Edição 37 - 02.07.23
Por Paula Pacheco
Na economia circular, resíduos da produção viram fontes de receita e elevam a busca pela sustentabilidade para um novo patamar
Além de colocar em risco o futuro do planeta, o uso excessivo de recursos naturais nos mais diversos processos produtivos gera resíduos em volumes cada vez maiores. Embora o cenário seja preocupante, a boa notícia é que as empresas têm buscado formas de aumentar o aproveitamento de seus insumos. É a chamada economia circular, que, em resumo, busca o redesenho de processos, de modelos de negócios e dos próprios produtos. Assim, é possível reduzir o uso de matérias-primas e adotar estratégias de negócio mais alinhadas à sustentabilidade ambiental.
O agro é uma das atividades que tem maior vocação para o tema da circularidade. Um dos exemplos mais citados é o da atividade sucroenergética. A palha da cana-de-açúcar é mantida no campo para garantir a proteção e o enriquecimento do solo. Por sua vez, a vinhaça, resultante da produção de açúcar e etanol, é aproveitada como fertilizante. Já o bagaço produz bioeletricidade.
De fato, o agro é circular. “Nenhum modelo é mais regenerativo do que a agricultura”, analisa Weber Amaral, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e estudioso do tema. “Não se regenera uma mina de carvão ou a extração de metais. A agricultura faz isso, trazendo de volta as propriedades originais do sistema.” O especialista também aponta a pecuária como um aliado da circularidade. “A atividade tem o papel de fertilização com a passagem do gado pela pastagem”, diz.
Um dos aspectos mais notáveis da economia circular é a possibilidade de resíduos virarem novos produtos. A Atvos, uma das principais produtoras de biocombustíveis do País, investe no desenvolvimento dessa estratégia em todas as suas unidades agroindustriais. O modelo prevê a utilização plena dos subprodutos originados da moagem da cana-de-açúcar, vinhaça e torta de filtro na adubação das áreas de cultivo.
Na safra 2022/23, a companhia ampliou consideravelmente o uso desses recursos que, afinal, têm alta importância para a nutrição da cana e a fertilização do solo. A vinhaça, rica em potássio e matéria orgânica, foi aplicada em 91 mil hectares de lavouras no ciclo passado, um aumento de 20% em relação à safra 2021/22. Por sua vez, a torta de filtro, composta por matéria orgânica e minerais como fósforo, nitrogênio e cálcio, foi empregada em 17 mil hectares de canaviais, um crescimento de 41%.
O contexto internacional impulsionou a economia circular. Com a guerra entre Rússia e Ucrânia, muitos países correram o risco de desabastecimento de fertilizantes, o que obrigou a indústria a encontrar soluções ambientalmente sustentáveis, economicamente viáveis e mais acessíveis para fomentar a produção nos canaviais – a vinhaça e a torta de filtro cumprem bem esse papel. No caso da vinhaça, ressalte-se que as unidades agroindustriais da Atvos realizam a análise do solo em todas as áreas onde o subproduto será aplicado. A partir dos resultados, é possível verificar se aquela região específica pode receber a fertirrigação com o produto.
O agronegócio brasileiro tornou-se um celeiro de iniciativas voltadas para a economia circular. A CMPC Brasil, que atua no setor de papel e celulose, possui um projeto importante nessa área, chamado BioCMPC. Ao todo, 99,6% dos resíduos sólidos gerados pela produção de celulose na unidade de Guaíba, no Rio Grande do Sul, são reciclados e reaproveitados. Com isso, além de evitar o descarte em aterros de 600 mil toneladas de resíduos a cada ano, a CMPC transforma esse material em 13 tipos de produtos, conforme relata o diretor-geral Mauricio Harger.
A empresa dá nova função a materiais como serragem, casca de eucalipto, lodo, lama de cal, cal e cinza, que são utilizados como insumo para fazer cimento, painéis de madeira, adubo e fertilizante voltado tanto à agricultura quanto ao paisagismo. “Imagine a quantidade de caminhões que seriam necessários para levar esses resíduos para aterros sanitários”, diz Harger. “Isso não existe no nosso negócio. Tudo gera receita e evita custos.” Em 2022, os resíduos transformados resultaram num faturamento de R$ 18 milhões.
Quanto mais diversificada for uma agroindústria, maior é a possibilidade de praticar a circularidade. “A geração de produtos a partir dos resíduos é uma das opções da economia circular, mas não é a que vai trazer mais ganhos”, afirma Aldo Ometto, professor de engenharia da Universidade de São Paulo e professor-visitante da Griffith University (Austrália). “Uma mudança de modelo de negócio, com uma produção mais diversificada e integrada, certamente amplia ainda mais as vantagens.”
A diversificação de forma integrada foi o modelo adotado pela JBS, que começou a praticar a economia circular há 20 anos, mas avançou mais rapidamente a partir do compromisso, anunciado em 2021, de tornar a empresa net zero até 2040. Hoje em dia, o reaproveitamento dos resíduos da matéria-prima da produção de bovinos é de cerca de 99%. No caso de suínos e aves, o índice é de 94%.
