Águas passadas

As iniciativas do agronegócio para proteger o mais precioso dos recursos naturais  Por Paula Pache


Edição 42 - 12.05.24

As iniciativas do agronegócio para proteger o mais precioso dos recursos naturais 

Por Paula Pacheco 

André Luiz Rodrigues Junqueira se sentia provocado a buscar uma solução sempre que via o volume de água que sua empresa, a Marajoara Laticínios, descartava depois de cada processo cuidadoso de limpeza de tanques e equipamentos. Não bastava fazer o armazenamento do líquido. Para o empresário, era possível encontrar alternativas que melhorassem o seu uso. A decisão de adotar um novo modelo ambiental começou a se concretizar há seis anos, quando o empresário passou a investir em uma nova infraestrutura na fábrica e na propriedade, em Hidrolândia, a 40 quilômetros de Goiânia. Agora, o que é usado na indústria passa por uma série de processos que permite a devolução da água para a natureza em condições muito melhores do que no passado.  

Além disso, o material orgânico resultante do processo ganhou nova função ao ser usado como biofertilizante por Junqueira e alguns criadores de gado da região na pulverização dos pastos. “Não criava gado, mas vi que tinha uma área com potencial para pastagem e a criação de animais de corte”, diz ele. “Além de ser uma fonte adicional de renda, com a venda de bezerros, devolvemos uma água de qualidade da irrigação para o lençol freático.” Hoje em dia, o presidente da Marajoara cria 200 cabeças de gado, mas no regime de pasto atual pode chegar a 280. Se o pasto fosse cultivado de forma convencional, não poderia passar de 70 cabeças. “Podemos ter capim o ano inteiro, não existe entressafra.” 

Com as mudanças na propriedade, o presidente da Marajoara, que distribui seus produtos, como o leite, em todo o País, conseguiu fechar o círculo de uso da água. O líquido é extraído do poço artesiano, usado na limpeza, segue para a estação tratamento e só então, livre de resíduos, volta para o rio. A virada na gestão ambiental da Marajoara permitiu que a empresa devolva para o lençol freático 900 mil litros do 1 milhão de litros de água que consome por dia.  

A Marajoara é um exemplo de como o agronegócio tem buscado novas formas de se relacionar com o recurso natural. Há muitos outros. Em Vacaria (RS), a Rasip, fabricante de alimentos e produtora de maçãs, alcançou 2,6 bilhões de litros de água tratada em seis anos. A empresa tem seu próprio gado leiteiro, que abastece a fábrica de queijos. A operação da empresa conseguiu fechar a torneira graças a técnicas como o reúso de água para limpeza dos ambientes de confinamento dos animais, a coleta e uso da água das chuvas e o tratamento do que é utilizado na limpeza dos equipamentos.  

Atualmente, a Rasip tem 1,2 mil vacas holandesas alojadas. A companhia produz 50 mil litros de leite por dia, que vão 100% para a produção de queijo – são 150 toneladas por mês. Os animais são distribuídos por cinco free stalls, um tipo de estrutura usado no confinamento de rebanhos leiteiros que conta com áreas com camas individualizadas, corredores de acesso e pistas de trato. No seu caso, a água é usada em diferentes processos. Por exemplo, na limpeza de cada free stall para a retirada de dejetos e palhas, e também no processo de ordenha, onde só pode ser utilizada a água limpa. São entre 300 mil e 400 mil litros por dia, conta Celso Zancan, diretor da Rasip. 

Sem todo o investimento em tecnologia e cuidados nos processos, seriam gastos cerca de 500 milhões de litros de água, em média, por ano. Mas a empresa consegue reciclar em torno de 400 milhões de litros. A serragem sobre a qual os animais dormem, os restos de comida, de fezes e de urina, quando lavados, são destinados para um depósito. Os resíduos sólidos são destinados a biodigestores para a produção de biogás, queimado nas caldeiras para a fabricação de queijo. A técnica de reaproveitamento possibilita à empresa deixar de comprar 40 mil litros de diesel por mês para uso nas caldeiras.  

A água tratada é bombeada e volta a ser usada na limpeza dos free stalls. O líquido que já foi usado algumas vezes na limpeza é destinado a uma lagoa impermeabilizada, onde fica depositado por até 40 dias. Ao final do processo, é usado na fertirrigação para a produção de alimentos, como milho, silagem e gramíneas. O investimento nas adaptações, entre tanques, equipamentos de separação dos resíduos sólidos, biodigestores e decantação, foi de cerca de R$ 5 milhões. A conta não levou muito tempo para se pagar, já que a empresa arcava com uma despesa de R$ 200 mil por mês apenas com a compra de diesel.  

