O Efeito Thais

O Efeito Thais  Como a escolha da primeira mulher a assumir a diretoria da Esalq em 122 anos pode e


Edição 35 - 24.04.23

O Efeito Thais 

Como a escolha da primeira mulher a assumir a diretoria da Esalq em 122 anos pode estimular o protagonismo estudantil e valorizar soluções construídas de forma coletiva

Por Lívia Andrade

 

O dia 17 de janeiro de 2023 é um marco na história da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), a USP Piracicaba. Na data, a professora Thais Maria Ferreira de Souza Vieira assumiu a diretoria da escola e se tornou a primeira mulher a ocupar o posto em 122 anos de Esalq. 

A conquista da engenheira agrônoma Thais reflete um movimento observado no agronegócio como um todo: as mulheres vêm assumindo protagonismo, seja à frente de grandes empresas do agro – caso da esalqueana Malu Nachreiner, líder da Bayer Brasil –, seja como docentes, pesquisadoras, consultoras ou gestoras de propriedades rurais. “Acho sensacional a presença feminina. Na agropecuária elas estão dando um show de talento e dedicação. Puxam a agenda do bem-estar animal e da sustentabilidade no agro. São mais colaborativas e abertas às mudanças. A Esalq está de parabéns!”, diz Xico Graziano, engenheiro agrônomo esalqueano, hoje professor no MBA da Fundação Getulio Vargas (FGV). 

 

De fato, a entrada de Thais na diretoria da Esalq é um divisor de águas no campus da USP-Piracicaba, em que a maioria dos ingressantes dos cursos de graduação (Administração, Ciências Biológicas, Ciências dos Alimentos, Ciências Econômicas, Engenharia Agronômica, Engenharia Florestal e Gestão Ambiental), nos últimos quatro anos, é do sexo masculino. Segundo a pesquisa realizada pela Esalq, 2019 foi o único ano em que o número de estudantes ingressantes do sexo feminino e masculino se igualou. 

 

Mas o ambiente nem sempre empático às mulheres nunca intimidou esta paulista, nascida em Indaiatuba, filha de pai músico e professor e mãe professora. Ainda pequena, mudou-se com a família para Piracicaba e logo se encantou pela Esalq, palco de piqueniques e pedaladas quando criança. 

 

A menina cresceu e, em 1995, se formou em Engenharia Agronômica pela Esalq. Apaixonada pelos estudos, em 2003 se tornou doutora em Tecnologia de Alimentos pela Unicamp, com um período sanduíche no Cirad, um organismo de pesquisa agronômica situado em Montpellier, no sul da França. Nos anos seguintes, 2003-2005, foi pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos, cargo que deixou em 2006, quando teve a oportunidade de entrar como docente na Esalq. 

 

No período de 2012-2015 se tornou vice-coordenadora da Comissão de Coordenação de Curso da Engenharia Agronômica e levou duas estatuetas: Prêmio Excelência em Docência de Graduação da Esalq e Prêmio Excelência em Docência da USP, ambos em 2013. Dois anos depois, em 2015, chegou a livre-docente pela USP, o mais alto grau de titulação acadêmica, que implica em possuir o título de doutor há pelo menos cinco anos e ter vasta experiência no ensino e pesquisa com linha própria. 

 

EFEITO THAIS 

O legado da professora Thais na vida de seus alunos e orientandos ficou evidente na elaboração desta reportagem. Bastou o envio de uma mensagem para um grupo de esalqueanos no WhatsApp para o celular não parar mais de pipocar, todos querendo mandar suas impressões sobre a nova diretora da Esalq. Nos depoimentos, algumas características foram recorrentes: “Ela está sempre aberta ao diálogo”, “Dá muita liberdade” e “Estimula o protagonismo do aluno no processo de ensino e aprendizagem.” 

 

Diogo Tau Zymberg Tomaszewski, que cursou Ciências dos Alimentos, teve um convívio próximo à Thais em 2014 e 2015, quando participava da Comissão de Graduação do curso como discente, e ela como docente. “A Thais acredita no estudante como protagonista, não é do tipo de pessoa que dita o que deve ser feito, mas está sempre aberta a discutir ideias e possibilidades”, conta. “Ela vê o estudante como semelhante – o que abre a possibilidade de uma relação ganha-ganha, não de subordinação. Isso faz toda a diferença na formação profissional e pessoal”, acrescenta. 

