Edição 36 - 15.05.23
Por Marco Damiani
Os sinais antagônicos emitidos pelos governos federal e de São Paulo a respeito da privatização do Porto de Santos, o maior da América Latina, reacenderam o sinal amarelo entre os maiores grupos e cooperativas do agronegócio brasileiro. Agora, as luzes estão no modo piscante, de alerta redobrado, com a aproximação do julgamento, pelo Tribunal de Contas da União, da ação protocolada no ano passado pela administração federal que deixou o poder em dezembro. O pedido é pela ida a martelo do CNPJ da Autoridade Portuária (SPA, na sigla em inglês), o que retiraria dessa entidade pública o direito a gerir a atividade geral, coordenar investimentos e estabelecer taxas para a utilização do porto.
Com a privatização, o papel de gerenciamento e estabelecimento de regras passaria a ser de quem pagar mais pelo direito de assumir o controle sobre o colosso com 16 quilômetros de extensão, 64 terminais de atracação e 7,8 milhões de metros quadrados de área seca. Adiado mais de uma vez, o julgamento entrou na segunda semana de março na fase do “agora vai”, com a perspectiva de finalmente ser votado pelos ministros em poucas semanas.
A definição é crucial para os maiores produtores do agronegócio, que compõem, de longe, a principal clientela do terminal. No ano passado, quando registrou o recorde de 162,4 milhões de toneladas de mercadorias exportadas, o porto de Santos verificou um aumento superior a 105% no escoamento de produtos do complexo da soja, de mais de 40% na cadeia do açúcar e acima de 130% no milho. Os embarques de sucos cítricos cresceram perto de 10%, enquanto as carnes dobraram esse percentual, superando os 20%.
Para 2023, com a safra recorde de grãos que está em plena colheita, o peso do agro nas operações portuárias deverá crescer ainda mais. Do total de US$ 159 bilhões exportados pelo campo no ano passado, algo como 80% tiveram Santos e seu porto famoso como ponto originário para as vendas externas. “Não há dúvida de que o crescimento do Porto de Santos é constante desde 2014, ano a ano, mas os gargalos operacionais existem e se agravam com o aumento da produção do agro”, afirma Clovis Wessling, gerente executivo de Logística Internacional do grupo JBS, maior produtor de carne bovina do mundo. “O que não se sabe é se uma privatização clássica resolveria as necessidades ou se o atual modelo de concessões pode ser melhorado sem que seja necessário mudar todo o sistema.”
O plano do governo federal é reservar o controle sobre a Autoridade Portuária e manter o modelo de concessões, no qual terminais inteiros são operados de maneira independente pelas empresas. Companhias como Cutrale e Vale Fértil, por exemplo, são algumas que detêm seus próprios terminais, pagando à administração por esse direito. “O Porto de Santos já é quase todo privatizado”, resume Márcio França, ministro dos Portos e Aeroportos, que faz questão de deixar claro que o governo Lula, ao contrário das intenções da gestão Bolsonaro, não atua a favor da privatização. “As operações são privadas, mas o porto precisa manter a autoridade pública. Esse é o modelo de 99% dos terminais marítimos do mundo”, sustenta o ministro.
O discurso parece convencer, a contragosto, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, reconhecido privatista. Ele tem emitido sinais de que buscará uma solução conciliatória junto às autoridades federais, mas marca a sua posição. “O que a autoridade portuária pública faz que o poder concedente não possa fazer e a regulação não possa fazer?”, tem questionado ao abordar o assunto. “Definição de política tarifária o poder concedente define, o contrato define, a regulação define”, assegura o governador.
A preocupação de setores relevantes do agronegócio é que a privatização nos moldes tradicionais, na base do “ao vencedor, tudo”, poderia levar ao aumento de custos – é exatamente esse fator que inibe o apetite pela desestatização. Publicamente, os empresários do agro evitam entrar na polêmica da privatização, mas se mantêm de olho vivo sobre a possível mudança. “Nós já temos há muitos anos uma operação ‘dedicada’ em nossos terminais”, afirma Ibiapaba Netto, presidente da Associação Nacional de Exportadores de Sucos Cítricos. “Significa que operamos e temos instalações em nossos terminais, como tubulações e tanques, dentro do nosso perfil, sem interferências externas. Conseguimos realizar no porto a fase final da nossa produção e estocar tanto o suco natural quanto o concentrado congelado. Não temos queixas.”
