros e brancos não foi totalmente verdadeira. Na Paulistânia, o contingente populacional era formado por pequenos agricultores livres, ou agregados a fazendas, e por mestiços de indígenas e brancos, conhecidos como mamelucos. A cozinha caipira foi formada a partir das trocas entre essas pessoas e acabou determinando hábitos alimentares com os quais nos identificamos até hoje.
Em visita ao Brasil no século 19, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire fez anotações interessantes: “Os habitantes do Brasil, que fazem geralmente três refeições por dia, têm o costume de almoçar ao meio-dia. Galinha e porco são as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da Província de Minas. O feijão-preto forma prato indispensável na mesa do rico, e esse legume constitui quase a única iguaria do pobre. Se a esse prato grosseiro ainda se acrescenta mais alguma coisa é arroz, ou couve, ou outras ervas picadas”.
É um tema muito mais rico e complexo do que mostram os restaurantes “típicos” mineiros, com seus fogões à lenha. Essa visão do interior existe, mas hoje pode conviver de forma harmoniosa com outras interpretações da cozinha caipira. Um dos melhores exemplos desse resgate é encontrado no Lobozó, restaurante localizado na cidade de São Paulo. A iniciativa do sociólogo Carlos Alberto Dória e do cozinheiro Marcelo Corrêa Bastos, os autores do livro, leva o nome de um mexido com carne-seca e jiló, além de frango caipira e cuscuz.
No cardápio, estão pratos como a Milanesa de porco com queijo, Costelinha de porco, Galinhada com pequi e Feijoada da Paulistânia, feita com feijão rosinha, pé, orelha, rabo, linguiça, costelinha de porco e cubos de abóbora. O ambiente é moderno e minimalista. A apresentação também é mais discreta e contemporânea. “Apresentá-los de maneira diferente, sem perder a identidade, é o modo de respeitar as origens sem perder o contato com a realidade de hoje”, afirma Gustavo Rodrigues, chef responsável pela elaboração dos pratos.
Recuperar tradições culinárias passa pela necessidade de buscar os melhores ingredientes possíveis. O frango caipira deve ser criado de acordo com padrões rígidos. Para começar, é uma raça de maturação mais lenta, que deve ser abatida com 72 dias, contra 40 dias dos frangos de granja. Os animais vivem soltos no pasto e só comem vegetais orgânicos. Antigamente, era assim. Hoje em dia, o método é trabalhoso e caro. Por sua vez, a farinha de milho, fundamental na elaboração do cuscuz paulista, pode ser feita de forma inovadora, com aspersão de água no momento da torra e uso de um forno de pão para garantir a crocância. “De certa forma, ela é melhor do que a que era feita antes”, diz Dória. Nem sempre o cliente, no entanto, entende a diferença. “Tem gente que vai ao restaurante e reclama que o frango caipira não é duro”, diz o sociólogo. “Ele quer os defeitos para provar autenticidade, mas essa é uma ideia passadista.”
O olhar moderno para a cozinha caipira, embasado em extensa pesquisa histórica, ajuda a atrair um público que talvez não se empolgasse tanto com as “saturações”, definição de Dória para se referir às cozinhas de fazenda, com uso indiscriminado de banha de porco. São pessoas que têm lembranças de receitas provadas na casa da família, no interior, mas gostam de encontrar aqueles sabores de forma evocativa em novas interpretações. A comida caipira, para muitos, é memória afetiva – mas pode também ser apresentada de outras formas. Em vez da música sertaneja, é no jazz que o sociólogo busca um paralelo para descrever esse trabalho. “A música tem um tema, mas o intérprete começa com aquela frase e improvisa a partir dela”, diz Dória. “Mantendo um mínimo de identidade, é possível diversificar.”