O VERDE RESPIRA

Projeto-piloto realizado em 100 mil hectares de floresta degradada coloca o cacau, de cultura histó


Edição 38 - 13.09.23

Projeto-piloto realizado em 100 mil hectares de floresta degradada coloca o cacau, de cultura histórica no Brasil, no epicentro da recuperação do bioma amazônico 

Por Virgínia Alves 

Uma das mais antigas culturas do Brasil, responsável por ciclos de riqueza e prosperidade, está na raiz de um dos mais inovadores projetos de recuperação do bioma amazônico em curso no País. O cacau, com toda a sua história e tradição, é a referência principal de um plano-piloto para o reflorestamento de áreas degradadas que mobiliza investimentos de R$ 33 milhões no município de Alta Floresta, na divisa do Mato Grosso com o Pará. 

Responsáveis pela iniciativa, a multinacional Cargill e a Belterra Agroflorestal intencionam recuperar 100 mil hectares da Amazônia Legal, divididos em diferentes propriedades rurais, num prazo de até cinco anos. O ponto de partida é a plantação e o desenvolvimento de árvores cacaueiras, resilientes ao clima da região e capazes de fazer vicejar, às sombras de suas folhas, uma série de produtos de ciclo curto de cultivo, como milho, arroz, feijão, mandioca e banana.   

“O cacau é uma espécie-chave para a recuperação de áreas degradadas, pois retém a umidade no solo e o fertiliza, além de ser bastante eficiente em proteger o terreno quando ocorrem enxurradas”, diz o engenheiro agrônomo Valmir Ortega, fundador da Belterra. “Em termos de sustentabilidade econômica, o cacau pode ser muito rentável, uma vez que a totalidade da produção brasileira não consegue suprir nem mesmo as necessidades do mercado nacional”, acrescenta. O executivo ressalta que, na perna social do conceito ESG, essa fruta demanda um manejo bastante manual, o que significa emprego para muita gente em sua cadeia produtiva. 

 O programa vai envolver fazendas em que a Belterra opera como orientadora de planos de desenvolvimento sustentável. O Banco Cargill destinará R$ 33 milhões para que os produtores rurais locais tenham condições de implantar a cultura do cacau em suas propriedades.

O retorno esperado para cinco anos, em termos de reflorestamento, prevê a produção e venda das culturas de ciclo curto antes de esse período se completar. “A Cargill comprará o cacau produzido pelas fazendas onde a Belterra opera”, anuncia Bruno Cheble, líder de Originação para Alimentos e Ingredientes da Cargill. “Além de fomentar a atividade de agronegócio, estamos reforçando nossas parcerias para espraiar as práticas de agricultura sustentável a todos os nossos fornecedores, parceiros e clientes.” 

Para desenvolver o projeto, as duas companhias reuniram alguns dos mais relevantes especialistas em restauração florestal do Brasil, incluindo professores e pesquisadores de importantes universidades brasileiras e instituições, como a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), a Conservation International (CI), o Instituto Perene, a SLC Agrícola, a WayCarbon, o World Resources Institute (WRI) e as consultorias Agroicone, Bioflora e Solidaridad. 

Os primeiros registros da produção em escala no Brasil vêm do ano de 1679, quando a Coroa Portuguesa deu legalidade ao cultivo do produto no País e estabeleceu as primeiras regras de comercialização. “Cada cacaueiro pode render, anualmente, oito reais de prata, livres de quaisquer despesas”, escreveu naquele período, em carta que entrou para a história, o jesuíta Cristóbal de Acuña, arrematando: “E bem se pode ver com quão pouco trabalho se cultivariam tais plantas nesse rio (Amazonas) pois, sem nenhum artifício, a natureza sozinha as enche de abundantes frutos”. 

Originário da própria Amazônia, onde teve seu primeiro ciclo extrativista no século 17, o cacau teve suas sementes levadas para o sul da Bahia no século seguinte, onde assumiria a substituição da cana-de-açúcar, cujo apogeu chegara ao fim. Ali, ergueu fortunas e fez história. Os relatos da época são precisos em datar o ano de 1752 para o início do plantio em Ilhéus.

Por quase 150 anos seguintes, em razão da completa adaptação do cacau ao clima quente e úmido da região baiana, parecido com o seu hábitat natural amazônico, o Brasil ocupou o primeiro ou segundo lugar na produção mundial. Essa fase de ouro se encerrou quando, no final do século 19, os ingleses iniciaram o plantio na costa da África, passando a ganhar os mercados centrais. Recentemente, nos anos 1980, a praga conhecida como vassoura-de-bruxa devastou a pujança da produção cacaueira na Bahia. 

