Edição 36 - 31.05.23
Por Romualdo Venâncio
Cultivo de orgânicos cria novas oportunidades para pequenos agricultores e abre caminhos para a sustentabilidade
No início de março, a Suzano e a Raiar Orgânicos assinaram inédita parceria para recuperar 14 hectares de solo degradado na cidade de Iaras, no interior de São Paulo. Numa primeira análise, a dimensão da área que será renovada não impressiona. Afinal, de um lado está uma gigante do segmento de papel e celulose. De outro, uma jovem produtora de ovos orgânicos com metas ousadas – dentro de quatro anos, a Raiar pretende ter um plantel de 700 mil aves com produção diária entre 500 mil e 600 mil ovos. Um olhar mais atento, contudo, mostra a relevância da iniciativa. Ela, afinal, integra um projeto mais amplo e fortalece um movimento que ganha espaço de forma rápida e consistente: a produção de grãos orgânicos.
Os grãos entram na segunda etapa da parceria firmada entre as duas empresas. A parte inicial do projeto-piloto, a ser desenvolvida ao longo de 2023, visa à recuperação de áreas degradadas do assentamento da reforma agrária Zumbi dos Palmares, que envolve dez famílias. Aqui as dimensões começam a ficar mais explícitas. Os 14 hectares de Iaras integram o “Mapa de Oportunidades” da Suzano, ação que ambiciona retirar, até 2030, 200 mil pessoas da linha de pobreza das áreas onde a empresa atua. Renovadas, as terras do assentamento serão semeadas com milho e soja orgânicos.
Um diferencial do projeto é a amarração com começo, meio e fim. A Suzano responde por todo o investimento em insumos agrícolas, que serão distribuídos pela Raiar aos agricultores. A companhia de orgânicos também prestará assistência técnica às famílias assentadas, além de assegurar a compra de tudo o que for colhido para compor a alimentação de suas galinhas. Por fim, pagará um prêmio de 30% sobre o valor do grão convencional. Outros dois assentamentos semelhantes já foram identificados pela parceria para a ampliação do projeto. Afinal, a criação de um amplo ecossistema, com equilíbrio entre oferta e demanda, é um dos principais fatores que atraem mais agricultores para os grãos orgânicos.
Uma das metas de crescimento da Raiar é chegar ao meio do ano com um criatório de 160 mil galinhas. A expansão não seria possível sem a segurança do abastecimento de milho orgânico para tantas aves, até porque a nutrição representa 80% da produção, conforme cálculos realizados por Luís Barbieri, um dos sócios da empresa. É por isso que ele iniciou uma busca por parceiros na região de Avaré (SP), onde está a fazenda de 170 hectares.
Assim como no assentamento de Iaras, o que a Raiar vem fazendo é oferecer apoio técnico e jurídico para que os parceiros se tornem, de fato, produtores de grãos orgânicos. Ressalte-se que a empresa assume também o compromisso comercial, fator primordial que faltava para que mais agricultores apostassem nesse sistema de cultivo e na transição do plantio convencional. “Mesmo produtores que já trabalhavam com outras culturas orgânicas não produziam grãos porque não havia demanda”, afirma Barbieri. “Era preciso encontrar quem comprasse e pagasse um prêmio por isso.” Muitos dos parceiros da Raiar fazem rotação de cultura com outros produtos, como feijão, grão-de-bico, aveia e girassol. Ainda que não usem esses grãos, a empresa ajuda a colocá-los no mercado com valor agregado.
A produção nacional de grãos orgânicos – essencialmente milho e soja – gira em torno de 60 mil toneladas, enquanto os Estados Unidos importam cerca de 1 milhão de toneladas. Ou seja, o potencial da atividade é imenso. “Existe mercado, portanto podemos multiplicar nossos negócios”, diz o empresário. Mais do que o atrativo da remuneração, Barbieri afirma que o crescente interesse pela mudança é também consequência da transformação da agricultura global. “Há um movimento em direção aos insumos biológicos”, afirma.
A agricultura orgânica pode ser forte aliada da redução de custos. Em alguns casos, a diminuição supera a casa dos 20%. Outro ponto que atrai produtores é a conscientização ambiental. De acordo com Barbieri, observa-se atualmente uma preocupação maior do setor com essa temática. “Acompanho produtores de grãos do Centro-Oeste há décadas, e existe uma evidente mudança de mindset”, afirma.
