Edição 41 - 21.04.24
Fabricantes chineses, que promoveram uma verdadeira revolução dos veículos eletrificados no Brasil em 2023, agora miram o público do campo com picapes cada vez mais tecnológicas
Por Lucas Bresser
O mercado automotivo brasileiro passa por duas grandes transformações. A primeira não é assim tão nova, mas ganhou mais força no ano passado: o sucesso comercial dos veículos grandes, com transmissão automática, muita tecnologia embarcada e, consequentemente, preços elevados. Essa é uma tendência global que se traduz na proliferação dos utilitários esportivos (SUVs) nas cidades e das luxuosas picapes gigantes no campo. A segunda transformação é um eco tardio do que tem acontecido nos mercados mais desenvolvidos: a multiplicação da oferta dos modelos eletrificados, que têm propulsão elétrica ou híbrida. As razões por trás dessa mudança são principalmente a busca por economia no custo do quilômetro rodado e a tentativa de reduzir o impacto ambiental – o que é especialmente percebido nos países que possuem matriz de geração energética mais limpa, como o Brasil.
A revolução elétrica demorou a começar por aqui, mas agora chega com maior intensidade pelas mãos dos fabricantes chineses. Marcas como GWM (Great Wall Motors) e BYD (Build Your Dreams) se juntaram à JAC Motors e à Chery (esta, associada ao grupo Caoa) para oferecer uma nova gama de produtos eletrificados e ocupar a lacuna deixada pelas tradicionais marcas americanas, europeias e japonesas. E as ambições delas não se restringem ao público da cidade: já há modelos e planos mirando o dinheiro do agro.
Atualmente, a JAC Motors é a única marca que oferece uma picape 100% elétrica no Brasil, a iEV-330P (R$ 354.900). De porte médio, o modelo pioneiro vendeu apenas 16 unidades em 2023, segundo o ranking de emplacamentos da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). Para os representantes da montadora no Brasil, os baixos números são um reflexo de desafios de infraestrutura. “O consumidor brasileiro típico que adquire picapes costuma usá-las em grandes distâncias, costumeiramente em áreas rurais”, diz Nicolas Habib, COO da JAC Motors Brasil.
O executivo destaca que, como a picape 100% elétrica possui autonomia de 300 km e ainda não há uma rede ampla de postos de recarga, a participação desse tipo de veículo é limitada. Mas isso não significa um arrefecimento nos planos da marca. “A JAC Motors enxerga esse segmento com grande entusiasmo, tanto que apressou a vinda da primeira picape média 100% elétrica do País e pretende ampliar sua participação em 2024 nesse segmento”, diz Habib. A JAC Motors também oferece no Brasil uma linha de caminhões e vans de carga 100% elétricos, além de veículos de passeio.
Para os “picapeiros” brasileiros que fazem questão de modelos eletrificados, a única concorrência da JAC iEV-330P atualmente é a Ford Maverick Hybrid Lariat (R$ 234.890). Lançado no ano passado, o modelo une o motor 2.5 a gasolina a um sistema de propulsão elétrico para gerar 194 cv de potência e 21,4 kgfm de torque. Neste caso, o grande diferencial é a autonomia, que chega aos 800 km com um tanque cheio. Em breve, o Brasil deverá contar com alternativas nesse segmento. A GWM tem planos de fabricar no País uma picape híbrida da linha Poer. O modelo, que terá porte de Toyota Hilux, deverá ser montado a partir de 2025 na antiga fábrica da Mercedes-Benz que a GWM comprou em Iracemápolis (SP) e contará com diversas adaptações para o mercado local, tanto de tecnologia quando de design.
Os representantes da marca já adiantam que os planos também se estendem a uma picape totalmente elétrica, embora ainda não falem em prazos. “A ideia é que inicialmente seja um modelo híbrido, podendo também ter a opção de 100% elétrico no futuro”, afirma Oswaldo Ramos, CCO GWM Brasil. Antes disso, no entanto, a GWM vai priorizar a montagem dos SUVs da linha Haval, que respondem pela maior parte das vendas no País.
Recentemente, a BYD, outra grande montadora chinesa com presença no Brasil, registrou na Ásia as patentes de uma futura picape média híbrida do tipo plug-in com até 500 cv de potência e 1.000 km de autonomia. Uma versão 100% elétrica também está nos planos, segundo a imprensa chinesa. Os primeiros protótipos já rodam pela região de Shenzhen. O modelo tem design assinado por Wolfgang Egger, alemão que projetou diversos carros da Audi. O lançamento internacional deve acontecer ainda em 2024 e a importação para o Brasil, segundo a imprensa especializada, pode ocorrer em seguida. Procurada, a BYD não confirmou os planos para o lançamento nacional.
