A força do etanol de milho

Brasil bate recordes de produção do biocombustível a partir do grão e olha com otimismo para o f


Edição 41 - 17.03.24

Brasil bate recordes de produção do biocombustível a partir do grão e olha com otimismo para o futuro da indústria

Lucas Bresser

Nunca o Brasil produziu tanto etanol de milho. Na safra 2022/23, dos cerca de 31 bilhões de litros do biocombustível fabricados no País, 14,2% – ou 4,4 bilhões de litros – tiveram o grão como matéria-prima. Menos de dez anos atrás, a proporção mal alcançava os 0,1%. Para o próximo ciclo, a expectativa é de uma expansão ainda maior, podendo chegar a mais de 6 bilhões de litros, com 20% de participação, segundo as projeções da União Nacional do Etanol de Milho (Unem) e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Poucas vezes na rica trajetória do agronegócio brasileiro uma mudança tão significativa ocorreu em tão pouco tempo.

Os fatores por trás dessa revolução se concentram especialmente na ampliação do complexo industrial, na maior relevância dos biocombustíveis na agenda nacional e internacional e na busca por alternativas de redução de risco no contexto das safras brasileiras. Engana-se quem pensa que milho e cana-de-açúcar travam uma briga nessa história. Segundo os especialistas consultados pela PLANT PROJECT, uma vez que o produto é exatamente o mesmo, as matérias-primas se completam, garantindo mais segurança em momentos de entressafra, eventos climáticos ou flutuação de preços.

“As duas cadeias são complementares”, diz Guilherme Nolasco, presidente executivo da Unem. “O etanol de milho trouxe mais previsibilidade ao abastecimento do biocombustível no mercado nacional, que ficou menos dependente da sazonalidade da produção da cana e da demanda do açúcar no mercado internacional.” Segundo o executivo, a indústria de etanol de cana-de-açúcar vem incorporando cada vez mais tecnologias e atualizando seus parques para o chamado modelo flex, que produz etanol de cana durante a safra e de milho na entressafra de cana, ou full flex, que produz etanol de cana e de milho ao mesmo tempo. Além disso, existem também as usinas conhecidas como full, que produzem apenas a partir do milho ou da cana. Atualmente, o Brasil possui 24 usinas com capacidade para produzir etanol de milho, considerando tanto aquelas que utilizam apenas o grão como matéria-prima como as que trabalham nos modelos flex, segundo levantamento da PLANT PROJECT junto a entidades do setor.

A ideia de que o milho veio para complementar é confirmada pelo presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), Evandro Gussi. Em visita recente a uma unidade produtora em Lucas do Rio Verde (MT), o executivo disse que “nomenclaturas adjetivando a matéria-prima dos biocombustíveis são desnecessárias”. Ele foi além: “Se produzido seguindo os pilares de sustentabilidade e baixo carbono, não nos interessa qual a matéria-prima do energético. E o crescimento da produção de etanol de milho reforça a importância do biocombustível no cenário de descarbonização da matriz de transportes”. A inclusão do termo “Bioenergia” no nome União da Indústria de Cana-de-Açúcar, ressalte-se, foi motivada em parte pelo crescimento da relevância do milho e do interesse dos associados em diversificar a produção.

Um levantamento da Unica junto à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) mostra que, para além das plantas já em operação, existem atualmente oito unidades com pedido de ampliação para incluir o milho como matéria-prima e nove pedidos para a construção de novas usinas capazes de produzir etanol a partir do milho. Uma das vantagens do milho é que ele não é tão suscetível à sazonalidade. A cana-de-açúcar, uma vez colhida, tem de ser utilizada imediatamente. Do contrário, perde qualidade e produtividade a partir de 24 horas. Já o milho pode ser armazenado por longos períodos. “O milho trouxe uma dinâmica diferente para o mercado”, diz o diretor de Inteligência Setorial da Unica, Luciano Rodrigues. “A safra de cana começa em março e vai até dezembro, mais ou menos. Via de regra, os meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março eram atendidos pelos estoques. Hoje, é diferente, pois você consegue armazenar milho durante o ano todo e produzir etanol sem interrupções.”

Além disso, o milho permite suprir as necessidades de etanol nos momentos em que é economicamente mais vantajoso fabricar açúcar em vez do biocombustível a partir de cana. A produção de etanol de milho ainda tem coprodutos como óleo de milho e, crucialmente, DDGS/DDG, farelos utilizados na alimentação animal que contêm proteínas, aminoácidos, minerais, vitaminas e substâncias imunoestimulantes. “A necessidade da intensificação da pecuária de corte e a pressão sobre áreas de pastagens de baixa produtividade impulsionam o DDG e o DDGS no mercado interno, além do mercado internacional, que busca no Brasil um potencial fornecedor de proteínas vegetais para nutrição animal”, diz Nolasco, da Unem.

Um estudo da Unica realizado a partir de dados das empresas certificadas no RenovaBio mostra que, em média, cada tonelada de milho rende 429 litros de etanol, 370 quilos de DDG/DDGS, 13,8 quilos de óleo e 0,25 CBio ou crédito de carbono (cada CBio equivale a retirar uma tonelada de CO2 da atmosfera). Já 1 tonelada de cana-de-açúcar rende entre 85 e 90 litros de etanol. O combustível é idêntico em ambos os casos, e pode ser tanto do tipo hidratado (que abastece diretamente os motores) quanto anidro (que é misturado à gasolina e tem menor teor de água). A favor da cana está o fato de que o próprio bagaço pode ser utilizado como biomassa, ou seja, queimado para produzir a energia elétrica que abastece as usinas. Já as usinas de etanol de milho dependem da queima de outros produtos. “Hoje em dia, normalmente se utiliza a floresta plantada, áreas de eucalipto”, afirma Luciano Rodrigues. “Mas já existem testes para se usar bambu como fonte de biomassa.”

