Edição 39 - 29.10.23
Por que a produção de hidrogênio a partir de fontes renováveis poderá representar o próximo grande salto do mercado global de energia
Por Romualdo Venâncio
A preocupação mundial com as mudanças climáticas tem elevado a temperatura dos debates sobre as soluções que possam frear seus efeitos nefastos. As nações que compreenderam a urgência dessa pauta, seja pelas questões socioambientais, seja pelo apelo econômico-financeiro – ou por ambos –, apertaram o passo rumo aos compromissos com a sustentabilidade do planeta, buscando zerar ou diminuir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). No caminho dessa transformação está a redução do uso de combustíveis fósseis, para que deem lugar a opções renováveis. É nesse cenário que começa a ganhar notoriedade o hidrogênio verde (H2V), gás produzido a partir de fontes renováveis e que promete impactar os vários segmentos da cadeia energética, de ponta a ponta, da originação à utilização.
Quando se fala em energia limpa, o Brasil surge como candidato ao protagonismo. A privilegiada posição está fortemente relacionada ao grande potencial de produção de hidrogênio verde com custo mais atrativo, em decorrência da ampla disponibilidade de fontes de energia renovável – hidrelétrica, biomassa, eólica e solar, e ao fato de contar com uma rede de energia limpa e integrada. De acordo com levantamento da consultoria McKinsey, essas características poderão tornar o Brasil um dos maiores produtores mundiais de H2V, além de grande consumidor: 60% da oferta total do gás pode ser consumida internamente, criando um mercado adicional potencial de US$ 5 bilhões a US$ 20 bilhões.
Os números de investimentos no setor já vinham seguindo essa tendência. “Cerca de US$ 20 bilhões já foram anunciados em projetos de hidrogênio no Brasil, em diferentes estágios de maturidade”, informa o Ministério de Minas e Energia (MME), que coordena o Programa Nacional de Hidrogênio (PNH2). Esses recursos englobam iniciativas de pesquisa, desenvolvimento e análise de viabilidade técnica e econômica. O MME comunica ainda que a progressão do mercado de hidrogênio de baixo carbono é uma das prioridades do atual governo, inclusive por ser considerado estratégico para a promoção do processo de transição energética mundial. “Além de gerar emprego e renda no País, produzindo impactos socioeconômicos e ambientais positivos”, complementa o MME.
Nos próximos anos, o cenário poderá mudar radicalmente. Segundo a McKinsey, nas próximas duas décadas, com uma ampla participação do H2V nos segmentos de combustível e matéria-prima industrial, e sua contribuição para descarbonizar a matriz energética mundial, o Brasil poderá atrair investimentos da ordem de US$ 200 bilhões.
A transição energética, de fato, começa a estimular o surgimento de projetos ambiciosos. No primeiro semestre de 2023, a empresa de energia Engie assinou um protocolo de intenções com a Invest Paraná para desenvolver no estado projetos em grande escala de produção de hidrogênio verde. Além disso, também firmou um memorando de entendimento com o governo do Ceará para levar adiante um projeto no Porto do Pecém, com vistas à exportação do hidrogênio verde ou seus derivados.
“Estamos buscando oportunidades para desenvolver projetos de produção de hidrogênio verde e seus derivados tanto para exportação quanto para atender a demanda interna das indústrias brasileiras que buscam descarbonizar seus processos produtivos”, diz Eduardo Sattamini, diretor-presidente e de Relações com Investidores da Engie Brasil Energia. “O Brasil tem todos os fundamentos para assumir uma posição de destaque na indústria de hidrogênio verde dada a sua matriz elétrica abundante em energia renovável.”
Insumo para diversos segmentos, o hidrogênio atende desde armazenagem e geração de energia a partir de células de combustível (como no caso de veículos de pequeno e grande porte), até as indústrias siderúrgica, química, petroquímica, agrícola, alimentícia e de bebidas. Também é utilizado no processo de aquecimento de edificações e como combustível para aviões e navios. E pode ser uma alternativa interessante para setores com dificuldade para abater emissões de carbono. Daí a amplitude das oportunidades para a sua versão verde.