Hoje em dia, o Brasil ocupa a sétima posição no ranking dos maiores produtores de cacau no mundo, atrás de cinco países africanos e do Equador. Com 2,2 milhões de toneladas produzidas no ano passado, a Costa do Marfim lidera a produção global. Por aqui, a performance total foi de 269,7 mil toneladas do fruto. Em território nacional, são pouco mais de 90 mil produtores de cacau atualmente. Uma vantagem competitiva está no fato de o País ser o único produtor mundial que também conta com todos os elos da cadeia em seu próprio território: produção, processamento, indústria chocolateira e consumidor. Somos o quinto país no ranking mundial de consumo. 

“A capacidade instalada da indústria é muito positiva”, diz Guilherme Salata, coordenador da CocoaAction Brasil. “Neste momento, falta cacau para atender ao mercado interno e a indústria processadora precisa importar um pouco da África para suprir essa necessidade. Qualquer aumento de produção que houver, o mercado terá condições de absorver.” 

O município mato-grossense de Alta Floresta não foi escolhido ao acaso, é claro, para sediar o projeto-piloto de recuperação florestal de 100 mil hectares a partir da plantação de árvores cacaueiras. Ali, o bioma amazônico tem um longo histórico de degradação. Ao mesmo tempo, o vizinho Pará é o maior produtor nacional de cacau, com um desenvolvimento contínuo nos últimos 50 anos. O Mato Grosso, sede do projeto, ocupa, por outro lado, a sexta posição no ranking nacional, mas exibe todas as condições climáticas para avançar. 

A intenção do plano é mostrar que o Sistema Agroflorestal (SAF) representa uma possibilidade de ganhos para o médio ou grande produtor. Embora agroflorestas sejam tradicionalmente planejadas para uma produção em pequena escala, a proposta da dupla Cargill-Belterra é criar mecanismos para ampliar a escala dos SAFs pela multiplicidade de produtores, diversificação de culturas e simplificação do sistema dos sistemas produtivos. É onde entram os métodos mais modernos de produção sustentável. 

O Sistema Agroflorestal (SAF) que está sendo implementado no Mato Grosso tem como característica intrínseca uma sinergia entre as plantas que fazem a diferença nas áreas onde o cacau está inserido, apresentando bons resultados no plantio de outros produtos. Culturas de ciclo curto, como milho, arroz, feijão, mandioca e banana, começam a apresentar bons resultados após seis meses ou um ano.  

“Conforme as espécies florestais de ciclo longo, como mogno, cedro, jacarandá e jequitibá crescem ao longo de 20 anos, elas também fornecem sombra e nutrientes para outras espécies de ciclo médio, como o próprio cacau, o cupuaçu, o açaí e o pupunha, que demoram de três a quatro anos para estarem prontas para a colheita”, diz o técnico da Belterra. O grande diferencial desse sistema de reflorestamento é que seu processo de implantação precisa ter como base a sucessão ecológica, o que na prática acontece de forma espontânea.  

A sequência de eventos naturais, dentro do escopo da mais ampla biodiversidade, faz com que diversas comunidades biológicas, como cianobactérias, líquens e musgos, iniciem a recolonização de um ecossistema, dando condições para que indivíduos mais complexos se desenvolvam em seguida. É assim que uma área degradada tem chances de voltar a ser uma floresta em pé, com o ganho extra de ainda possibilitar colheitas de produtos de ciclo curto de maturação, como milho, arroz, feijão, mandioca e outros. 

A formação de mão de obra especializada é mais um dos desafios para a complexa fórmula dar certo. “As agroflorestas requerem muito conhecimento em tecnologia de produção agrícola, pois é preciso dominar técnicas de manejo de dezenas de espécies diferentes, cada uma com suas particularidades”, diz o especialista Ortega. “Combinar as espécies em um arranjo é parte importante da inteligência do negócio. Algumas espécies são inseridas no sistema para fixarem nitrogênio no solo em um primeiro momento e também para servirem como adubo quando perecem. Cada uma delas tem sua função no arranjo.” 

