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Por Paula Pacheco   Brasil tem uma antiga solução que polui menos e tem sua eficácia comprov


Edição 36 - 14.06.23

Por Paula Pacheco

 

Brasil tem uma antiga solução que polui menos e tem sua eficácia comprovada: o etanol 

 

Em março passado, os países da União Europeia aprovaram uma lei que será uma quebra de paradigma na indústria automotiva: o fim, a partir de 2035, das vendas de carros novos que emitem CO2. Além disso, a nova regra prevê 55% menos emissões, já a partir de 2030, em relação aos níveis de 2021. O objetivo do bloco europeu é acelerar a descarbonização das novas frotas de carros e reduzir os danos do setor ao meio ambiente. A Alemanha tem sido a principal incentivadora da troca dos veículos a combustão pelos modelos elétricos, inclusive com o subsídio de 4,5 mil euros (valor era de 6 mil euros até o ano passado) para quem optar por esse tipo de motor. 

O cenário parecia consolidado, mas a guerra na Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022, desequilibrou o jogo de forças no setor energético. Com os cortes no fornecimento de gás natural pela Rússia, a Europa teve de recorrer à geração de energia a carvão – fonte, ressalve-se, altamente poluente. Se por um lado não há emissão de poluentes pelos escapamentos dos modelos elétricos, por outro isso acontece na alimentação das usinas de energia. A crise no abastecimento de energia e o uso do carvão levaram a importantes questionamentos. Afinal, os veículos movidos a eletricidade são mesmo os mais indicados para a redução das emissões? É viável que esse modelo de mobilidade seja adotado em escala global, como defende parte da indústria automotiva?  

Quando se observa o mercado brasileiro, a discussão sobre a efetiva adoção dos elétricos ganha diferentes contornos. Ainda na década de 1970, o País inovou com o uso de etanol nos motores, comprovadamente menos poluentes e que seriam, portanto, mais adequados aos novos tempos de crescente preocupação ambiental. Atualmente, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) calcula que os modelos flex – movidos a gasolina ou etanol – respondem por 87% das vendas. Diante disso, é preciso trazer uma questão ao centro dos debates: o Brasil, que tem o etanol como alternativa à gasolina, deveria aderir aos elétricos? 

Para Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e Bioenergia da Unicamp, o Brasil detém, de fato, tecnologia mais competitiva em termos de redução de emissões do que o modelo elétrico. O seu cálculo leva em consideração todo o processo que envolve o veículo – desde a matéria-prima para a produção até o descarte, incluindo a fonte de obtenção do combustível. Pereira cita um estudo preliminar, sob sua orientação, realizado pelo  

doutorando Marcelo Gauto e que compara as emissões de carbono equivalente (CO2e) por quilômetro rodado na avaliação de ciclo de vida (ACV) do combustível e do veículo. Ou seja, desde a extração de matérias-primas para a elaboração das partes e peças até o momento em que ele deixará de rodar (nesse caso, as simulações foram feitas até o automóvel atingir os 160 mil km rodados). 

Os resultados observados até agora são surpreendentes. Um veículo tradicional de combustão rodando 100% do tempo com etanol brasileiro teve 16,8% menos emissões de gases de efeito estufa (GEE) do que um puro elétrico a bateria que circula na Europa. O estudo realizou outras comparações. O puro elétrico carregado no Brasil, por exemplo, teve redução de 27,9% nas emissões de GEE do que o mesmo veículo na Europa.  

Gauto também comparou o desempenho de um puro elétrico a bateria com híbridos movidos a biocombustíveis. De acordo com o estudo, os híbridos com etanol brasileiro apresentaram emissões de GEE entre 12,7 e 26% menores do que o puro elétrico, a depender se o modelo é híbrido plug-in ou não, respectivamente. Por fim, o levantamento descobriu que as emissões de GEE de híbridos com biometano são de 18,1 a 43,2% menores do que o puro elétrico. “O biometano é tão impressionante que, mesmo em um veículo de combustão tradicional, não eletrificado, apresenta emissões 29,7% menores do que o elétrico recarregado na matriz elétrica brasileira, considerada uma das mais limpas do mundo”, detalha o pesquisador. 

De modo geral, diz Gauto, observou-se que a eletrificação associada com biocombustíveis nos veículos híbridos leva a menores emissões de carbono do que nos veículos puramente elétricos estudados. O doutorando ressalta que, como todo estudo, há limitações e ele retrata apenas a “fotografia” do momento. De todo modo, é inegável que os biocombustíveis brasileiros se mantêm competitivos em relação aos puro elétricos. “E isso deve se manter à medida que a cadeia produtiva dos biocombustíveis está se descarbonizando.” 