O amadurecimento das iniciativas no negócio fez com que a direção da empresa decidisse começar a fazer o seu balanço de carbono, que deve sair do papel com a ajuda de um software a partir de maio. A meta é buscar o carbono zero, com a neutralização das emissões. “O mapeamento vai nos ajudar a fazer um acompanhamento permanente quanto às áreas que estão indo bem e as que precisam de ajustes”, diz Zancan. 

Há inegáveis vantagens financeiras com a decisão de tratar os recursos hídricos como um bem prioritário. “Graças a esses cuidados, temos a preferência de compra junto a muitos clientes e condições diferenciadas nos financiamentos”, afirma Zancan. “Quando a ajuda à natureza é bem planejada, existe, sim, retorno financeiro.” 

Na Raízen, o principal desafio é buscar o aproveitamento máximo da água proveniente da cana, na forma de condensados, assim como a otimização das trocas térmicas em seus parques de bioenergia. Os processos são feitos como forma de maximizar a eficiência energética aliada à eficiência hídrica, utilizando a economia circular como uma ferramenta na gestão dos recursos hídricos e de redução de impacto ambiental. 

Até 2030, a empresa tem o compromisso de reduzir 15% da captação de fontes externas no período de moagem. Atualmente, a empresa já alcançou 13,8% desse indicador. 

Em 2015, a empresa lançou o programa Reduza, de incentivos às melhores práticas para reúso do recurso natural nas operações industriais e o aproveitamento da própria água proveniente da cana-de-açúcar – 70% da planta é composta por água –, reduzindo, assim, o consumo e a captação de fontes externas. “A partir do programa, temos por objetivo capturar o máximo de valor do reúso de águas, aliando gestão hídrica à conservação de energia e aumento de eficiência”, diz José Orlando Ferreira, gerente de Qualidade Integrada da Raízen. “Para se ter ideia, na safra 2023/24, a Raízen economizou mais de 2 bilhões de litros de água, o equivalente a 871 piscinas olímpicas.” Além disso, desde a criação do programa, houve uma economia de 17 bilhões de litros de água não captada, equivalente ao volume de uma cidade de 420 mil habitantes por um ano.  

A agricultura é a principal consumidora de água no Brasil, responsável por metade do consumo. No entanto, os especialistas alertam que é preciso olhar o número sob um espectro mais amplo. Isso porque o dado da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) aponta para esse percentual apenas quando leva em consideração a água outorgada pelo poder público (União e órgãos estaduais) para exploração, que responde por menos de 4% do recurso disponível no País. Os rios brasileiros têm uma vazão de 280 mil m3 por segundo – 95% vão para os oceanos. “Temos muita água”, diz Lineu Neiva Rodrigues, pesquisador da Embrapa Cerrados. 

O desafio, na sua avaliação, não está na falta de água, mas nas dificuldades de acesso aos recursos para disseminar a irrigação, o que acaba agravando as diferenças sociais. “O controle da água é fundamental, porque se trata de um bem precioso”, afirma o especialista. “É fato que um país só se desenvolve se tiver água e energia. Do contrário, o que se vê são movimentos migratórios, guerras e pobreza. Por isso é tão importante fazer uma boa gestão.” 

As mudanças climáticas trouxeram novos desafios. Até pouco tempo atrás, diz a assessora técnica da Comissão Nacional de Irrigação da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Jordana Girardello, a irrigação era viável quando fazia a segunda safra, como a safrinha no Centro- Oeste. Hoje em dia, com as mudanças climáticas e as chuvas caindo de forma muito concentrada e em períodos diferentes, só a chuva artificial é capaz de manter a produtividade. “Se, antes, a irrigação era para a segunda ou terceira safra, agora é para garantir a safra. Ou seja, ela se tornou indispensável”, diz Girardello. 

Segundo a edição mais recente do estudo Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil, da ANA, a irrigação é responsável pelo maior uso da água no País, correspondendo à metade da água retirada em território nacional. A irrigação, registre-se, utiliza um conjunto de equipamentos e técnicas para compensar a deficiência total ou parcial de água para as culturas. Atualmente, o Brasil conta com 8,5 milhões de hectares (Mha) equipados para irrigação. De acordo com o estudo da ANA, projeta-se um aumento de 42% das retiradas de água nos próximos 20 anos, passando de 1.947 m³/s para 2.770 m³/s, um incremento de 26 trilhões de litros anuais extraídos de mananciais. “Esses dados reforçam a necessidade de ações de planejamento para termos segurança hídrica, principalmente quando considerados os efeitos das mudanças climáticas no ciclo da água”, alerta a agência. 

Jordana pondera que as projeções de crescimento do uso da água na irrigação estão atreladas ao crescimento populacional no planeta e à necessidade de aumentar a produção de alimentos. Para a especialista, a preocupação quanto ao uso da água já é uma realidade no campo. “Agora, faz parte da gestão do negócio o manejo da água para que ela permaneça no solo e não haja escoamento ou carreamento de terra”, diz a especialista.  

