SABOR BRASILEIRO

 Avanço do mercado nacional de cervejas especiais leva a um movimento inédito de inovações no s


Edição 37 - 02.07.23

 Avanço do mercado nacional de cervejas especiais leva a um movimento inédito de inovações no setor 

Por Evanildo da Silveira

Em 20 anos, de 2001 a 2021, o mercado cervejeiro do Brasil registrou um crescimento explosivo de 3.678%, o que consolidou o País como o terceiro maior produtor do mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos. O avanço ocorreu em paralelo ao aumento das exigências dos consumidores por bebidas inovadoras e de melhor qualidade. De posse desses dados, pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) selecionaram quatro tipos de leveduras para a produção de cervejas, mas que eram normalmente usadas na fermentação da cana-de-açúcar para a fabricação de cachaça. O resultado da inovação é surpreendente. 

A pesquisa nasceu a partir de uma parceria da Esalq com a startup de produção de leveduras Smart Yeast, incubada na USP. Para a prospecção de novas linhagens, a pesquisadora Lethicia Suzigan Corniani, que realizou o estudo para sua tese de doutorado em Ciência e Tecnologia de Alimentos, coletou amostras de leveduras em pequenas destilarias da região conhecida como Circuito das Águas Paulistas, no interior de São Paulo. A descoberta das leveduras não foi um trabalho aleatório. “O projeto desde o início foi desenhado para que realizássemos coletas periódicas em alambiques parceiros”, diz Corniani.  “Depois disso, levamos as amostras para o laboratório e iniciamos o processo de seleção, isolamento, caracterização, fermentação e, por fim, a produção da cerveja.” 

As quatro cepas da espécie Saccharomyces cerevisiae receberam minuciosas avaliações do ponto de vista genético, fisiológico e tecnológico. Na sequência, foram usadas na produção de cervejas do estilo american blond ale, uma bebida de aparência clara e com espuma muito similar a uma Pilsen, mas menos amarga que uma pale ale Segundo Cauré Portugal, fundador da startup Smart Yeast, as leveduras selecionadas foram utilizadas para a produção em pequena escala da bebida. “Conseguimos obter cervejas com características diferentes”, conta. “Consideramos tanto características físico-químicas quanto a avaliação sensorial delas.” 

Os pesquisadores concluíram que algumas cervejas podem ter interesse comercial e, portanto, potencial de produção em escala industrial. Testes com cervejeiros indicaram que elas foram aprovadas na maior parte dos quesitos usados na avaliação sensorial. Três cepas estudadas se mostraram agradáveis ao paladar e apenas uma não foi bem avaliada. “O próximo passo seria testar as mesmas leveduras em diferentes tipos de malte para encontrar combinações de estilo que valorizem a cerveja e, assim, construir uma gama de produtos nacionais, algo que não existe”, acrescenta Lethicia Corniani. “Mostramos que é possível selecionar leveduras com características e perfis sensoriais adequados para a produção de cerveja artesanal brasileira.” 

A pesquisadora explica que as linhagens de leveduras industriais apresentam características genéticas e fisiológicas distintas das leveduras presentes no ambiente natural, conhecidas como “leveduras selvagens”. Estas últimas são capazes de oferecer benefícios como a produção de aromas e sabores peculiares, podendo ser utilizadas na criação de novos estilos de cerveja e na releitura de estilos históricos. Do ponto de vista comercial, é de grande interesse do mercado cervejeiro explorar a diversidade de leveduras. “O crescente aumento do número de microcervejarias, assim como das variedades de marcas disponíveis no mercado, tem resultado em novas exigências do consumidor, o que também abre espaço para o desenvolvimento de produtos diferentes”, diz Corniani. 

A cerveja é uma das bebidas alcoólicas mais sensíveis e instáveis que existem. O seu sabor e o aroma podem variar em função de diversos aspectos e influências que ocorrem durante o processo de produção. É aí que entram em ação as leveduras. O processo de fermentação pode ser considerado o ponto central na produção de qualquer bebida alcoólica, pois é quando ocorre a conversão dos açúcares em etanol e gás carbônico por esses organismos”, detalha a especialista. A concentração, temperatura e duração da fermentação influenciam diretamente nos padrões do metabolismo celular e, por conseguinte, no teor dos compostos produzidos. Por isso, a seleção de linhagens é tão importante no processo de produção de bebida.  

Apesar dos bons resultados em laboratório, ainda é cedo para prever quando as cervejas produzidas com as leveduras selecionadas poderão chegar ao mercado. “Nosso laboratório se coloca à disposição das microcervejarias que desejarem e tiverem interesse em avaliar essas leveduras em suas produções”, avisa Portugal, da startup Smart Yeast. “Estamos prontos para oferecer um estilo de cerveja que preencha os requisitos para uma produção comercial da bebida.” Com o reconhecimento acadêmico, o trabalho poderá ajudar o mercado cervejeiro nacional a se fortalecer. “A diversidade da escola cervejeira brasileira não vem apenas de organismos como leveduras, mas também de frutas, madeiras e matérias-primas tropicais”, reforça Lethicia Corniani. 

De acordo com o Anuário da Cerveja 2021, o mais recente divulgado pelo Ministério da Agricultura, em 2021 havia 1.349 cervejarias registradas no País, responsáveis por 35.741 marcas à disposição dos apreciadores da bebida. O número de produtores é ainda maior se forem consideradas as cervejarias ciganas, que terceirizam suas produções em outras cervejarias. Segundo especialistas nesse mercado, o aumento do número de microcervejarias e das variedades de estilos e marcas disponíveis elevaram os níveis de exigências do consumidor, o que abre espaço para o desenvolvimento de novos produtos. 

O mercado brasileiro de cervejas está em busca de novidades. Nascido de uma parceria entre as cervejarias Cozalinda, de Florianópolis (SC), e Zalaz, de Paraisópolis (MG), o Projeto Manipueira ambiciona criar uma espécie de “terroir” brasileiro da cerveja. As duas cervejarias têm experiência na produção de bebidas de fermentação selvagem, processo que envolve leveduras locais e não culturas desenvolvidas em laboratório, como ocorre na maior parte da fabricação convencional. A nova proposta, que atraiu aproximadamente 30 cervejarias de diversas regiões brasileiras, é usar a manipueira, líquido extraído da mandioca, para produzir cervejas. Iniciativas como essas mostram que o setor está pronto para viver uma grande revolução.