A iniciativa na fronteira das regiões Centro-Oeste e Norte faz parte de um planejamento estratégico da Cargill, que tem como objetivo conectar várias pontas do sistema produtivo rural em um só projeto. Elementos importantes nas áreas de produção agrícola, acadêmica, empresarial, ambiental e empresarial estão sendo mobilizados.

Segundo a companhia, todos esses atores da cadeia produtiva buscam levar conhecimento aos produtores de diferentes culturas sobre a adoção de práticas mais sustentáveis. Presente em mais de 60 países, a multinacional pretende replicar o sistema em outras localidades, em caso de os planos de combate à degradação florestal obterem sucesso. 

Um estudo recente divulgado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) comprova a potência do cultivo de cacau para a restauração de áreas degradadas. O mapeamento realizado em 90 mil hectares de cacau comprovou que a cultura é altamente benéfica para a Amazônia. Esses benefícios vão além das lavouras. Os dados mostram que é possível integrar a geração de emprego e renda à preservação da floresta.  

O estudo da Embrapa foi realizado no estado do Pará, cuja cadeia de agronegócio tem base na agricultura familiar. De acordo com o levantamento, 70% do cultivo de produtos agrícolas é feito sobre áreas consideradas degradadas. A redução das queimadas e do desmatamento na região está proporcionando a recuperação de muitas dessas áreas, cuja maior parte foi convertida de pastagens. 

Para Guilherme Salata, coordenador da CocoaAction Brasil, o País tem plena condição de assumir o papel de protagonista com a oferta do cacau mais sustentável do mundo, reconquistar espaço no mercado internacional e, claro, continuar contribuindo para a restauração das áreas degradadas. “A produção de cacau está, de fato, atrelada à preservação ambiental, o que se pode definir como uma preservação produtiva”, diz Salata. “Dificilmente o Brasil vai voltar a ter protagonismo no volume de produção como aconteceu no passado, mas a nossa grande oportunidade é nos consolidarmos como o maior fornecedor de cacau sustentável do mundo, justamente por causa desse modelo produtivo.”  

Em países como Costa do Marfim e Gana, maiores produtores de cacau do mundo, o desmatamento é uma prática cotidiana. No Brasil, por sua vez, o cacau vai sendo cada vez mais associado a áreas em regeneração. O primeiro passo para avançar no mercado internacional é aumentar a produtividade das lavouras brasileiras, que hoje obtêm uma média de 300 quilos por hectare/ano. “Infelizmente, a produção do cacau não atinge viabilidade econômica com essa produtividade”, diz o especialista. “Mas estudos mostram que é fácil, do ponto de vista agronômico, conseguir avançar em termos de volume.” 

Com adequação na forma de manejo e investimento em tecnologias básicas, seria possível alcançar algo entre 1.000 e 1.200 quilos por hectare/ano, uma produtividade que já garantiria boa margem de rentabilidade para a maioria dos produtores. “Estudos mostram que o cacau bem tocado, com alta produtividade nas áreas de agricultura familiar, pode ser até seis vezes mais rentável que a pecuária, e isso dentro de um perfil de cultivo sustentável”, diz Salata.  

Acesso às linhas de crédito também é um fator crucial para que o produtor consiga fazer essas adequações. O setor aposta que, a partir do momento em que o produtor estiver com as questões econômicas estabelecidas, automaticamente passará a atender todos os requisitos do tripé ESG. 

A falta de crédito é um ponto que afeta o avanço do cacau no País. Contabilizando as tomadas de recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) em todos os estados do País em 2022, o acesso foi de R$ 60 milhões. “Isso é praticamente nada”, lamenta o diretor da CocoaAction Brasil. Segundo ele, além das questões de endividamento do próprio produtor, o cacau não apresenta para os próprios bancos pontos atrativos em seu atual modelo de comercialização. 

A cultura do cooperativismo dentro do setor cacaueiro também não oferece grande suporte aos produtores neste momento. Uma dinamização desse processo poderia servir de incentivo para o avanço da produção brasileira, já que, por intermédio das cooperativas, outros gargalos teriam soluções mais rápidas, como assistência técnica e acesso a empréstimos.

Com a mudança do modelo atual, as projeções passam a ser otimistas. “Se a gente conseguir voltar a uma produtividade média de 700 quilos de cacau por hectare, estamos falando de uma injeção de R$ 2,7 bilhões de receita bruta no bolso do produtor”, calcula o executivo. Isso quer dizer que, se tudo der certo, um novo – e rico – ciclo do velho e bom cacau brasileiro pode estar em vias de ser iniciado.