O ano dos opostos

Em 2023, a euforia da safra recorde de grãos foi sucedida pela apreensão diante da estiagem mais i


Edição 40 - 14.01.24

Em 2023, a euforia da safra recorde de grãos foi sucedida pela apreensão diante da estiagem mais intensa deste século e da ocorrência de tempestades e tufões

Por Marco Damiani

Por muito tempo o ano de 2023 será lembrado pelo produtor rural por dois motivos opostos. A euforia de uma safra recorde de 322,8 milhões de toneladas de grãos foi sucedida, num piscar de olhos, pela apreensão diante da estiagem mais intensa deste século, de tempestades e tufões. “Nunca vivemos no Brasil uma situação como esta, de agressões climáticas simultâneas em diferentes regiões do País”, diz o engenheiro agrônomo Evandro Carmo Thiesen, diretor da Aprosoja-MT. “Houve alertas meteorológicos, mas o produtor mal teve tempo de se preparar. A virada do clima entre setembro e outubro foi muito veloz e radical.”

Os fenômenos naturais que desafiam o agronegócio neste momento estão em linha com a notícia dada pelo Observatório Copernicus, da União Europeia, e um dos mais respeitados do mundo: o dia 17 de novembro registrou, pela primeira vez na história, uma temperatura média global 2 graus centígrados acima do nível pré-industrial e 1,17 grau além da média registrada entre 1991 e 2020, numa disparada que descontrola o meio ambiente e impressiona os climatologistas. Sabe-se há tempos que as mudanças climáticas chegaram para ficar. Agora, estão em pleno avanço.

No Brasil, o clima se mostrou caótico no início do plantio da safra de soja. Na região Sul, ventanias e temporais causaram inundações em pelo menos 50 municípios, prejudicando a plantação de lavouras inteiras no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. O Paraná se tornou uma exceção, graças a uma melhor regularidade nas precipitações. No Sudeste e no Centro-Oeste, de onde saem 60% da produção nacional, a prolongada estiagem fora de época, acompanhada de pesadas ondas de calor, atrasou boa parte da semeadura.

As cenas de grandes rios transformados em alamedas de areia, no coração da região Norte, ressaltaram a dramaticidade da maior seca na região amazônica dos últimos 20 anos. Apesar de registrar temperaturas que superaram os 50 graus centígrados, o Nordeste foi beneficiado por chuvas mais regulares, proporcionando o plantio no momento tradicional, da Bahia ao Maranhão. Porém, grandes polos agrícolas, como os municípios de Barreiras e Luís Eduardo Magalhães, no oeste baiano, sofreram com uma longa ausência de chuvas.

Os extremos do clima atingem em cheio a produção agrícola. “Já está dada, para 2024, uma queda na produção brasileira de grãos, mas não se sabe ainda a exata dimensão dessa perda”, afirma o produtor Azael Pizzolato Neto, diretor da Aprosoja-SP e líder de uma operação com 2,5 mil hectares de soja em Jaboticabal, no interior de São Paulo. “Os preços em Chicago já subiram, num sinal de que as nossas dificuldades pontuais, que certamente terão reflexos na colheita e na safrinha do milho, estão sendo registradas pelo mercado.” A combinação do aumento da demanda mundial por farelo e as incertezas sobre a safra brasileira levaram o grão a uma tendência de alta na bolsa americana em outubro. Dá-se como certo, por outro lado, que Argentina, Uruguai e Paraguai, não afetados pelas anomalias do clima, terão um melhor desempenho em relação à safra passada.

No mercado agrícola brasileiro, já há comparações entre os futuros resultados da safra 2023/24 com os de 2015/16, quando a colheita total de 184 milhões de toneladas de grãos foi 12,2% inferior à obtida no ciclo anterior. “As condições climáticas entre aquela safra e a atual guardam muitas semelhanças”, diz o meteorologista Willians Beni, sócio e diretor de Comunicação da Climatempo. “Se o produtor quiser um parâmetro do que pode acontecer, acho essa uma boa referência.”

Autorizados a plantar a partir de setembro, muitos produtores adiaram a semeadura à espera de melhores condições hídricas. Entre os que plantaram, uma parte se viu pressionada a replantar, em razão do não desenvolvimento das primeiras sementes, mas sem garantias de melhor germinação. O uso de sementes mais resistentes e boas práticas que buscam minimizar os efeitos da seca estão disseminadas entre os produtores. “Em São Paulo e no Paraná, mesmo com pouca chuva, o agricultor plantou, mas em Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, com peso enorme no resultado nacional da safra de grãos, a maioria resolveu adiar até onde for possível, à espera das chuvas”, narra o produtor Pizzolato. “Não existe a opção de não plantar, porque todo um planejamento foi executado, com compras de sementes, fertilizantes e insumos feitas na metade deste ano.”