Ainda assim, há desafios. Maria Paula Bibar, gerente de Sustentabilidade da JBS Brasil, cita os gargalos de logística no País como fatores que atrasam o desenvolvimento da economia circular.
A executiva aponta também a dificuldade de fazer com que os produtos sejam reconhecidos de maneira justa pelo mercado. “Embora iniciativas de sustentabilidade que reaproveitem materiais ou matérias-primas sejam valorizadas, há muito espaço para ampliar a penetração dos produtos na indústria e para o público final”, diz Bibar.
A JBS atua em diferentes frentes. A JBS Couros é líder global na indústria coureira, com escritórios comerciais e plantas industriais em oito países e 5 mil funcionários. Já a NovaProm, outro negócio do grupo, é produtora de colágeno bovino para a indústria de alimentos e fornece ingredientes com bases proteicas para embutidos, pães e lácteos. Atualmente, sua produção é exportada para cerca de 40 países.
Não é só. Outra empresa do grupo, a JBS Ambiental, tem capacidade anual para reciclar 4 mil toneladas de plástico, 9 mil toneladas de metal e 5 mil toneladas de papel. Seu negócio é voltado à transformação de resíduos em novos produtos e reinseri-los na cadeia de produção da JBS ou de outras indústrias, evitando a geração de resíduos que seriam destinados a aterros sanitários.
A cadeia da economia circular do grupo inclui ainda a JBS Biolins, complexo industrial em Lins (SP) que usa a biomassa para produzir energia elétrica e vapor para o abastecimento de fábricas da Friboi, JBS Couros e JBS Novos Negócios. Entre os projetos mais recentes está a Genu-in, que fornece colágeno e gelatina para a indústria farmacêutica e de nutrição, e a Campo Forte, a primeira empresa do País a utilizar resíduos orgânicos para a produção de fertilizantes.
Mesmo indústrias que não são ligadas diretamente ao campo buscam soluções que possam vir da agricultura ou pecuária. É o caso da centenária fabricante de pneus Goodyear. A companhia lançou em maio o primeiro pneu produzido no Brasil que usa óleo de soja como substituto de derivados de petróleo. O modelo Wrangler Workhorse AT, usado em picapes e SUVs, promete melhorias, como a dirigibilidade em piso molhado. Segundo a Goodyear, além de se tratar de um composto renovável, o óleo de soja utilizado no Wrangler Workhorse AT oferece melhor performance em diferentes temperaturas, o que torna o pneu mais aderente à pista.
Na época da apresentação da novidade, a gerente sênior de Marketing da divisão de pneus de passeio da Goodyear, Debora Da Cruz, lembrou que a atenção dos consumidores às questões ambientais foi reforçada nos últimos tempos, o que estimulou a empresa a investir no projeto. Há outros programas em andamento. Além do óleo de soja, que gera um excedente usado em aplicações industriais, a fabricante testa em sua atividade fabril a adoção da sílica de casca de arroz, um subproduto que geralmente é descartado em aterros sanitários e leva muito tempo para se decompor.
Empresa controlada pelo grupo alemão MPC, a Oryzasil também aposta no desenvolvimento de pesquisas para transformar a casca de arroz em sílica. Em sua fábrica, localizada em Itaqui, no Rio Grande do Sul – estado que lidera a produção de arroz do Brasil –, toda a energia é gerada a partir da biomassa da casca da gramínea. Além disso, o produto tem outras utilidades, servindo como base para a produção de tijolo e vidro.
O Brasil está na vanguarda na economia circular. Na Embrapa, uma das linhas de trabalho busca usar o conceito no aproveitamento máximo dos alimentos produzidos no País. Integrante do projeto “Cidades e alimentação: governança e boas práticas para alavancar sistemas alimentares urbanos circulares”, financiado pela União Europeia, Gustavo Porpino, que também é analista da divisão Alimentos e Territórios da Embrapa, explica as diretrizes do projeto.
A linha de trabalho de Porpino inclui o cultivo mais próximo de centros de consumo, uma maior conexão do produtor com o varejista para preservar a qualidade dos alimentos e a sintonia entre o que o consumidor procura e o que vai ser produzido. “Isso pode mudar a forma de lidar com alimentos próximos do vencimento ou aqueles considerados feios e que acabam descartados”, diz Porpino. “Com uma melhor conexão entre os elos da cadeia, é possível diminuir o desperdício e combater a fome.”
Weber Amaral, professor da Esalq-USP, acredita no uso da tecnologia para a inclusão de pequenos e médios produtores no mapa da circularidade. Ele lembra que os pesquisadores da universidade têm se dedicado ao desenvolvimento de um aplicativo gamificado. O projeto, já em fase de protótipo, deverá ser concluído ainda no segundo semestre. Entre outros atributos, o app vai permitir aos produtores o monitoramento das diferentes etapas da produção de alimentos.
A ideia é conferir uma pontuação a partir de dados de desmatamento, adoção de agricultura regenerativa, controle biológico, adesão a fertilizantes orgânicos e consumo de água. A partir daí, o app indicará o patamar de sustentabilidade de uma determinada cadeia produtiva. A busca pela sustentabilidade é um caminho sem volta no agronegócio. Nesse contexto, a economia circular terá papel cada vez mais vital.