Uma das principais características do terminal da Baixada Santista – e que encanta os mais diferentes setores do agro – é a sua proximidade com áreas produtivas de São Paulo e do Centro-Oeste. “Nosso transporte direto, da lavoura para os nossos tanques em Santos, nunca leva mais do que dez horas de ponta a ponta”, diz o executivo da CitrusBr. “É uma vantagem única em relação a todos os demais portos brasileiros.”
O investimento privado nos terminais próprios tem garantido, até aqui, a adequação do porto ao crescimento nos volumes exportados pelo agro. Por outro lado, iniciativas da Autoridade Portuária, como o Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (que inclui a modernização da Ferrovia Interna do Porto de Santos), traduzem o interesse do governo em manter o processo de melhorias. A questão aberta por esse ponto é saber se a dinamização do terminal, no ritmo que uma administração pública consegue imprimir, acompanhará as novas pressões, traduzidas em volumes maiores, que vêm pela frente. “As safras estão crescendo e, a partir de abril, a supersafra de grãos que já está sendo exportada terá a companhia de uma produção recorde de açúcar para ser escoada pelo mesmo porto”, lembrou, em seminário recente, Paulo Roberto de Souza, CEO da Alvean, trading da Copersucar, a maior cooperativa brasileira do segmento. Há o receio de que os atuais gargalos limitem a exportação de açúcar via Santos em 2,5 milhões de toneladas ao mês, enquanto a necessidade seria de 3 milhões de toneladas.
Um estudo realizado pela Esalq-Log, o braço de análises sobre logística da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, estima que um incremento de 10% nas exportações do agro brasileiro pelo Porto de Santos levaria a um acréscimo de 5% no tempo de estadia dos navios cargueiros no local. Além disso, aumentaria em 1% o tráfego nas rodovias pedagiadas – já tradicionalmente congestionadas – com destino ao porto. “Isso certamente formaria filas enormes de caminhões e ampliaria de modo significativo o preço do frete”, calcula o professor Thiago Péra, coordenador do levantamento.
É inegável que o Porto de Santos possui inúmeras deficiências. Em relação às importações necessárias ao desenvolvimento do agronegócio, como as de fertilizantes e insumos, ele pode operar mensalmente até 9,5 milhões de toneladas de granéis minerais. Com os investimentos previstos pela SPA, a capacidade deverá aumentar gradativamente, nos próximos anos, em 74%, chegando a 16,5 milhões de toneladas. Prosseguirá, no entanto, o debate sobre a falta de berços para abrigar navios carregados de fertilizantes, um problema que se desenrola, sem solução definitiva, desde 2019. No sentido dos embarques, os atuais 64 terminais têm capacidade máxima para escoar 8 milhões de toneladas de grãos por mês. No ano passado, recordes de produção e exportação foram quebrados em diversos meses, o que indica que, neste ano de supersafra, a situação assumirá contornos de dramaticidade em termos de urgências versus gargalos.
Para o segundo semestre, com a imposição de escoar para o exterior a segunda safra anual do milho, mais um teste de estresse será enfrentado sobre as águas plácidas do gigantesco terminal: à produção robusta de soja e açúcar se juntará o resultado de mais uma colheita espetacular de milho. Mesmo que o julgamento do TCU indique a privatização, hipótese considerada difícil em razão do poder de influência do governo federal sobre a Corte, até lá o Porto de Santos deverá continuar funcionando nos moldes atuais. Afinal, a organização de um leilão de venda levará pelo menos alguns meses até se concretizar.
Em meio aos intensos debates sobre a privatização, o agronegócio está como o velho e bom marinheiro – na expectativa. É consenso que o processo de modernização e ampliação da capacidade exportadora do Porto de Santos deverá continuar. Neste momento, contudo, os dois caminhos estão abertos pela frente: o que preserva o atual modelo de concessões e o que subverte uma ordem secular do predomínio do Estado sobre os negócios do porto. O que é melhor para o agro? A resposta é cristalina: não importa quem seja o gestor, desde que o porto ofereça custos competitivos e seja tão eficiente quanto os principais rivais internacionais.