Debaixo de tempestades que castigaram regiões de excelência produtiva na região Sul, um antigo fantasma ressurgiu no Paraná: a ferrugem-asiática. Esse fungo infecta as plantas expostas a estresse hídrico e pode se propagar pelo ar, com o vento espalhando seus esporos microscópicos entre as plantações. O primeiro caso na atual safra foi identificado numa lavoura do município de Paranapanema. O Consórcio Antiferrugem, coordenado pela Embrapa, anunciou em seguida a ocorrência de mais 18 casos nos três estados sulistas e dois em Tocantins.

Manter a terra forrada por palha de milho, de cana-de-açúcar ou por braquiária, para reduzir a exposição ao sol, construir um perfil do solo, manter a terra compactada e aprofundar as sementes têm sido algumas das técnicas utilizadas para maximizar o potencial de crescimento das lavouras. O desequilíbrio de chuvas é um redutor da produtividade da safra. Vale nesse caso o que os agrônomos chamam de “lei do mínimo”, pela qual o desenvolvimento da planta estará sempre limitado pelo nutriente com menor presença no solo. No caso, a água, o mais importante dos insumos.

Na pecuária, em paralelo, os problemas se anunciam. Seco, o pasto não cresce, acarretando menor disponibilidade de forragem, perda de qualidade e queda do valor nutricional do capim. O gado passa a buscar mais sustento, aumentando o pisoteio e piorando a qualidade do solo. Abre-se um ciclo negativo, no qual a engorda demora mais tempo. Na Amazônia Legal, onde está 40% do rebanho de 196 milhões de animais do País, pecuaristas têm realizado vendas antecipadas, abaixo do peso ideal, diante da perspectiva de uma engorda dificultada nos próximos meses.

A tecnificação das lavouras é um trunfo do agronegócio brasileiro para enfrentar a severidade climática. O desenvolvimento de sementes mais bem adaptadas às hostilidades do clima seco ou chuvoso está entre os diferenciais. O mercado oferece uma série de opções para o plantio, que já enfrentaram com sucesso diferentes testes de estresse. Na mesma direção segura, os bioinsumos têm sido cada vez mais decisivos nos resultados das colheitas.

Uma das mais recentes descobertas da Embrapa é a rizobactéria extraída do cacto mandacaru, exaltado em prosa e verso na cultura popular, típico do semiárido nordestino. Após nada menos que 12 anos de pesquisas lideradas pelo cientista Itamar Soares de Melo, acrescidos de três anos de testes, a equipe da Embrapa Jaguariúna chegou ao bioinsumo Auras, presente no mercado desde 2021. Quatro milímetros do líquido extraído da Bacillus aryabhattai CMAA 1363, adicionados a 1 quilo de sementes, provocam o aumento do tamanho das raízes das plantas, que crescem mais profundamente à procura de água no subsolo. Projetada para o milho, a biossolução já está adaptada à soja e os estudos avançam em direção ao café e à cana-de-açúcar.

As pesquisas públicas, de instituições acadêmicas e de empresas privadas já produziram uma série de sementes de soja aptas a aproveitar ao máximo qualquer ocorrência de chuvas. “O crescimento da planta ficou mais rápido”, diz o sojicultor Pizzolato. “O produtor sabe que não está sozinho, porque já tem um longo histórico de apoio de técnicos e cientistas que ajudaram a tornar a agricultura brasileira uma das mais eficientes do mundo.” A soma da capacidade científica com a técnica e a resiliência dos produtores brasileiros é a melhor garantia de que o agronegócio está preparado para combater os efeitos das mudanças climáticas na atividade produtiva.

A expedição da seca

Grupo de técnicos percorre 8 mil quilômetros dentro do Mato Grosso para verificar efeitos da estiagem durante o plantio das lavouras de soja

Uma expedição que percorre 8 mil quilômetros dentro do Mato Grosso, um dos estados mais afetados pela estiagem no início do plantio da safra de soja, está mapeando a situação de lavouras de todos os portes. Criada por técnicos da Aprosoja-MT, a missão busca conhecer as dificuldades enfrentadas pelos agricultores. Em episódios apresentados no canal da entidade no YouTube, os sete participantes do projeto se revezam nas viagens para avaliar o desempenho da semeadura nas regiões produtivas do estado e compartilhar informações de boas práticas.

