05.09.22
Por André Sollitto
Ao retratar cenas da vida rural, o design de embalagens tenta oferecer vislumbres de um período mais simples, pré-industrialização do Brasil. Mas são poucos os produtos que, de fato, podem se orgulhar de uma longa trajetória na cultura popular
Nas gôndolas de supermercados, vale de tudo para tentar destacar um produto dos seus concorrentes. Uma marca forte e tradicional em destaque, cores chamativas ou mascotes carismáticos são algumas delas. Outra, mais sutil, mas bastante eficaz, é fazer referência à vida no campo e à produção rural. São imagens de fazendas e animais que transmitem uma sensação de que o produto é original, feito de maneira tradicional. Não raro, essas embalagens têm um design “retrô”, como se tivessem uma longa história e uma presença longeva no dia a dia da população. Trata-se de um processo de recorrer ao imaginário do campo, uma realidade não tão distante de muitos.
“Existe uma percepção de que nos tempos antigos se comia bem, os alimentos não tinham a adição de produtos químicos”, afirma Bruno Brito, fundador do Instituto Arado, iniciativa focada na pesquisa e divulgação do imaginário rural brasileiro. “As marcas recorrem a essa memória que não é muito antiga. A pré-industrialização do Brasil, nos anos 1930, é muito próxima. E até as décadas de 1970, 1980 muitos brasileiros ainda tinham dietas ligadas aos tempos pré-industriais, com produtos a granel, por exemplo”, diz ele.
Dessa forma, as origens no interior funcionam como uma chancela para que alimentos sejam considerados tradicionais, feitos de acordo com receitas passadas de geração para geração e capazes de refletir o ambiente em que foram produzidos. Em vários casos isso é verdade. Um queijo canastra produzido em Minas Gerais pode ostentar com orgulho sua produção artesanal no rótulo, com direito a desenhos ligados à agricultura familiar. Afinal, é um dos produtos brasileiros que recebem um registro de Indicação Geográfica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), uma ferramenta coletiva de valorização de produtos tradicionais vinculados a determinados territórios, ou um selo de Denominação de Origem. O mesmo vale para o mel de Ortigueira, no Paraná, a farinha de mandioca de Farroupilha, o café da Região da Serra da Mantiqueira de Minas Gerais ou a cachaça de Paraty, entre outros alimentos certificados.
É claro que muitas vezes a indústria se apropria desse imaginário para vender produtos absolutamente distantes da produção rural mais tradicional que querem retratar. “Quando olhamos para a agricultura ou a pecuária em escala industrial, os processos são desconectados dos métodos de antigamente. Acho complicado quando não é genuíno ou é algo pasteurizado sem muita personalidade”, diz Brito. Saber diferenciar o que é original do que não passa de storytelling nem sempre é tarefa fácil, especialmente em grandes centros urbanos em que a população já perdeu parte do contato com o ambiente rural.
Quando a trajetória de determinado produto é genuína, no entanto, sua embalagem é capaz de contar muitas histórias. “Existem produtos que oferecem uma familiaridade muito grande, falando a respeito do lugar de onde vieram”, afirma Luciano Tardin, designer e coordenador da pós-gradução da ESPM-Rio. “Eles podem contar como é cozinhar um mingau, ou remeter à infância. São signos a partir dos quais se reconstituem elementos históricos”, diz o especialista. Isso vale também para estilos estéticos marcados pelos momentos em que determinados produtos foram criados. É o caso das embalagens de biscoito Piraquê ou do design art déco da manteiga Aviação, que se tornam cult e, novamente, remetem a um tempo mais simples.
Artistas já perceberam há tempos o potencial das embalagens de produtos como fonte de inspiração e diálogo com as sociedades em que foram produzidos. Andy Warhol (1928-1987), que não à toa se tornou uma das principais referências da chamada Pop Art, trabalhou como ilustrador comercial antes de se dedicar à pintura, e suas versões da lata de sopa da Campbell’s se tornaram icônicas porque marcaram um momento de ruptura na produção artística. Além de trazer o design gráfico de produtos para mais perto do fazer artístico, propôs uma reflexão comportamental sobre hábitos de consumo dos norte-americanos.
Existem outros exemplos, inclusive no Brasil. Na exposição Fabricação Própria, que ficou em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, até o final de janeiro deste ano, a artista Lotus Lobo revisitou seu acervo de folhas de flandres usadas nas impressões de embalagens de produtos usando litografia, técnica em que os desenhos são gravados em uma matriz e replicados. “Preparar a mostra foi como um grande laboratório em que pude revisar, sob novas perspectivas, todo esse material que reuni. Foram muitos ensaios, com o objetivo de criar conexões e diálogos com as ilustrações dos nossos queridos desenhistas da litografia industrial presentes nas matrizes. Realizei testes durante meses, usando, entre outros insumos, originais em zinco de latas de manteiga, banha, fumo de rolo e biscoito”, afirmou ela na ocasião de lançamento da mostra. Além de propor uma discussão sobre autoria, o resgate de imagens retrata um período da indústria alimentícia brasileira.
Em alguns casos, essa história se mantém praticamente inalterada com o passar dos anos e se transforma em memória afetiva. “De vez em quando, bem de vez em quando mesmo, a gente ainda vê por aí algumas belezas como essas que resistiram à enxurrada de influências estrangeiras e permaneceram nas prateleiras com aquela carinha de Brasil que a gente tanto gosta”, escreve Rafael Quick, responsável pelo Café Jetiboca, de Minas Gerais, e pela Cervejaria Viela, além de colecionador de objetos antigos que faz um trabalho de pesquisa de embalagens do passado. É o caso do Catupiry ou da caixa de Maizena. “São embalagens que não se modernizaram. Ou, se modernizaram, foi apenas em sua fisicalidade, no tipo de material e em capacidade de resistência”, afirma Tardin. “Isso dá a uma embalagem icônica desde o princípio um caráter de originalidade muito grande”, completa.
E existem também aqueles produtos cujo design transcende as gôndolas dos supermercados, empórios e vendas e entra de vez para a cultura pop. A embalagem de Maizena, marca americana fundada em 1854 que se tornou fenômeno de vendas no Brasil, é o exemplo mais claro. A cor amarela vibrante, o logotipo e a imagem de indígenas americanos colhendo e preparando o milho não apenas se tornou sinônimo de toda uma categoria, mas foi usado em coleções de itens para casa, de espátulas e xícaras a cadernetas e aventais. O extrato de tomate Elefante, com o personagem Jotalhão, de Mauricio de Sousa, é outro exemplo de embalagem que passou a estampar até almofadas. “Quando tiro uma embalagem da cozinha e coloco na sala, na forma de uma almofada, esse deslocamento acaba realçando algumas qualidades que devem estar nela a priori. São vistos com um olhar nostálgico e se tornam repositórios de afeto”, afirma Tardin. Replicar isso pode ser o sonho de toda marca, mas são raros os casos de sucesso. “Não há uma fórmula, nem há como explicar esse processo de assimilação pela cultura pop”, diz Bruno Brito. “Mas às vezes dá certo e aquele produto acaba acompanhando a jornada da vida da pessoa.”