Edição 37 - 21.07.23
Avanços na legislação e iniciativas promissoras na produção de medicamentos à base de cannabis despertam o interesse do agro em cultivar a erva
Por André Sollitto
A discussão sobre o mercado legal de cannabis no Brasil ganhou novos desdobramentos nos últimos meses. No final de março, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) conferiu a si a prerrogativa de decidir sobre o plantio de cânhamo, variedade da erva com menor índice de THC, substância responsável pelo efeito psicoativo associado ao consumo da maconha. A decisão do STJ poderia uniformizar os processos de autorização, inclusive para pacientes que usam o canabidiol em tratamentos diversos. A ministra Regina Helena fez questão de deixar claro em seu voto que não se trata de uma deliberação sobre a descriminalização do uso recreativo, mas que o objetivo é discutir a fabricação de produtos para fins medicinais, terapêuticos e industriais. Antes, em fevereiro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, aprovou um projeto de lei que estabelece a distribuição de medicamentos à base de cannabis para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), em decisão comemorada por ativistas e empresas do setor.
Apesar dos inegáveis avanços, há um longo caminho até que os novos – e promissores – medicamentos cheguem, sem obstáculos, até as mãos dos pacientes. Contudo, a movimentação já é suficiente para despertar o interesse de produtores rurais sobre o potencial de plantio da erva no País. Com um setor agrícola forte e maduro, o cultivo local da cannabis seria facilmente absorvido, e certamente daria origem a uma produção de alta qualidade. “O Brasil tem tudo para ser uma das principais potências da cannabis no mundo”, afirma Rodolfo Rosato, investidor da empresa TerraCannabis, que ajuda pacientes a realizar os trâmites burocráticos envolvendo importação de medicamentos à base da planta. “Temos aqui as condições hídricas, de terra e clima ideais. Produtores de grandes monoculturas, como soja e feijão, podem plantar a cannabis inclusive na entressafra, porque a planta ajuda a recuperar o solo e oferece renda adicional.”
Diversas iniciativas proporcionam imersões em mercados mais maduros de cannabis. Um desses destinos é o Paraguai, atualmente um dos três principais produtores de cânhamo do mundo, com aproximadamente 5 mil hectares plantados. A Koba Trip, divisão da Koba, empresa de origem paraguaia que possui estrutura completa para o cultivo da cannabis, leva produtores e empresários para participar de palestras e visitas técnicas. Há inclusive um componente social, já que no país vizinho boa parte do manejo é feita por comunidades indígenas e de campesinos, em um projeto chamado Hemp Guarani. As plantas, depois de colhidas, são vendidas para a indústria, responsável por produtos como óleos essenciais, alimentos e medicamentos. A viagem é realizada em parceria com a AgroTravel, especializada em visitas com foco no agronegócio brasileiro e estrangeiro.
Na América do Sul, outros mercados relevantes são o Uruguai, primeiro país do mundo a legalizar o consumo recreativo, e a Colômbia. O principal produtor de cânhamo do planeta, contudo, é a China. Embora os números exatos não sejam divulgados, dados levantados pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos indicam que os chineses são responsáveis por metade de toda a produção de cânhamo do mundo. Cerca de 70% dos insumos são usados na fabricação de fibras, enquanto 7% destinam-se para produtos alimentícios e 5% para extração de CBD. No país da Muralha, uma tradição milenar prevê o uso da erva para uma grande variedade de fins, da medicina à indústria.
Bons exemplos vindos do exterior podem ser usados como inspiração para a futura produção brasileira. Nos Estados Unidos, grandes empresas do setor agrícola produzem cannabis, mas há espaço também para os pequenos agricultores. “Por causa do atraso na legislação, o Brasil perde hoje grandes oportunidades de geração de emprego e impostos”, diz Rodolfo Rosato. No ano passado, a produção anual de cannabis (tanto legal quanto ilegal) atingiu quase 22 mil toneladas em solo americano, segundo dados da consultoria Whitney Economics, especializada no setor.
De acordo com a projeção realizada com base no mercado atual, em 2026 haverá mais cannabis legal do que ilegal. Isso é reflexo do aumento do interesse e do uso de produtos com CBD, o canabidiol, uma das substâncias presentes na planta. Segundo o Instituto Gallup, 14% dos adultos americanos já fazem uso de algum derivado de CBD, e o número pula para 20% entre os jovens de 18 a 29 anos.
Atualmente, o cultivo da cannabis e do cânhamo é ilegal no Brasil. A Justiça já emitiu algumas autorizações para entidades que produzem pequenas quantidades destinadas principalmente à fabricação de medicamentos, mas trata-se de número pouco representativo. Uma regulamentação robusta, federal, poderia ampliar a qualidade e a segurança de tudo que é produzido a partir de cannabis. “Quando falamos em liberação, as pessoas acham que o País vai começar a vender em qualquer lugar, mas não é isso”, afirma a médica Paula Dall’Stella, especialista no tema e integrante do núcleo de Cannabis Medicinal do Hospital Sírio-Libanês. “Precisamos olhar para a questão de forma madura e estabelecer, de maneira clara, o que é cannabis medicinal e o que é uso adulto.” A especialista prossegue no raciocínio. “A partir disso, devemos garantir a segurança dos produtos que são oferecidos aos pacientes, que são a ponta mais fraca da cadeia”, diz Dall’Stella. “A falta de regulamentação federal banaliza o assunto e deixa as pessoas vulneráveis.”
Nos últimos anos, os debates em torno da legalização e descriminalização da maconha foram contaminados pelo viés ideológico. Benefícios comprovados pela ciência foram ignorados e dados incorretos sobre os impactos da liberação em outros países viralizaram nas redes sociais. A situação, no entanto, vem mudando de figura e há sinalizações de que a sociedade olha para o tema com menos preconceito. “É preciso entender que a cannabis é uma pauta de enorme importância para a economia do país”, afirma a advogada Bruna Rocha, que recentemente assumiu a direção da Associação Brasileira da Indústria de Canabinóides (BRCANN), entidade que fomenta o desenvolvimento do setor no Brasil.
Em meados de abril, a Fiocruz emitiu uma nota técnica abordando as evidências científicas encontradas nos tratamentos terapêuticos baseados na cannabis e seus derivados. O documento aponta que é seguro e eficaz usar canabinóides no tratamento de dor crônica, transtornos neuropsiquiátricos, náusea, vômito e perda do apetite em decorrência da quimioterapia. A cannabis, portanto, pode ser forte aliada da saúde. Por isso, ela precisa ser analisada com os olhos da ciência e não a partir de injustificáveis preconceitos.