“Com a virada do clima a partir de setembro, passamos a receber relatos bastante preocupantes de nossos associados”, diz Evandro Carmo Thiesen, diretor da entidade, que possui 8 mil produtores filiados. “Havia muita informação desencontrada, sem consistência de registro. Decidimos, então, documentar in loco o quadro real desse início de safra.” Com as câmeras dos celulares, os técnicos têm colhido cenas e informações preciosas das agruras causadas nas lavouras pelas mudanças climáticas.

No tradicional município produtor de Pedra Preta, na região de Rondonópolis, um trio de expedicionários encontrou diversos talhões com as plantas inteiramente queimadas pela ação do sol e a ausência de chuvas. “As folhas esfarelaram em nossas mãos”, diz Thiesen, que participa do revezamento. “A maioria dos danos é irreversível.” Após visitar plantações em Campo Verde e Nova Mutum, na região Sul, ele não esconde o espanto. “Naquelas terras ricas e de cultura de soja consolidada, este ano a situação começou catastrófica.”

Há forte preocupação com os prejuízos econômicos para os produtores que não conseguirem fazer a sua safrinha de milho. Em relação à soja, a constatação dos técnicos é a de que plantas que ultrapassarem vivas a estiagem não terão um crescimento adequado. A produtividade deverá ficar comprometida.

Nas fotos sem retoques, o que se vê são plantas ressecadas, sementes quebradas e folhas frágeis. Uma parte delas atingiu o estágio de murcha permanente. Na última semana de novembro, felizmente, a projeção de ocorrência de chuvas após o afastamento de uma zona de pressão atmosférica aumentou as esperanças de recuperação da safra no Mato Grosso. “Alguma chuva, mesmo atrasada, nos dará uma recuperação expressiva”, projeta Thiesen.

 

“Estamos preparados”

Chefe-geral da Embrapa Territorial, Gustavo Spadotti diz que a empresa está pronta para enfrentar os desafios climáticos

No ano em que completa meio século, a Embrapa tem pela frente o maior desafio científico desde a sua fundação, em 1973. Neste momento de extremismo climático, a empresa avança em pesquisas de bioinsumos, também conhecidos como bioprodutos, capazes de reduzir os efeitos da seca e do excesso de chuvas no campo. “Buscamos soluções que mantenham a agropecuária brasileira como a mais inovadora do mundo”, define o engenheiro agrônomo Gustavo Spadotti, chefe-geral da Embrapa Territorial, braço da empresa pública encarregado de colher, analisar e compartilhar informações científicas com os agentes do agronegócio.

Mestre e doutor em agricultura, ele reconheceu que a safra 2023/24 começou sob as condições desafiadoras. Confira a entrevista a seguir.


Diante da força destrutiva dos eventos climáticos neste ano, qual é o cenário para a safra de soja?

O primeiro passo foi um tropeço. Uma grande massa de agricultores foi pega de surpresa pela extensão da estiagem no Sudeste, Centro-Oeste e Norte e a força das intempéries no Sul. A virada de chave foi muito rápida, com enormes variações de temperatura e pressão a partir do final do mês de setembro. Quanto maior o estresse, menor é o potencial de ganho.

Há um comprometimento do resultado final da safra?

Acredito que sim. Com a falta de chuvas, plantios foram adiados e outros tiveram de ser refeitos. O atraso em muitos casos chega a ser de um mês em relação à data ideal. A tendência é de colheitas tardias. A dificuldade da soja poderá ser transmitida para a safrinha, o que vai acarretar problemas para as culturas de milho, trigo, cevada, aveia, centeio, feijão, algodão e outras.

Já é possível dimensionar as perdas?

Não, é muito cedo. A ocorrência de chuvas onde há seca e de redução das tempestades terá impacto direto para mudar o atual panorama. Muitas variedades de sementes respondem com grande eficiência a pequenas precipitações. As descobertas científicas da Embrapa e de outras instituições públicas e privadas têm dado mais alternativas de manejo aos produtores. É claro que, quanto mais tecnificada for uma lavoura ou operação de gado, maior será a sua capacidade de enfrentamento às mudanças climáticas.

O que a Embrapa Territorial propõe para que a safra não fracasse?

Dar continuidade ao trabalho de integração entre produtores e técnicos que vem dando resultados expressivos nos últimos 50 anos. Ultrapassamos juntos uma série de anomalias, não será diferente agora. A agricultura de precisão, em que cada detalhe conta, precisa ser estendida a um maior número de produtores rurais. Manter o pequeno produtor informado em tempo real sobre as inovações para o cultivo deve ser encarado como prioridade. A Embrapa está preparada para enfrentar os desafios de nosso tempo.