Edição 39 - 16.11.23
Picapes de todos os tamanhos – grandes, médias e compactas – ganham espaço no Brasil com o avanço irrefreável do agronegócio
Por André Sollitto
Trata-se de uma clássica cena associada ao estilo de vida country dos Estados Unidos: o fazendeiro bate o pó das botas de couro, ajeita o chapéu, sobe na sua enorme picape e tranquilamente percorre as estradas de terra numa infinita planície cultivada, enquanto observa as lavouras ou as cabeças de gado. Antigamente, nessas cenas, a caminhonete seria bruta, prática, feita para aguentar os abusos da vida no campo. Um instrumento de trabalho e um meio de transporte, na essência. Hoje em dia, a realidade mudou. Essas picapes viraram símbolos de luxo, tecnologia e status. Algumas das versões superam o preço de US$ 100 mil, o que não impede que os modelos estejam sempre entre os mais vendidos dos Estados Unidos. Na comparação, o mercado brasileiro para esse tipo de veículo ainda é pequeno, mas o potencial existe e vem sendo explorado pelas montadoras.
Na edição deste ano da Expointer, a mais tradicional feira agropecuária, a Chevrolet apresentou pela primeira vez no País sua picape Silverado. A caminhonete grande, ou full-size, como modelos semelhantes são conhecidos nos Estados Unidos, será entregue por aqui apenas no ano que vem, mas já se esgotou na pré-venda. Jornalistas do setor automotivo foram até Esteio, no Rio Grande do Sul, para acompanhar a novidade. Não se tratou de uma ação inédita. Alguns meses antes, a Ford também havia mostrado a sua própria picape grande, a F-150, durante a Agrishow, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Outras empresas, como a Toyota, montam estandes nesses eventos para oferecer descontos e apresentar novidades em seus portfólios. É um movimento de aproximação ainda maior da indústria com o campo, consolidando de vez a antiga relação do público agro com as picapes.
A nova tendência desse mercado é justamente a expansão da oferta de picapes full-size. Há poucos anos, esse era um setor de nicho, praticamente dominado pela Ram, do grupo Stellantis (que detém marcas como Jeep e Fiat, entre outras). Hoje, já conta com representantes da Ford e da Chevrolet. E as vendas dispararam. Somente em agosto deste ano, foram 610 emplacamentos na categoria, de acordo com levantamento feito pela consultoria especializada Jato Dynamics. Em agosto do ano passado, foram 384. Há quatro anos, a única representante das caminhonetes grandes, a Ram 2500, vendia cerca de 500 unidades ao longo de todo o ano. Pode até parecer pouco, mas os valores desses veículos passam facilmente do meio milhão de reais.
No caso da Silverado, a Chevrolet afirma que o primeiro lote, de 500 unidades, esgotou em 90 minutos após a abertura da pré-venda. O segundo lote, de mais 200 unidades, foi colocado à venda no dia 11 de setembro, com entrega prevista para o início de 2024. “O segmento dos veículos super-premium é estratégico para a Chevrolet”, afirma Suelen Arice, gerente de Marketing de Produto da GM. “Apesar do baixo volume, eles movimentam uma cifra considerável. Em 2023, a previsão é de que gerem cerca de R$ 8 bilhões em negócios, com metade desse valor proveniente de picapes, como a Nova Silverado, mostrando a relevância desse segmento para a empresa.” Além disso, na avaliação da GM, as picapes grandes premium servem como vitrine tecnológica e ajudam a construir a imagem da marca.
O foco em modelos de luxo destoa da função primordial desse tipo de veículo. Afinal, as picapes, em essência, são feitas para o trabalho. As caçambas abertas e a grande capacidade de carga, resultado da construção mais robusta, além da tecnologia que facilita o deslocamento em estradas de terra, como a tração nas quatro rodas, torna as caminhonetes perfeitas para o serviço. Há, no entanto, alternativas para todas as necessidades. Entre os modelos mais emplacados do País, as chamadas picapes médias também se destacam. Modelos como Chevrolet S10, renovado há poucos meses, e Mitsubishi L200, um dos mais reconhecidos entre as marcas japonesas, permanecem entre os preferidos do público.
As picapes se tornaram nos últimos anos símbolos de conforto, segurança e status. O tamanho – além do preço – ajuda a mostrar o sucesso profissional de um indivíduo. E a necessidade de viajar pela fazenda e entre cidades reforça o apelo. Assim, nas últimas décadas, alguns modelos específicos, como Toyota Hilux, Ford Ranger, Chevrolet S10 e Mitsubishi L200, entraram para o imaginário rural como sinônimos de ascensão. Com os modelos full-size, o luxo ganhou uma nova dimensão. Em vez de comprar um esportivo alemão, como na cidade, é mais natural escolher um modelo “parrudo”. Em diversos sucessos do Agronejo, vertente da música sertaneja que glorifica o poder econômico do agronegócio, as caminhonetes representam tema recorrente. No hit Os Menino da Pecuária, a dupla Léo e Raphael canta: “Eu não tenho carro importado / mas a Hilux é do ano, toda suja de barro”. Mesmo quando os modelos não são citados nominalmente, fica claro que a picape é o objeto de desejo.
Alguns dados ajudam a comprovar o interesse pelas caminhonetes grandes como sinal de poderio econômico. “Até agora, todas as unidades da F-150 que vendemos foram para uso pessoal, e não para o trabalho”, afirma Marcel Bueno Silva, diretor de Marketing da Ford para a América Latina. Mais de um terço de todas as unidades foi para clientes da região Centro-Oeste, importante polo agrícola do País. Há também uma parcela significativa de consumidores no interior de São Paulo e em regiões rurais do Sul. Essas picapes full-size não são produzidas no Brasil, e as montadoras têm optado por trazer ao País apenas as versões topo de linha, com as mais inovadoras tecnologias embarcadas e os detalhes de acabamento mais requintados, o que reforça ainda mais o apelo de luxo.
Nas cidades de maior pujança do agronegócio, os modelos também são escolhidos mesmo por quem não precisa colocar o pé no barro todos os dias. “Não é só o produtor ou o fazendeiro”, diz Silva, da Ford. “O dentista usa picape, o advogado, o médico. São regiões inteiras com uma grande força picapeira.” Longe dos centros urbanos, com densidade maior de veículos, também fica mais fácil manobrar esses gigantes. Afinal, estacionar na garagem do prédio de apartamentos, encontrar uma vaga em shopping center ou trafegar por vielas apertadas pode ser uma tarefa complicada nas picapes full-size, que têm mais de 2 metros de largura e quase 6 metros de comprimento, em muitos casos.
Diante do cenário aquecido para o segmento, é normal que outras montadoras fiquem de olho nas oportunidades. O bom desempenho da Ford F-150, dos modelos da Ram e da pré-venda da Chevrolet Silverado podem fazer com que outros concorrentes desembarquem no País. A Toyota, uma das preferidas do público brasileiro, poderia trazer a Tundra, que faz grande sucesso nos EUA. “Todas as marcas que têm esse tipo de produto pensam em trazer. O negócio é entender o mercado e tomar cuidado para não ser o último”, afirma o consultor Milad Kalume Neto, da Jato Dynamics. Até as chinesas, novatas no mercado nacional, já estudam importar suas linhas de caminhonetes. Como se vê, as picapes aceleram cada vez mais.