Edição 38 - 24.08.23
Os debates sobre a desdolarização da economia mundial ganham força, mas é improvável que a moeda americana seja substituída nas transações comerciais entre os países
Por Caio Barcellos
No início do ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um discurso em evento dos Brics com duras críticas à hegemonia do dólar americano no comércio internacional. No mesmo encontro, defendeu a criação de uma moeda comum para o grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. “Por que todos os países são obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar?”, perguntou o presidente. “Por que não o real?”
A adoção do dólar como principal moeda de reserva mundial ocorreu após a Conferência de Bretton Woods, em 1944, que teve como objetivo garantir a estabilidade monetária na esteira do fim da Segunda Guerra Mundial. A partir de então, a moeda dos Estados Unidos se tornou o meio intermediário nas transações comerciais com a Europa, que buscava se reconstruir após a devastação perpetrada pelo conflito. Foi assim que Washington passou a dar as cartas na economia global.
Sob diversos aspectos, o privilégio conferiu aos Estados Unidos o poder de viver além dos seus meios. Nas últimas décadas, o país tem enfrentado déficits fiscais e comerciais significativos, que são invariavelmente contornados com a emissão de títulos do Tesouro. Ou seja: para bancar suas despesas, o Estado emite títulos de dívida em troca de dinheiro real. A estratégia, contudo, funciona apenas até certo ponto, podendo levar a efeitos adversos – o principal deles é o risco de inadimplência.
Em maio, o presidente americano, Joe Biden, enfrentou grave impasse político diante da necessidade de elevar o teto da dívida do governo. De fato, esse é o ponto fraco da economia dos Estados Unidos: caso deixe de cumprir suas obrigações, o país abrirá as comportas para uma crise de dimensões imprevisíveis, expondo a vulnerabilidade da hegemonia do dólar e de seu papel como principal potência do planeta.
O governo brasileiro é um dos principais entusiastas da desdolarização. Recentemente, Brasil e China fecharam um acordo para negociações bilaterais em yuans e reais, uma tentativa clara de reduzir a influência do dólar nas transações internacionais. Antes disso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, havia defendido o estabelecimento de uma moeda comum no Mercosul, ideia compartilhada por vários integrantes do atual governo.
Apesar do desejo de um contraponto à dominância da moeda americana, o processo de desdolarização é incipiente. A participação do yuan no financiamento comercial mais do que dobrou (de 2% para 4,5%) desde o início da guerra da Ucrânia, quando a Rússia – aliada de primeira hora de Pequim – sofreu a imposição de diversas sanções do Ocidente. Por sua vez, a participação do dólar americano caiu de 86,6% para 84,3%, mas ainda segue inegavelmente predominante.
O caminho para uma mudança de cenário é longo e incerto. “Nunca tivemos um país que adotou um papel tão central no sistema financeiro global como os Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial”, afirma Oliver Stuenkel, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas.
O especialista cita o recente anúncio do Banco dos Brics, que pretende fazer 30% dos seus empréstimos em outras moedas, mas o que está longe de constituir um processo amplo e coordenado de desdolarização: “Da mesma forma, as recentes iniciativas de vários países de usar o yuan nas suas transações com a China tem como objetivo reduzir a exposição de bancos chineses às sanções dos Estados Unidos, mas não encerrar a hegemonia do dólar”
O yuan, de fato, não está pronto para substituir o dólar. “Uma desdolarização para valer exigiria a transformação do regime regulatório e político da China, algo não necessariamente atraente para o governo chinês neste momento”, acrescenta Stuenkel. “A China teria de abolir controles de capitais, o que poderia produzir instabilidade. E o apetite para essa instabilidade em Pequim atualmente é quase nulo.” Uma moeda comum dos Brics seria igualmente inviável, pois tensões significativas entre os integrantes – sobretudo a Índia e a China, que possuem sérios conflitos fronteiriços – tornam o processo improvável.
No agronegócio, responsável por 47,6% do total exportado pelo Brasil em 2022, a desdolarização também não é encarada com entusiasmo. Os principais pontos alegados são a falta de previsibilidade das demais moedas e o fato de que o mercado já se acostumou com a predominância dos Estados Unidos no comércio global.
Fábio Pizzamiglio, diretor na Efficienza Negócios Internacionais, é cético em relação ao acordo firmado entre Brasil e China para transações comerciais em real e yuan. “Acredito que é importante termos essa opção, mas é algo que faria sentido apenas se houvesse falta de dólares na China e no Brasil”, diz. “Não creio que o agro brasileiro possa aderir às negociações sem o uso do dólar. Os exportadores já estão bastante habituados a operar dessa forma.” Haroldo Torres, economista e professor da Esalq/USP, vai na mesma linha de raciocínio. “O exportador escolhe moedas que tenham pouca volatilidade e por isso eu descarto a hipótese de o dólar ser substituído no curto prazo.”
A predominância do dólar está expressa na estrutura financeira global, nas práticas comerciais estabelecidas entre os países e na confiança que os investidores depositam na moeda americana. Romper com essa dinâmica, portanto, parece algo improvável em um futuro próximo. A despeito da vontade do presidente Lula, o dólar continuará a ser a principal referência econômica do planeta.