 

Naquela época, foi criado o Fórum Interno de Ciências dos Alimentos (Fica). “Os estudantes estavam em dúvida de como iniciar o movimento. Num processo conjunto com a Thais veio a ideia de uma aula inaugural de Ciências dos Alimentos, com os egressos de três áreas de atuação: Academia, Indústria e Empreendedorismo. O evento fez tanto sucesso que é adotado até hoje, mesmo com os desafios impostos pela educação à distância”, diz Tomaszewski. 

 

Em 2019, Thais assumiu a presidência da Comissão de Graduação da Esalq e aqui cabe lembrar o apreço dela por esta primeira etapa do ensino superior. “Claro que a pós-graduação é importantíssima. Claro que pesquisa é importante. Mas antes de tudo, nossa função é formar recursos humanos. Formar profissionais na área de Ciências Agrárias é a razão de nossa existência e do nosso reconhecimento nacional e internacional”, escreveu Thais no blog da Associação dos Ex-Alunos da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Adealq) por ocasião do aniversário de 116 anos da Esalq, completados em 2017. 

 

“Se um docente não tem afinidade com a graduação, algo muito errado está acontecendo. Somos docentes, não apenas pesquisadores. Somos a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz.  Ministrar boas aulas, atualizar conteúdos e formatos, buscar maior envolvimento com alunos, é obrigação de todos, mesmo que seja cumprindo a mínima carga horária exigida para um docente da USP. Infelizmente a graduação é o que menos importa na carreira de alguns docentes hoje em dia. Mas de onde vêm nossos alunos da pós-graduação?”, escreveu Thais. 

 

Na graduação, Thais inspira e motiva alunos de diferentes maneiras. “Ela incentiva a criatividade, me deixou superaberta para a escolha do tema do TCC [Trabalho de Conclusão de Curso], de como queria elaborar o trabalho, sempre foi gentil nas orientações e nos palpites, principalmente relacionados a como deixar o projeto mais completo”, diz a cientista dos alimentos Izabela Couto Espindola, que foi orientada por Thais em 2018. 

 

Já Giulia Cardoso da Silva Martins Benites, que está terminando o curso de Ciências dos Alimentos e tem Thais como orientadora do TCC, ressalta o lado acolhedor da professora. “Tive muitas dúvidas sobre como conduzir o trabalho, inseguranças e problemas pessoais. Mas a Thais encontrava a luz no fim do túnel. Sempre disposta a ajudar, escutava a minha opinião e dava um norte de como executar as ideias da melhor forma. O apoio dela nas situações adversas tem sido imprescindível para finalizar a graduação conforme sonhei”, diz. 

 

Empatia é a característica mais marcante da Thais para Vanessa Vizioli Melo, que se formou em Ciências dos Alimentos em 2016. “Estava grávida em 2015, meu filho nasceria em dezembro e tinha um seminário da disciplina da Thais para apresentar. Em novembro, ela me puxou e disse: ‘Seu filho vai nascer em dezembro, faz o trabalho com o grupo, mas não precisa apresentar’”, conta. 

 

Mas Vanessa estava bem e apareceu no dia do seminário. “Na sala, tinha um palco montado, onde ficava a mesa e o projetor. Ela me deixou apresentar com uma condição: teria que ficar sentada”, relata. “A Thais fazia tudo que podia para ajudar, enquanto outros professores implicavam com coisas pequenas”, diz. 

 

Em 2016, no retorno do ano letivo, Vanessa deixava o filho com o marido e ia para as aulas, que começavam às 19 horas. Às vezes, o bebê dava um baile em casa e a estudante precisava sair correndo. “A Thais sempre perguntava como ele estava e me deixou à vontade para levá-lo para as aulas. Um dia levei e ela deu aula com ele no colo”, conta. Mais tarde, em conversas com a aluna, Thais compartilhou: “Engravidei enquanto estudava e foi difícil, porque não tive apoio dos professores. Quando me vi na posição oposta, fiz questão de ajudar”. 