A pesquisa citada por Pereira confirma sua tese: ao se levar em consideração a vida completa do veículo, o tipo de motor, o material utilizado e a fonte de energia, o etanol bate com folgas o modelo elétrico. O professor da Unicamp lembra que, na Europa, foi feita uma legislação “para a parte interessada”, porque considera as emissões de CO2 da versão elétrica apenas do “tanque à roda”. No entanto, ressalta, o carro elétrico não tem tanque.  

O especialista da Unicamp cita um estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica, de 2019, conduzido por docentes das universidades de Colônia e Munique, na Alemanha. A pesquisa mostra que o ciclo de vida do veículo Tesla emite mais CO2 do que um modelo BMW que utiliza apenas diesel. “Eles usaram a ciência para fazer os cálculos, ou seja, não se trata de um critério estabelecido por meio de legislação, que leva em consideração apenas aspectos econômicos e políticos”, afirma Pereira. “O fato é que a bateria é feita de uma série de metais. A mineração desses metais tem uma diferença fundamental para o petróleo, porque seus componentes são muito específicos e estão disponíveis em poucos lugares do mundo, como no caso do lítio.” O estudioso acrescenta que as baterias usadas nos modelos da Tesla chegam a pesar quase 1 tonelada. 

Outras importantes pesquisas confirmam as vantagens dos carros movidos a etanol. Plinio Nastari, fundador e presidente da Datagro Consulting, cita um estudo da Mahle, fabricante de autopeças, para reforçar o papel que o etanol deve ter na definição de políticas de mobilidade. Segundo ele, o veículo flex comum emite 46 gramas de CO2 equivalente por quilômetro. Por sua vez, o híbrido que usa etanol emite 29 gramas. O elétrico a bateria, no padrão europeu, chega a 122 gramas. No Brasil, esse número cai para 92 gramas – mas ainda assim com grande desvantagem em relação ao etanol. 

Nastari pondera que, no comparativo entre elétricos e a combustão, é preciso levar em consideração o chamado custo global de propriedade do veículo. O elétrico é bem mais caro do que as outras versões, o que representa uma barreira para sua expansão no Brasil. O presidente da Datagro cita ainda a necessidade de investimentos na infraestrutura de eletrificação para a recarga. 

Em documento divulgado recentemente, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia, projetou que a frota de carros elétricos do Brasil deverá ultrapassar 1 milhão de unidades em 2030 – incluindo veículos leves híbridos (HEV) e a bateria (BEV). No entanto, existe uma ressalva quanto à rede de eletrificação. A infraestrutura de recarga de automóveis elétricos começa a crescer no Brasil, mas ainda é muito concentrada no estado de São Paulo, e existem poucas unidades públicas e de carregamento rápido”, diz o relatório. “O acesso à infraestrutura de carregamento auxilia na adoção de veículos elétricos, devendo influenciar crescentemente essa alternativa à medida que ela ganha escala.” 

O Brasil tem barreiras que impedem a expansão dos elétricos. Pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (Ceri) da Fundação Getulio Vargas, Diogo Lisbona acredita que o avanço dos elétricos será inevitável. “Essa é uma indústria que tende a uma fórmula mundial, por isso o modelo elétrico deverá avançar, inclusive por pressão do consumidor”, afirma. “No caso do Brasil, por uma série de questões, isso levará mais tempo.” Entre as razões para isso estão o preço elevado, a modesta rede para carregar as baterias e a concorrência com a versatilidade dos modelos flex, que utilizam inclusive o gás natural.  

Para Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), a palavra-chave quando se trata de definição do melhor modelo é complementaridade. “Todas as rotas tecnológicas serão necessárias se queremos descarbonizar o setor de transportes”, diz. “Por isso, considero o etanol como parte da solução. É uma alternativa viável e muito eficiente para o objetivo principal, que é reduzir a pegada de carbono. Todas as tecnologias têm e terão seu espaço, inclusive aquelas que unem etanol e eletrificação, como o veículo híbrido flex.” 

A eletrificação, segundo o presidente da Unica, tem papel importante, mas não se deve desprezar os avanços tecnológicos trazidos pelo etanol. O executivo ressalta que, em 20 anos de uso desse tipo de combustível no Brasil, 620 milhões de toneladas de CO2 deixaram de ser lançadas na atmosfera. “É uma resposta muito significativa para um dos maiores desafios do século 21”, conclui Gussi.