Parcerias entre produtores e diferentes tipos de indústrias são fundamentais para o uso responsável da água. Além de mirar a economia dos recursos hídricos no processo industrial, a PepsiCo Brasil estimula a redução do uso de água também na cadeia produtiva, incluindo os fornecedores agrícolas. A companhia se assume como agrícola na sua “essência”, já que tem como principais matérias-primas a batata, o milho, o coco e a aveia – a grande maioria produzida no Brasil. “Somos uma das maiores compradoras de produtos agrícolas do País, com 450 mil toneladas de insumos adquiridos por ano, o equivalente a US$ 250 milhões”, diz Ricardo Galvão, diretor de Agronegócio da empresa.  

Daí a decisão da PepsiCo de apoiar práticas sustentáveis no campo junto aos produtores parceiros. “Na cultura da batata, estão em testes tecnologias como um sistema de captação de água da chuva, o reaproveitamento do recurso que seria descartado nas últimas etapas e a instalação de hidrômetros para monitorar e controlar o consumo”, diz o executivo da PepsiCo. Ainda de acordo com Galvão, foram adotadas outras práticas, como a utilização de aguapés nos tanques de decantação para filtrar e melhorar a água reutilizada e a instalação de sistemas de energia solar para diminuir o consumo energético. 

A partir da adoção dessas medidas, o consumo médio de água nas beneficiadoras de batata caiu 28%, o que representa uma redução de 45 milhões de litros por ano – o volume equivale ao consumo de uma cidade de 225 mil habitantes por um dia. O projeto está sendo ampliado para mais oito estações de beneficiamento de batata parceiras da PepsiCo no Brasil. Ainda em 2024 serão realizadas novas medições para aferição dos resultados do projeto. 

A PepsiCo tem em desenvolvimento um estudo sobre novas tecnologias de irrigação na cultura da batata. A iniciativa apontou que a substituição da irrigação realizada com canhão por um sistema aspersão pode trazer maior eficiência no uso do recurso natural. Nos testes conduzidos pela PepsiCo, foi estimado, nesse caso, um consumo 22% menor de água por tonelada de batata produzida por hectare. A adoção da irrigação por aspersão, segundo a empresa, resultaria em incrementos de rendimento de campo em cerca de 27%.   

No setor de papel e celulose, as empresas também investem em soluções voltadas à redução da demanda por recursos hídricos. A Bracell, uma das líderes globais na produção de celulose solúvel, pertencente ao grupo RGE, de Singapura, anunciou uma nova fábrica, em 2019, em Lençóis Paulista (SP), que agora é uma das cinco maiores do mundo e uma das mais sustentáveis. A água é um dos pontos centrais das estratégias ambientais da companhia para o negócio. 

Quando a fábrica foi projetada, uma das orientações era que fosse reutilizada a maior quantidade possível de água, conforme diz Alexandre Figueiredo, gerente sênior industrial da Bracell. Com isso, foi construída uma grande lagoa para a captação de água, reduzindo o consumo do Rio Tietê, que abastece a região. A lagoa, a 22 km da fábrica, tem a água bombeada para o sistema de tratamento, que faz o direcionamento para a unidade de produção. 

A mudança nos processos para o uso racional de água começou a partir de 2020. Figueiredo lembra que não foi uma trajetória simples. O processo de conscientização não é fácil, às vezes parecia que estávamos pregando no deserto”, diz. “Nas primeiras iniciativas, sempre tínhamos de conversar, lembrar sobre a importância da proposta. À medida que o resultado aparece, a adesão se torna natural e nossos colaboradores levam aquela conscientização também para casa.” 

As empresas do setor investem em diferentes frentes de trabalho para melhorar o relacionamento com a água. Na atividade de hortos florestais, a CMPC Brasil possui projetos que consistem no reúso de água e monitoramento hidrológico, como detalha o diretor florestal José Luiz Bazzo.

A implantação de uma Estação de Tratamento de Água (ETA) no viveiro Barba Negra fez toda a diferença. O efluente gerado no processo de produção das mudas é tratado para o uso novamente, garantindo a qualidade necessária para o retorno ao sistema de produção.  

O sistema capta, armazena, trata e utiliza a água da chuva no processo. No caso do monitoramento hidrológico, a empresa acompanha fatores que podem influenciar o curso de águas superficiais e subterrâneas. “A água é um bem público que vem se tornando cada vez mais escasso e de difícil acesso para as empresas e a população”, diz Bazzo. Por isso mesmo, o agronegócio tem buscado, de forma persistente, proteger o mais precioso dos recursos naturais.