A aviação, que representa entre 2 e 3% das emissões globais de GEE, está no grupo com restrições para a descarbonização. Uma saída interessante vem exatamente pelos combustíveis sustentáveis, que poderiam reduzir em 70% as emissões do setor, segundo a McKinsey. Vendidos desde 2011, os combustíveis sustentáveis da aviação (SAF, na sigla em inglês) devem representar cerca de 40% da demanda total de energia no segmento até 2050. Longe de querer perder a chamada para esse voo de negócios, fabricantes das aeronaves levam a mudança para as linhas de produção.
A Embraer Aviação Comercial tem investido em quatro conceitos diferenciados de aeronaves movidas por novas tecnologias e energias, com opções para 19 e 30 lugares. Chamada de Energia Family, a nova linha foi concebida sob o conceito conhecido como “Sustainability and Action”. Dois desses modelos – um de cada tamanho – preveem propulsão elétrica a hidrogênio. Tanto sua arquitetura quanto as tecnologias envolvidas estão em fase de avaliação da viabilidade técnica e comercial. Segundo o presidente e CEO da empresa, Arjan Meijer, as metas para colocar tais conceitos no mercado são ousadas, porém realistas. “Temos avaliado diferentes arquiteturas e sistemas de propulsão”, afirma o executivo. O processo de modernização da companhia é uma iniciativa para zerar as emissões poluentes na indústria da aviação até 2050.
Se é possível que o hidrogênio verde revigore o transporte aéreo, por que não o terrestre? O Research Centre for Greenhouse Gas Innovation (RCGI), instituição financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Shell Brasil, está trabalhando em três frentes de pesquisa para responder a tal questionamento. O primeiro projeto, que está mais avançado, consiste na conversão de etanol em hidrogênio por meio do calor, em um processo de reforma térmica. A base para esse estudo é uma planta-piloto construída na Universidade de São Paulo, na capital paulista.
A instalação da planta-piloto resulta da parceria que envolve as empresas Raízen e Hytron e o Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai Cimatec). A Shell Brasil está investindo cerca de R$ 50 milhões no projeto, que inicialmente produzirá 5 quilos de hidrogênio por hora e abastecerá três ônibus da Cidade Universitária da USP, com o primeiro já circulando este ano. “A estação experimental suprirá um ônibus a célula combustível, alimentado com hidrogênio”, afirma o pesquisador do RCGI e professor da Escola Politécnica (Poli) da USP, Thiago Lopes. “Funcionará como um posto de combustível para o ônibus, podendo, no futuro, alimentar outras unidades de consumo exclusivas do campus.”
O segundo projeto do RCGI visa à conversão de etanol em hidrogênio por meio de uma reforma eletroquímica. A principal diferença é a utilização de elétrons no lugar de calor, com uma tecnologia alternativa mais próxima da eletrólise da água, processo mais comum para produção de hidrogênio. O terceiro envolve o melhor aproveitamento da vinhaça, subproduto líquido da fabricação de etanol – são entre 10 e 14 litros para cada litro do combustível –, que já tem aplicação na fertirrigação dos próprios canaviais e na produção de biometano. Levando-se em consideração a produção nacional de etanol em 31,2 milhões de m3, segundo levantamento da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), é possível ter uma ideia das oportunidades para a cadeia produtiva sucroenergética no negócio de H2V.
Novos pontos de conexão entre empresas que atuam no agronegócio surgem nessa linha de aplicações. A Yara Brasil, uma das principais fabricantes de fertilizantes, fechou contrato com a Raízen para o fornecimento diário de 20 mil m3 de biometano para sua unidade em Cubatão (SP). O volume equivale a 3% da demanda total (700 mil m3) da unidade. Novas tecnologias desenvolvidas pela Yara Brasil podem transformar o biogás, produzido a partir de vinhaça e torta de filtro, em insumo para a fabricação de amônia verde que, segundo a empresa, é considerada uma das maneiras mais seguras e econômicas para armazenar e transportar o hidrogênio verde, devido à sua complexidade. Portanto, desempenhará um papel fundamental na nova economia de hidrogênio.