  

EXEMPLO DE VIDA 

Se a reflexão de Thais no blog da Adealq ressalta a importância de os docentes valorizarem a graduação, a trajetória da profissional deixa claro o quanto ela preza pela indissociabilidade do tripé acadêmico: ensino, pesquisa e extensão. Thais foi pesquisadora visitante na Universidade da Califórnia, em Davis (2018 -2019), e coordena convênios de cooperação internacional (Oniris, Institut Agro, Bordeaux Sciences Agro, VetAgro Sup, Ufro) e do programa de duplo diploma Esalq/Oniris (França). 

 

Também ministra disciplinas de graduação e pós-graduação em desenvolvimento de produtos e processos e coordena projetos de pesquisa com foco na obtenção de ingredientes funcionais, a partir de coprodutos e resíduos agroindustriais, o que tem tudo a ver com o 12º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, que é assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis. 

 

Richtier Gonçalves da Cruz foi orientado por Thais no mestrado e doutorado, voltados à extração de antioxidantes naturais de diferentes matrizes alimentares e avaliação do efeito antioxidante com o intuito de promover a substituição de aditivos sintéticos adicionados em alimentos. “A Thais é uma orientadora dinâmica, sempre aberta ao diálogo e à discussão de novas ideias, tudo de uma forma muito plural e focada na troca de conhecimentos. Ela não impõe ou exige algo que não seja construído na base da troca de pensamentos e da reflexão conjunta”, diz o cientista do alimento. “Sempre vi este jeito dela como qualidade, pois me induziu a amadurecer as ideias e enxergar a relação professor/aluno de maneira mais participativa, tendo o professor como instrutor e condutor, mas fornecendo um protagonismo importante ao aluno no processo de ensino e aprendizagem”, explica. 

 

Thais também fundou o grupo de extensão conhecido como Esalq Food, que ajuda empreendedores e empresas do setor alimentar desenvolvendo produtos e realizando treinamento sob a orientação de profissionais especializados. Para a cientista dos alimentos Ana Carolina Loro, que foi orientada por Thais no doutorado, participar do Esalq Food fez toda a diferença. “Uma das atividades do grupo de pesquisa é auxiliar pequenos produtores que nos procuravam com suas demandas, com seus problemas durante o processamento da matéria-prima. Isso acrescentou e mostrou quão importante é sairmos de dentro da instituição de ensino e expandir os horizontes”, diz Ana Carolina, que graças a professores como Thais, resolveu seguir a carreira acadêmica. 

 

NOVOS DESAFIOS 

O estímulo de Thais em concorrer ao cargo máximo de administração da Esalq nasceu da experiência adquirida como docente, dos cargos administrativos que ocupou e da percepção de que alguns pontos necessitam de ajustes. “Se queremos mudanças, precisamos estar disponíveis para esse processo”, diz. 

 

Ao vencer o pleito eleitoral, Thais se surpreendeu com o número de mensagens de felicitações, principalmente de mulheres. “Temos que ir eliminando essas barreiras que existem hierarquicamente na sociedade. Esse é um movimento que vem ganhando força e esperamos que assim continue, num processo com equidade, com mulheres e homens ocupando os mesmos espaços, mantendo as diferenças de cada um”, comenta. 

Daqui até janeiro de 2027, Thais e o professor Marcos Milan, a quem considera a combinação perfeita para uma boa gestão, terão o desafio de dirigir uma das unidades fundadoras da USP, que conta com cerca de 3 mil estudantes, 660 servidores entre docentes e técnicos administrativos, 12 departamentos, 140 laboratórios e uma área de mais de 3.800 hectares, o que corresponde a 48% da área total da USP. 

 

Governança estratégica é a bandeira da nova gestão, que tem como eixo norteador os compromissos com a comunidade, a partir dos quais será desenvolvido o Projeto Acadêmico da Esalq alicerçado nos seguintes pilares: Gestão, Ensino, Pesquisa e Inovação, Cultura e Extensão, Inclusão e Pertencimento, Ações Integrativas e de Infraestrutura. Se depender da capacidade de Thais de escutar e construir soluções conjuntas, os próximos quatro anos devem ser emblemáticos na história da centenária Esalq.