A transição para a agricultura orgânica não ocorre da noite para o dia. Os especialistas do ramo indicam uma adaptação gradual mesmo para aqueles que pretendem fazer a mudança de uma só vez. “Comece com 5% de sua área agrícola e vá aumentando”, indica Barbieri. Como isso pode ser feito? A Raiar apoia os interessados por meio de uma rede de tecnologia de grãos orgânicos chamada Folio. Em dezembro passado, a Folio foi um dos destaques da segunda edição do Fórum Internacional de Grãos Orgânicos, realizado em Avaré. Cerca de 150 pessoas estiveram no evento, em sua maioria produtores. Entre as companhias participantes do encontro estava a americana Perdue Farms, a maior compradora global de grãos orgânicos.
Produzir grãos orgânicos é uma experiência marcante mesmo para aqueles que possuem vivência na área. É o caso do médico veterinário Thiago Dominik von Schnitzler, que está fazendo a sua primeira aposta no plantio de soja orgânica. Dos 100 hectares disponíveis para a produção agropecuária na Estância Demétria, propriedade arrendada por sua família em Botucatu (SP), 5 hectares foram separados para iniciar a nova etapa. Schnitzler conta que a produção orgânica já está nos negócios da família há 30 anos. É exatamente a sua idade – ou seja, ele está no ramo desde sempre.
O ingresso na área começou em outra propriedade, com a produção de leite orgânico. Depois, a família investiu em um laticínio, uma fábrica de geleias e sorvetes e uma padaria. Atualmente, os produtos são vendidos em loja própria e em três feiras de orgânicos na capital paulista, sob a coordenação do pai de Schnitzler, Paulo Roberto Rodrigues Cabrera. Os outros segmentos de negócios são divididos da seguinte forma: Thiago Schnitzler responde pela produção agrícola e pecuária, enquanto sua irmã, Sheila Marina von Schnitzler, administra a loja. Já a mãe, Carolin Sophie von Schnitzler Cabrera, administra a padaria.
O contato da operação familiar com a Raiar trouxe a segurança para ampliar a produção de orgânicos, especialmente soja. “Há alguns anos eu vinha criando coragem para investir nesse segmento, mas havia dúvidas sobre o que fazer com os grãos, como retirar o óleo para ficar com o farelo”, diz Thiago Schnitzler. “A Raiar entrou com os insumos e nos deu o suporte e apoio técnico.” Segundo ele, para um primeiro plantio, o desenvolvimento foi bastante satisfatório.
De fato, a produção orgânica avança no agronegócio brasileiro. Em Tarumã (SP), a opção da fazendeira Maria Helena Ricca por esse tipo de cultivo surgiu no início do século. Em sua propriedade, já havia experimentado a produção de gado de corte, cana-de-açúcar e milho. Foi nessa última transição que o sistema de cultivo mudou. A produtora não queria plantar apenas cana, e naquele período os transgênicos eram a opção mais provável. Ela até semeou soja e milho convencional, mas não transgênicos. O cultivo orgânico entrou aos poucos nos 215 hectares da propriedade, e atualmente já há rotação de cultura com milho, soja, aveia e grão-de-bico.
Na safra de verão, 80% do cultivo é de milho e 20% de soja. No inverno, tudo muda – 50% são destinados para aveia, 30% para o grão-de-bico, 15% para uma segunda safra de milho e 5% têm adubo verde. No início, a venda dos produtos orgânicos era feita para operadoras como a Gebana, uma das empresas que levaram essa tecnologia para as propriedades. Com o tempo, veio a percepção de que o beneficiamento dos grãos na própria fazenda poderia agregar valor às colheitas.
Maria Helena Ricca conta com a visão estratégica do filho Gustavo Ricca, que atua especialmente na gestão do grupo. Para acelerar os negócios, a fazenda ampliou os investimentos em infraestrutura, incluindo silos, um sistema de pré-limpeza, um secador e uma mesa densimétrica. As mudanças permitiram diversificar a carteira de clientes e firmar novas parcerias. Entre elas, com a Raiar. Gustavo Ricca destaca o manejo de plantas daninhas como o grande desafio agronômico para o cultivo orgânico. Para o controle de pragas e doenças fúngicas, os defensivos biológicos são fabricados na fazenda. “É apenas para consumo próprio, até porque a legislação nem permite que a fazenda forneça para terceiros”, diz o produtor.
Do ponto de vista do negócio, há inúmeros desafios. Uma das preocupações de Ricca é o fato de o governo federal não ter criado uma nomenclatura comum do Mercosul para os produtos orgânicos, que ficam atrelados aos convencionais, como commodity. “Não deveria ser assim, porque é outra forma de produção”, reclama. “Por isso, não há dados exatos sobre essa produção, como o volume exportado, por exemplo.” Outro ponto destacado por ele é a falta de linhas de financiamento e de seguro rural específicas para orgânicos. “A seguradora está acostumada com o transgênico, que é uma roça limpa, mas na nossa tem mato, e pode parecer que não é bem cuidada”, diz. São desafios que o segmento precisa superar para se tornar cada vez mais vigoroso.