Edição 40 - 21.01.24
Varejo desenvolve soluções inovadoras para diminuir as perdas bilionárias em alimentos descartados por causa da validade
Por Paula Pacheco
O país que lidera a produção mundial de diferentes tipos de alimentos vive uma triste contradição. De um lado está uma parte da população que não faz as refeições diárias por absoluta falta de recursos. De outro, toneladas de mercadorias são desperdiçadas em diferentes camadas – desde o transporte no campo aos centros de distribuição, do estoque às gôndolas dos supermercados.
Parte do problema deve ser atribuída diretamente à validade dos produtos, uma regra obviamente bem-vinda, mas que, administrada de maneira inadequada, acaba por gerar perdas bilionárias. Um estudo realizado recentemente pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) constatou que R$ 3 bilhões em produtos alimentícios são descartados todos os anos em virtude da obrigatoriedade de cumprimento do prazo. O dado é ainda mais alarmante considerando a insegurança alimentar que aflige milhões de brasileiros.
O descarte de alimentos por causa do prazo de validade sempre impõe desafios ao varejo, em menor ou maior intensidade. Hoje em dia, muitas redes reservam uma parte de suas gôndolas para vender com desconto as mercadorias próximas do vencimento. A iniciativa, contudo, não é suficiente para resolver o problema. O combate ao desperdício ganha mais importância no setor graças, principalmente, a dois fatores: a redução da margem dos varejistas nos últimos anos e o crescimento do debate em torno do conceito ESG, que trata da estratégia ambiental, social e de governança das empresas.
Os investimentos em tecnologia e inovação têm ajudado as redes varejistas a combater as perdas. Recentemente, o Grupo Pão de Açúcar anunciou ter reduzido em 20% o total de alimentos que seriam encaminhados a aterros sanitários – um avanço e tanto, reconheça-se. Segundo a empresa, o volume foi alcançado depois da criação de uma plataforma de gerenciamento de preços de produtos que estão perto da data da validade. Com a ferramenta, tem sido possível agilizar a venda das mercadorias graças a descontos que vão de 10% a 80%.
O combate ao desperdício estimulou o surgimento de diversos projetos inovadores. A foodtech b4waste foi fundada há dois anos para atuar como ponte entre o varejo e o consumidor – e, dada a importância do tema e o potencial de negócios, atraiu investimentos de fundos da Espanha, China, Argentina e dos Estados Unidos. Rodrigo Chaimovich, COO da empresa, acumula experiências profissionais em gigantes como Unilever e Danone. “Vi de perto os produtos sendo desperdiçados, seja na indústria ou no varejo”, diz. “Muitas vezes, as mercadorias são descartadas faltando cinco dias para acabar a validade.”
Atenta ao problema, a startup desenvolveu um aplicativo no qual o varejista cadastra os produtos próximos do vencimento. O consumidor que tem acesso ao app faz a compra e pode receber o pedido em casa ou retirar na loja. Atualmente, o dispositivo da b4waste conta com cerca de 30 mil clientes ativos. Ao menos 150 lojas plugaram seus produtos na plataforma, que tem presença em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Entre as redes estão a Lopes, Dia Empório São Paulo e D’Avó. Há planos de expansão para mais cidades brasileiras e, no futuro, a empresa planeja iniciar um processo de internacionalização.
Segundo Chaimovich, 50% dos itens colocados no app são vendidos. A meta é aumentar o percentual, mas há desafios no caminho. Algumas mercadorias não têm apelo junto ao consumidor exatamente por estarem próximas do vencimento, como os packs com 12 unidades de iogurte. Por sua vez, itens como macarrão, bolacha e cervejas, mesmo se a validade estiver muito próxima, tem perto de 100% de efetividade nas vendas.
“É um recurso que gera valor em produtos que seriam jogados fora, tanto para o varejista quanto para o consumidor, que muitas vezes volta a ter acesso a mercadorias abandonadas por causa do preço”, diz o sócio da foodtech, que oferece, em média, 20 mil itens diferentes (ou SKU, sigla para Stock Keeping Unit, a Unidade de Manutenção de Estoque) por mês.
A inteligência artificial também é aliada da redução do descarte. O Hortifruti Natural da Terra (HNT) decidiu investir na própria plataforma para gerenciar a validade das mercadorias e reduzir as perdas. O perfil de negócio da rede, com quase 80 lojas, é muito focado em alimentos frescos – são compradas 200 toneladas por dia –, o que torna o problema ainda mais preocupante. Quase metade do faturamento da empresa vem de produtos extremamente frescos, enquanto no mercado a média é de 20%.