A marca, no entanto, tem investido alto em nosso mercado, adquirindo a antiga fábrica da Ford em Camaçari (BA). Em janeiro, a direção da empresa anunciou que dobraria a previsão de empregos para a primeira fase da operação: de 5 mil para 10 mil postos, entre diretos e indiretos. O investimento inicial soma R$ 3 bilhões e as obras de instalação começariam em fevereiro. Inicialmente, a BYD vai fabricar na Bahia dois modelos elétricos (o hatch Dolphin e o SUV Yuan Plus) e um híbrido (o SUV Song Plus). No quarto trimestre de 2023, a BYD ultrapassou a americana Tesla como maior vendedor de veículos elétricos no mundo, entregando 530 mil exemplares.
Os investimentos no mercado nacional mostram que os planos dessas marcas não são de curto prazo. “As montadoras chinesas vêm examinando o mercado brasileiro há bastante tempo”, diz Milad Kalume Neto, representante da Jato do Brasil, consultoria especializada no mercado automotivo. “São empresas gigantes, de primeiríssima linha, entrando com produtos de ponta.” Os números de vendas do ano passado já foram suficientes para assustar montadoras com muito mais tradição no Brasil. Segundo a Fenabrave, apenas em dezembro de 2023, a BYD emplacou 5.500 carros, superando as francesas Peugeot e Citroën, ambas do Grupo Stellantis.
O segredo foi justamente explorar o nicho dos eletrificados, em que os produtos disponíveis ainda eram poucos e caros. “Enquanto os carros a combustão continuam ficando mais caros, os elétricos e híbridos vêm enfrentando uma competição importante, que ajudou a reduzir os preços, contando também com uma ajuda do câmbio favorável”, diz Milad.
Para Oswaldo Ramos, da GWM Brasil, é justamente a ruptura com a tradição dos modelos a combustão interna que abrirá as portas dos consumidores do campo para as novas marcas. “O campo é um dos públicos mais fiéis às marcas tradicionais, mas, quando acontece a disrupção da tecnologia, cria-se uma oportunidade”, afirma. “Nossa vantagem é que temos uma matriz de eletrificação muito evoluída e, por isso, somos muito competitivos.”
Nem só de produto competitivo se faz uma boa estratégia. Rede de distribuição e vendas, centros de manutenção, postos de carregamento rápido e um bom marketing são parte indissociável dos planos de entrada das marcas chinesas no Brasil. No caso da GWM, a meta é chegar a 133 pontos de venda e assistência, cobrindo todos os estados brasileiros, até meados de 2025. O plano é não focar apenas nas capitais, mas também estar presente nas cidades médias coladas ao agronegócio, abrindo cada vez mais espaço para os modelos atuais e para a futura picape.
Por enquanto, a principal barreira para a adoção de veículos 100% elétricos no Brasil é a baixa capilaridade dos postos de recarga rápida. “Para aqueles veículos destinados ao trabalho, como uma picape que transporte insumos dentro de uma fazenda, percorrendo curtas distâncias, a aceitação já poderia ser imediata, à medida que a questão da recarga é facilmente equacionada com o planejamento logístico”, diz Habib, da JAC Motors. “Já no caso dos veículos destinados aos consumidores do dia a dia, o desafio é maior, pois esbarra na questão das grandes distâncias percorridas e na falta de infraestrutura de recarga.”
A tendência é de que, com a popularização dos modelos eletrificados, o número de eletropostos aumente rapidamente. De acordo com a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), em dezembro de 2023, o Brasil contava com 4.300 eletropostos públicos e semipúblicos, contra 2.955 em dezembro de 2022. A expectativa é de chegar a 10 mil em 2025. O governo federal também desenvolve um programa dedicado à melhoria da infraestrutura para veículos elétricos no País. O projeto deverá se chamar “Corredores Sustentáveis” e será focado na expansão da rede de pontos de recarga. Ao que tudo indica, a revolução eletrificada no campo é uma questão de tempo. “A gente vê um potencial enorme de substituição do diesel por novas fontes de energia”, diz Ramos, da GWM Brasil. “O campo no Brasil é tecnológico, arrojado e sabe aplicar tecnologia de ponta.”