A produção do etanol a partir da cana-de-açúcar também é tecnicamente mais simples, pois ele é um subproduto do açúcar. Em aproximadamente 11 horas de fermentação, o melaço fermenta e se transforma em etanol. No caso do milho, as usinas promovem a transformação química do amido, tornando o processo mais demorado e dispendioso. Isso porque, para a produção de etanol, é necessário que as enzimas quebrem o amido em diversas moléculas, resultando em maior número de etapas de beneficiamento.

O Centro-Oeste é responsável pela quase totalidade da produção de etanol de milho no Brasil (veja quadro). O Mato Grosso, líder na cultura, é o que mais fabrica o biocombustível a partir do grão. Os investimentos em ampliação ou construção de novas unidades também são direcionados majoritariamente à região. Dos 17 pedidos de ampliação ou construção de usinas de etanol de milho nas mãos da ANP, dez são em Mato Grosso, seguido por São Paulo (2), Alagoas, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul (1 cada). “Apesar de os ministérios serem os responsáveis pela formulação das políticas de governo, a ANP também contribui para o crescimento da produção de etanol, uma vez que atua nos processos de autorização e pauta as ações regulatórias em estudos técnicos consistentes, de modo a proporcionar segurança regulatória ao setor, contribuindo, assim, para os investimentos”, informou, em nota, a ANP.

De fato, o segmento tem atraído volume expressivo de investimentos. No ano passado, o grupo brasileiro Inpasa, maior produtor de etanol de milho da América Latina, anunciou que desembolsará R$ 1,2 bilhão na construção de uma usina em Sidrolândia (MS). Será a sua segunda unidade no estado – a outra fica em Dourados. Além disso, a empresa opera com duas usinas em Mato Grosso (Sinop e Nova Mutum) e duas unidades no Paraguai (Nova Esperança e San Pedro). Atualmente, a Inpasa processa 7,5 milhões de toneladas de milho por ano, para uma produção de 3,5 bilhões de litros de etanol e 1,8 milhão de toneladas de DDGS. Há muitos projetos em andamento. No ano passado, a São Martinho, uma das maiores empresas do setor sucroenergético do País, iniciou a produção de etanol de milho na unidade de Quirinópolis (GO). A nova unidade, associada à Usina Boa Vista, tem capacidade anual de moagem de milho de 500 mil toneladas e produção anual aproximada de até 210 mil metros cúbicos de etanol, 150 mil toneladas de DDGS e 10 mil toneladas de óleo de milho.

“Cada vez mais surgem novos empreendimentos em busca de rentabilidade de longo prazo”, diz Maria Flávia Tavares, economista, doutora em Agronegócio, consultora e professora no MBA em Gestão em Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (FGV). Uma das mais recentes é a unidade da Neomille em Maracaju (MS), que iniciou operações em dezembro de 2023. A planta do tipo “full milho” tem capacidade para ofertar 266 milhões de litros de etanol, 161 mil toneladas de DDGS e 10 mil toneladas de óleos, além de comercializar 51 GWh de energia elétrica. A Cerradinho Bioenergia, detentora da empresa, investiu R$ 1,080 bilhão na construção. A expectativa da empresa é de criar cerca de 200 empregos diretos e 600 indiretos. “Estamos aproveitando o movimento de crescimento do mercado, que deve continuar no mesmo ritmo nos próximos anos”, diz Renato Pretti, diretor executivo do Negócio Milho da Cerradinho Bioenergia. “O etanol de milho vem para complementar e incrementar a oferta no Brasil e no mundo, podendo representar nos próximos anos entre 20 e 30% de todo o etanol produzido e ofertado no Brasil.”

Para a Unem, a tendência é de que o etanol – e, por consequência, o etanol de milho – ganhe cada vez mais força diante das pressões globais por descarbonização. “A agenda de transição energética, descarbonização e mitigação dos efeitos do aquecimento global terá várias estratégias ao redor do mundo”, diz Guilherme Nolasco. “Com certeza o bioetanol terá papel importante na mobilidade veicular, na produção de Combustível Sustentável de Aviação (SAF), hidrogênio verde e na solução para combustível na navegação.” Essa realidade, aliada aos fatores de mitigação de riscos climáticos, sazonalidade e flutuação de preços, é o que motiva a perspectiva de que a produção de etanol de milho e cereais ultrapasse os 10 bilhões de litros em 2031.

Existem, no entanto, desafios importantes. Um deles é esclarecer, nos fóruns internacionais, as diferenças entre o etanol de milho brasileiro e o americano. “Uma parte da discussão que já foi resolvida pela cana vai ter de ser resolvida pelo milho”, diz Rodrigues, da Unica. “O etanol de milho considerado no contexto internacional é o americano, produzido em usinas a gás, muito mais poluentes.” É preciso, portanto, educar o mercado no sentido de que o etanol de milho brasileiro tem “pegada de carbono” mais próxima da do biocombustível produzido a partir da cana-de-açúcar, que por sua vez emite até 80% menos CO2 do que a gasolina.

Para Maria Flávia Tavares, também é necessário mirar na competitividade a partir do planejamento de longo prazo, da melhoria logística e do combate aos subsídios. “O que os Estados Unidos têm que a gente não tem? Planejamento de quatro anos, logística muito diferenciada e investimentos do governo a partir de subsídios”, diz a especialista. “São 576 bilhões de dólares todos os anos para várias cadeias produtivas. Mesmo a gente sendo eficiente, na hora de olhar para o mercado internacional, esses subsídios e a eficiência logística contam muito.”