A rede desenvolveu um software próprio, dotado de recursos da inteligência artificial, que, em apenas três meses (de julho a outubro), poupou cerca de 500 toneladas de produtos frescos que seriam descartados e queimariam a margem da empresa, conforme revela Igor Albuquerque, diretor de Planejamento Comercial e Supply. A ferramenta foi batizada de “automate” – combinação em inglês das palavras automatização e tomate. Lançada há 18 meses, a IA tem ajudado a traçar a previsão de vendas das lojas. Com isso, a empresa planeja melhorar as compras e lançar mais promoções. O que não é vendido, tanto na loja quanto nos apps parceiros, é destinado a bancos de alimentos ou segue para o refeitório da rede.
Antes de partir para a solução caseira, Albuquerque procurou alternativas nas grandes empresas de tecnologia, mas percebeu que havia uma carência de ferramentas que lidassem bem com o segmento de produtos frescos e suas características. “Era comum encontrar algo montado para fazer o planejamento de compra e venda de biscoito, refrigerante ou cerveja, mas não de hortifrútis, que levam apenas 25 horas, em média, do campo à mesa”, afirma.
No começo do desenvolvimento do software, lembra o executivo, tudo era aprendizado. Tanto que o gerente da loja-piloto acertava mais do que o algoritmo. Com o passar do tempo, contudo, a máquina acumulou aprendizado e hoje seu índice de acurácia é de 90%. O desempenho do software tem sido tão satisfatório que a Natural da Terra estuda a possibilidade de, no futuro, levar a solução para o mercado e vendê-la para redes menores. “Para nós, houve uma visão clara de que a ferramenta seria um diferencial competitivo, já que as perdas são muito relevantes nesse negócio”, afirma Albuquerque. “Por isso, acreditamos que ela poderá ser útil para reduzir as perdas para além de nossas lojas.”
A inovação, de fato, facilita o controle do fluxo das mercadorias. Ricardo Salazar de Farias, sócio da Whywaste, diz que a empresa se especializou em levar a tecnologia para dentro da operação varejista. Seu software identifica a forma de venda de alimentos mais inteligente e oferece soluções para o setor de farmácias. Os recursos permitem ainda orientar o volume a ser comprado, de acordo com o que há em estoque e a validade das mercadorias.
O executivo destaca que os funcionários das lojas têm papel importante no processo da Whywaste. O app, instalado nos smartphones, “lê” quais itens estão entrando em um período crítico. Entre os clientes está a rede Oxxo. “O problema costuma ser maior nas lojas de conveniência, que trabalham, em média, com mil SKUs, mas contam com dois funcionários para reabastecer, arrumar o estabelecimento e cuidar do caixa”, diz Freitas. “Eles não têm tempo para a checagem da validade, por isso é preciso adotar um facilitador. Com a nossa ferramenta, o tempo dedicado a esse trabalho não ultrapassa os dez minutos.”
O sistema da Whywaste define a ação a ser realizada pelo funcionário na loja para fazer a verificação, que vê na tela do celular, em tempo real, quais são os itens críticos. A tecnologia aponta o estágio em que está o produto por meio de cores, como em um semáforo. O verde mostra que o item está ok, o amarelo alerta sobre a necessidade de algum tipo de estratégia (como descontos) e o vermelho indica que é hora de retirá-lo da gôndola.
Medidas são insuficientes
É preciso ampliar as ações de combate ao desperdício
As iniciativas criadas pelo varejo para combater o desperdício, como as inovações da rede Hortifruti Natural da Terra, ainda são exceções no mercado brasileiro.
Atualmente, boa parte do trabalho para evitar o descarte de alimentos próximos do vencimento passa apenas pelo controle de estoque da loja, que, em geral, não consegue resolver o problema. Pelo menos é isso o que diz Rodrigo Catani, head da Gouvêa Consulting e estudioso do tema.
“Muitas vezes, quem trabalha nas lojas não está preparado para essa função”, afirma o consultor. “Até porque é preciso ter agilidade e nem sempre a estrutura para o recebimento de mercadorias no supermercado é adequada.”
Apesar do volume expressivo de perdas, o que se vê no varejo nacional são ações apenas pontuais, como a oferta de produtos em uma espécie de outlet nas lojas, descontos no fim do dia de alimentos preparados ou de panificação, ou ainda áreas dedicadas a itens de hortifrútis que estão fora do padrão de tamanho ou formato. Nada disso, entretanto, é suficiente para combater efetivamente o problema.
Para Catani, a questão central é que nem sempre as iniciativas dos varejistas conseguem encontrar a adesão do consumidor. “Não é sempre que os clientes, mesmo com os descontos, se sentem atraídos pelos produtos próximos do vencimento ou que não têm uma boa aparência, mesmo que estejam aptos para o consumo”, afirma o consultor. “Infelizmente, há uma questão cultural a ser superada.”