No campo da pesquisa, o Senai também aparece de mãos dadas com a Federação Alemã de Associações de Pesquisa Industrial (AIF). A parceria envolve investimentos de R$ 21 milhões destinados a pequenas e médias empresas, startups e organizações de pesquisa e tecnologia, do Brasil e da Alemanha. O objetivo é financiar dez projetos de desenvolvimento de tecnologias voltadas à produção de hidrogênio verde. A aproximação entre os dois países, por meio de seus centros de pesquisa e inovação, estimula ainda a troca de expertise no setor.
Diversos exemplos mostram que o hidrogênio verde está no centro dos holofotes. Um caso interessante é o da Shell Brasil, que investe em H2V na região norte do Rio de Janeiro. A companhia iniciou, no ano passado, uma parceria com o Porto do Açu para o desenvolvimento conjunto de uma planta-piloto voltada à geração de hidrogênio verde no local. A verba que a Shell Brasil destina à planta-piloto integra um montante que poderia chegar a US$ 120 milhões, atendendo o compromisso com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) de aplicar uma porcentagem de sua receita bruta anual em projetos que estimulem a pesquisa e a adoção de novas tecnologias no setor de energia.
Segundo a organização de Porto do Açu, já existe ali o maior parque termelétrico a gás da América Latina, com 3 GW, e está em desenvolvimento outro parque, de energia eólica e solar, que chegará a 2,4 GW. A nova unidade, com previsão de estar pronta em 2025, terá capacidade inicial de 10 MW, com possibilidade de chegar a 100 MW. De acordo com a Shell Brasil, parte do hidrogênio gerado no local ficará armazenada antes de seguir para potenciais consumidores. O remanescente abastecerá a planta de geração de amônia renovável.
Como a principal condição para o hidrogênio ser considerado verde é que seja gerado a partir de fontes renováveis, sua expansão consequentemente alimenta e aquece os setores que estão nessa base. Os ventos e a luz solar tendem a ganhar cada vez mais destaque nesse processo. Conforme o levantamento da McKinsey, até 2040 as duas modalidades deverão responder por 47% da capacidade total instalada de geração de energia elétrica no Brasil, ultrapassando a energia de origem hidrelétrica, fóssil e de biomassa. Em termos de mercado potencial adicional, a consultoria estima US$ 5 bilhões até 2030 e US$ 11 bilhões até 2040.
O horizonte favorável à entrada do hidrogênio verde na matriz energética também chamou a atenção da maior companhia do setor elétrico da América Latina. Os passos da Eletrobras nesse mercado a colocam na posição de pioneira. A empresa gerou as primeiras toneladas do H2V no País a partir de um projeto-piloto implantado em 2021 na Usina Hidrelétrica de Itumbiara, na divisa entre Minas Gerais e Goiás.
A meta era realizar uma análise detalhada sobre viabilidade da tecnologia de geração do H2V por eletrólise, com base nos custos de produção, operação e manutenção do empreendimento, eficiência e durabilidade dos equipamentos, qualidade do gás gerado e aspectos relacionados à sua reconversão em energia elétrica. A Eletrobras confirmou já ter condições de aplicar em grande escala o conhecimento desenvolvido até agora, com projetos de grande porte.
São muitos os fatores que direcionam o hidrogênio verde para um horizonte promissor, mas os desafios persistem. Entre eles, a McKinsey destaca a regulamentação do setor, que precisa ser aprimorada. A McKinsey chama a atenção também para a aplicação final do H2V e seus derivados e a formação da cadeia de transporte para o gás renovável, etapa que pode elevar o custo total de produção. Segundo a consultoria, “capturar de maneira eficaz as oportunidades dentro da realidade da nova economia verde dependerá de ecossistemas colaborativos”. O hidrogênio verde é um caminho sem volta. E o melhor: o Brasil está pronto para liderar as transformações trazidas pela nova era.